Sociedade

Saúde pública e gratuidade

Saúde pública e gratuidade

 

 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

 

 

Estados Unidos, Brasil e outros países defrontam-se com o desgastante problema da falta de recursos — ou da polêmica falta de “vontade política” — para atender a massa, sempre crescente, de cidadãos que buscam em hospitais públicos e postos de saúde o tratamento de suas doenças.

 

Até umas poucas décadas atrás as pessoas tinham como “normal” a necessidade de economizar, “por de lado”, parte de seu ganho para os dias difíceis da doença e velhice. Todos se consideravam muito mais “formigas” do que “cigarra”, na conhecida fábula de La Fontaine. Assim, quando obtinham alguma — mínima que fosse — assistência médica governamental gratuita davam-se por muito felizes, porque não se considerava obrigação indiscutível do Estado cuidar da saúde de todas as pessoas, sem exceção. Quando vigorava essa concepção mais simplista de que o governo deveria apenas “ajudar” os pobres — cabendo a cada um se auto-ajudar — a saúde pública não estava todos os dias nos jornais como campeã de reclamações. Se um pobre morria por erro de diagnóstico, ou falta de um exame caro, indisponível na rede pública, nem mesmo os parentes do falecido se revoltavam contra o governo. Era o destino sempre amargo da pobreza.

 

Ocorre que a população cresceu rapidamente, o mesmo ocorrendo com a abrangência da legislação, cada vez mais preocupada em ampliar os “direitos da cidadania”, sem nada exigir, em troca, do assistido. Para agravar o quadro de insatisfação popular, o avanço da tecnologia na área médica implicou na compra de sofisticados e caros aparelhos para diagnóstico e tratamento, além de uma extrema especialização dos médicos, a exigir salários bem acima do usualmente pago aos profissionais. A obrigação legal do Estado de cuidar de qualquer cidadão — bem ou mal vestido — que o procura obrigou os governos a um gasto imenso. Se o Estado tem, agora, o dever constitucional de cuidar da saúde de todos, o problema econômico tornou-se assunto extremamente preocupante, a exigir algumas alterações legislativas, seja no Brasil, nos Estados Unidos da América ou em outros países igualmente afetados pelo imenso problema.

 

Por enquanto, a dificuldade ainda não chegou ao nível máximo, explosivo, porque a maior parte da classe média ainda consegue pagar — embora rangendo os dentes de raiva — — os caros planos de saúde, cada vez mais pesados no orçamento doméstico, principalmente para os idosos. Quando, porém, o governo, pressionado pelos reclamos gerais, melhorar substancialmente o atendimento gratuito à população, muitos que hoje pagam planos de saúde deixarão de fazê-lo. Pensarão assim: “Se eu posso receber do governo, gratuitamente, sem enormes filas, um tratamento aproximadamente igual ao que recebo do meu plano de saúde, por que pagarei um plano particular? O Estado que cuide de mim, obtendo recursos via tributos”.

 

Aí reside um novo problema financeiro para o poder público. Quanto mais melhorar o serviço de assistência gratuita, visando os mais pobres, maior a migração da classe média para a assistência gratuita. Duplo ônus, com a agravante da maior longevidade das pessoas em todas as faixas de idade. Dizem os humoristas que depois dos sessenta ninguém se cura, apenas troca de doença. Haverá também o afluxo dos hipocondríacos da classe média, geralmente aposentados, extremamente atentos ao próprio organismo. Desses também cuidaram os humoristas inventando a história do cidadão que, aborrecido com a falta de atenção dos amigos às suas constantes lamúrias, mandou fazer uma lápide com as seguintes palavras: “Eu não disse que estava doente?”

 

Um pequeno “freio” contra a tendência, perfeitamente humana, de obter “almoço grátis”— se o “restaurante” for limpo, eficiente e sem muita espera — seria o Estado cobrar alguma coisa pelas consultas. Mas aí nos depararíamos com a objeção, válida, de que o pobre não tem mesmo recurso e a Constituição Federal garante  completa assistência à saúde.

 

Obviamente, seria uma afronta à democracia e à igualdade de todos perante a lei os governos estabelecerem uma norma legal discriminando quem, financeiramente, pode, ou não, obter consulta e tratamento médico gratuito em hospital público. O fato do cidadão não estar mal vestido não significa, forçosamente, que ele esteja em boa condição financeira. Ele pode estar desempregado, ou, mesmo empregado, não ter qualquer reserva capaz de custear um tratamento, geralmente caro, em clínica particular. Exigir, o funcionário do hospital público, uma prova cabal da falta de dinheiro implicaria em tumulto, talvez com o engravatado morrendo de enfarte na discussão.

 

Há, porém, um meio-termo que pode ajudar na solução do problema do excesso de gasto. Uma sugestão que aliviaria — em montante hoje desconhecido — a carga financeira do governo brasileiro na área da saúde — e que, dando certo, seria possivelmente “exportada” para os EUA. Ela consistiria no seguinte: determinar que fosse “cobrada”, ou melhor, “solicitada” de todo cidadão — em farrapos ou de “smoking’ — que se apresentasse a um hospital público, uma quantia única — de certo modo “simbólica” — de, digamos, R$10,00. Mero exemplo, a quantia poderia ser outra, sempre única.

 

Se o cidadão dissesse que não dispõe dessa quantia, seria atendido do mesmo jeito, sem o menor constrangimento por parte do funcionário do hospital, que seria punido caso deixasse transparecer desprezo. Quem pagasse, receberia um comprovante, mesmo não o solicitando (evitando tentações do recebedor). Quem fizesse tal contribuição, sempre facultativa, nem por isso teria “tratamento preferencial”, exceto aquele já existente hoje em favor de pessoas idosas, mulheres grávidas e doentes em estado grave.

 

Qual a finalidade de tal “simbólica” contribuição? Primeiro, ajudar financeiramente o governo no seu esforço para melhorar o atendimento médico da população. Segundo, incentivar o sentimento de solidariedade pública e até mesmo de patriotismo do cidadão. Sentimento hoje quase inexistente — por falta de uso, ou de estímulo do povo brasileiro, desanimado com seus governantes.

 

Uma frase do Presidente John Kennedy marcou época e eletrizou o público americano que o aplaudiu estrondosamente quando ouviu o seguinte trecho de um discurso: “… Não pergunte o que o país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer pelo país!”

 

A reação vibrante da audiência — assisti o filme pela televisão — comprovou que a maioria dos cidadãos aprova, pelo menos em tese, a noção de que as pessoas devem fazer algo em favor de seu país, não ficando apenas esperando a ação do governo. No caso, por coincidência, em benefício próprio, desfrutando de um melhor  atendimento médico-hospitalar.

 

Não disponho, pessoalmente, de estatísticas para saber quantas pessoas, hoje, em todo o país, procuram, por mês, atendimento médico do governo, obviamente gratuito. Imaginemos que um milhão de pessoas façam isso. Creio que talvez metade possa dispor de dez reais para deixar no hospital, como mera “solidariedade” individual para a solução de um problema cada vez mais grave. Se 500.000 pessoas contribuírem com dez reais, os hospitais disporiam de cinco milhões de reais mensais para melhoria das instalações. E essa arrecadação ficaria, necessariamente, por lei, no hospital que recebeu a quantia.

 

Críticos dirão que “ninguém!!!” faria essa contribuição não obrigatória. Tenho, porém, minhas dúvidas. Principalmente se o doente, ou o parente que o levou até o hospital não é um esfarrapado. Sou suficiente e confessadamente ingênuo para presumir que há uma fundo de decência e acanhamento na maioria das pessoas, por enquanto muito decepcionadas com os políticos. Se convicta, essa fatia populacional, de que sua pequena ajuda pessoal não será desviada “para os bolsos dos políticos” — no descrente linguajar do povo — alta percentagem de pessoas que acorrem aos hospitais públicos fariam a sua contribuição, que não é pesada. Alguns chegam de carro ao nosocômio. Dez reais não seria um encargo excessivo. E um estudo prévio pode chegar, talvez, à viabilidade de quantia ligeiramente diferente, sempre — insista-se — não obrigatória.

 

Não havendo privilégio algum em favor dos “contribuintes”, aqueles que não pagaram — mesmo podendo fazê-lo — sentir-se-iam algo “inferiores” na alma. E quem pagasse provavelmente seguraria o comprovante na mão, “distraidamente”, como uma lição de moral àqueles que, podendo, não fizeram a contribuição. O pobre, pobre mesmo, não se sentirá mal, ou tão mal, porque sabe, no fundo de sua consciência, que aqueles dez reais vão lhe fazer falta.

 

 Nos países nórdicos — de população pequena — a assistência aos desempregados é generosa, mas quem abusa do direito de ganhar do governo sem trabalhar, “esticando” a ociosidade, sente-se socialmente desprezado. O “encostado” percebe, “no ar” já gelado, a frieza dos vizinhos. Igualmente, no caso da contribuição aqui sugerida, se ela não for excessiva, suponho que a pressão social e a necessidade de auto-estima pressionarão no sentido de fazer a contribuição. Olhos curiosos e atentos de outros que já pagaram farão a silenciosa “fiscalização” informal.

 

O que digo aqui é apenas uma sugestão, vinda de um cidadão qualquer, a ser melhor examinada pelos políticos interessados em conciliar uma imensa carência de assistência médica com os também imensos gastos governamentais.

 

É provável que a presente sugestão nem mesmo chegue aos ouvidos do governo federal. O sistema poderia ser utilizado experimentalmente em alguns hospitais, por alguns meses, para se observar a reação da população, antes de eventualmente ser implantado em larga escala. Observadores da natureza humana certamente ficariam muito curiosos para ver o resultado. Um estudo simples, objetivo e estatístico do caráter brasileiro.

 

(01-02-09)

 

 

* Escritor. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco Cesar Pinheiro. Saúde pública e gratuidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/saude-publica-e-gratuidade/ Acesso em: 22 nov. 2024
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