A discriminação sob a ótica do Direito
Maria Berenice Dias*
Sumário: 1. A primazia do cidadão; 2. O direito e suas gerações; 3. O perfil familiar convencional; 4. O panorama social atual; 5. A Justiça frente aos direitos não-legislados; 6. A responsabilidade da função judicial.
1. A primazia do cidadão
O mundo está cada vez menor. Os efeitos da globalização e a evolução tecnológica permitem saber instantaneamente o que ocorre em qualquer lugar. Basta lembrar que o mundo presenciou, em tempo real, a queda das Torres do World Trade Center. Esse mundo, agora chamado de aldeia global, vive em plena “era dos direitos”, para usar a expressão de Norberto Bobbio.[1] Nunca se falou tanto em direitos fundamentais, direitos humanos, universalização de direitos.
Decanta-se, em todos os quadrantes do planeta, a necessidade do respeito aos direitos humanos, cuja violação gera retaliações e severas sanções por parte de organismos internacionais. A Constituição Federal elegeu o respeito à dignidade humana como seu dogma maior, com arrimo nos princípios da igualdade e da liberdade.
Por tudo que se diz, por tudo que se proclama e defende, dever-se-ia estar vivendo a época de maior plenitude do indivíduo, pois se encontra aureolado por uma gama de direitos e garantias. Mister que o Estado, que se quer Democrático de Direito, esteja dotado de mecanismos ágeis e eficazes para preservar o cidadão. Assim, as instituições sociais, cada vez mais imbuídas da necessidade de proteger o indivíduo e a própria sociedade, devem tomar consciência da necessidade de participar do processo de “humanização da humanidade”.
2. O direito e suas gerações
Em 26 de agosto de 1789, na França, foi editada a mais famosa declaração de direitos, a denominada “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. O movimento feminista logrou substituir dita nomenclatura para “Declaração dos Direitos Humanos”.
O uso da expressão “declaração” evidencia que os direitos enunciados não são criados ou instituídos, são meramente “declarados”, por se tratar de direitos preexistentes, que derivam da própria natureza humana. Daí serem direitos naturais, abstratos e universais.
Os direitos fundamentais, chamados de direitos individuais, configuram a primeira geração de direitos. Têm como tônica a preservação da liberdade individual. Caracterizam-se como imposição de limites ao Estado, gerando simples obrigação de não-fazer. Buscam libertar todos e cada um do absolutismo de um ou de alguns sobre todos. Originariamente, no plano político, surgiram para livrar o povo do absolutismo do monarca e seus agentes. A liberdade individual irrestrita só pode ser limitada pela lei, expressão da vontade geral, exclusivamente em função do interesse comum. Daí serem identificados os direitos da primeira geração com a busca da liberdade.
Os direitos econômicos, sociais e culturais, positivados a partir da Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como de segunda geração. Cobram atitudes positivas do Estado, verdadeiras obrigações de fazer, com a finalidade de promover a igualdade. Não a mera igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades, ações e resultados entre partes ou categorias sociais desiguais. Buscam proteger e favorecer juridicamente os hipossuficientes em relações sociais específicas. Tais direitos parciais garantem uma prestação diferenciada do Estado a determinados indivíduos, a fim de promover a igualdade social, buscando igualar os desiguais. Voltada para as relações sociais, em que a desigualdade se acentua por um fator econômico, físico ou de qualquer outra natureza, a segunda geração identifica-se com o direito à igualdade.
Os direitos de terceira geração sobrevieram à Segunda Guerra Mundial, reagindo aos extermínios em massa da humanidade praticados na primeira metade do Século XX tanto por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) como democráticos (destruição de cidades indefesas, até por bombas atômicas). Na medida em que o gênero humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir, voltaram-se os olhos às relações sociais em geral, não para garantir indivíduo contra indivíduo, mas a humanidade contra a própria humanidade. Tal suscitou a solidariedade de todos os indivíduos e categorias da sociedade diante de uma possível extinção da humanidade, seja gradativamente, por degradação dos meios necessários à vida humana, seja sumariamente, pela abrupta supressão das condições de sobrevivência.
Nesse momento, os direitos humanos internacionalizaram-se. A soberania estatal restou delimitada por meio da criação de sistemas normativos supranacionais com o fim de preservar os direitos humanos e reconstruir paradigmas éticos para restaurar o respeito à dignidade da pessoa humana. Surgiram os direitos difusos de toda a humanidade. No processo de socialização do estado contemporâneo, a evolução do estado liberal para o estado social de direito fez imperiosa a conscientização de todos da indispensável participação ativa de cada um. Não mais cabe aguardar a iniciativa dos governantes ou lhes delegar com exclusividade o encargo de assegurar a função social dos direitos humanos. É dever de todos e de cada um perante cada um e perante todos.
Com tal passo, cuja concreção ainda falta ser atingida, a evolução dos direitos humanos atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva e objetiva. São direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os sujeitos, para proteger tudo que condiciona a vida humana. Trata-se da fixação de valores ou bens humanos, como patrimônio da humanidade, que garantam a existência com a dignidade que lhe é própria.
3. O perfil familiar convencional
Apesar de todos os dogmas, princípios e regras que buscam assegurar a primazia dos direitos humanos, a sociedade, em nome da preservação da moral e dos bons costumes, impõe padrões de comportamento restritos. Com seu perfil nitidamente conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em repetir o modelo posto.
Tal postura gera um sistema de exclusões baseado muitas vezes em meros preconceitos. Tudo que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade. O que não se encaixa nos padrões aceitos pela maioria é apontado como uma afronta à moral e aos bons costumes. Essa visão polarizada é extremamente limitante.
Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, tornou-o escravo. Também as mulheres foram – e ainda são – alvo de discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania, e até 1962 se tornavam relativamente capazes ao casar. Também os filhos, até 1988, tinham direitos limitados, sendo rotulados por expressões ultrajantes pela singela circunstância de haverem sido concebidos fora do casamento de seus pais.
Principalmente no âmbito das relações familiares, evidencia-se a tendência de formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada época. Por influência da religião, o Estado limitou o exercício da sexualidade ao casamento, instituição indissolúvel que regula não só as seqüelas de ordem patrimonial, mas a própria postura dos cônjuges, impondo-lhes deveres e assegurando direitos de natureza pessoal, chegando ao ponto de invadir a privacidade do lar.
A união que nasce por vontade dos nubentes é mantida após a solenização do matrimônio independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, ainda que haja o consenso do casal, somente é deferida a separação ou o divórcio após o decurso de determinado prazo. Caso contrário, é necessária a identificação de um culpado, o qual, no entanto, não pode tomar a iniciativa do processo. Tudo isso evidencia a intenção de dificultar o fim do casamento e punir quem simplesmente quer dele se desvencilhar.
A família consagrada pela lei – a sagrada família – é matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas regras do Código Civil,[2] os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirir visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificar os vínculos afetivos extramatrimoniais com uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.
Mesmo quando a própria Constituição Federal albergou no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, resistiram os juízes a inserir o instituto no âmbito do Direito de Família, mantendo-o no campo do Direito das Obrigações. A dificuldade de as relações extraconjugais serem identificadas como verdadeiras famílias revela a sacralização do conceito de família. Ainda que inexista qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, nem sequer se faz uso da analogia, mecanismo que a lei disponibiliza como forma de colmatar as lacunas da lei. A negativa sistemática de estender a esses novos arranjos os regramentos do direito familial mostra-se como uma tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais.
4. O panorama social atual
O distanciamento do Estado em relação à Igreja (fenômeno chamado de laicização), bem como a quebra da ideologia patriarcal trouxeram como conseqüência a liberação dos costumes. A chamada revolução feminina, fruto tanto do movimento feminista como do aparecimento dos métodos contraceptivos, e a evolução da engenharia genética (que gerou formas reprodutivas independentes de contatos sexuais) acabaram por redimensionar o próprio conceito de família.
No contexto atual, não mais se pode identificar como família apenas a relação entre um homem e uma mulher ungidos pelos sagrados laços do matrimônio. Rompidos os paradigmas identificadores da família, que se esteavam na tríade casamento, sexo e reprodução, necessário buscar um novo conceito de entidade familiar.
A família não se restringe ao relacionamento com o selo do casamento. A Justiça, ao emprestar juridicidade ao que era chamado de concubinato, impôs ao constituinte o alargamento do conceito de entidade familiar. Tal mudança de paradigma faz com que se reconheça que a pedra de toque para a identificação de um elo de natureza familiar é a presença de um vínculo afetivo.
No momento em que se enlaça no conceito de família, além dos relacionamentos decorrentes do casamento, também o que a Constituição Federal chamou de uniões estáveis e as famílias monoparentais, mister albergar mais um gênero de vínculos afetivos. As relações homossexuais – hoje chamadas de uniões homoafetivas – merecem ser inseridas no âmbito do Direito de Família.
5. A Justiça frente aos direitos não-legislados
A sociedade, no momento em que se estrutura, para a concreção de seus fins, ou seja, promover o bem comum, outorga a um Poder o encargo de fazer justiça. Segundo Mauro Cappelletti,[3] o que se deve garantir não é mera forma de acesso à justiça, mas, sim, o acesso a uma ordem jurídica justa.
Mas, a quem questionar se o Poder Judiciário se desincumbe do dever de dar a cada um o que é seu, a resposta negativa se impõe. No próprio âmbito da jurisdição, os mais comezinhos direitos humanos são violados. A lei não consegue acompanhar o acentuado desenvolvimento econômico, político e social dos dias de hoje, não tendo condições de seu arcabouço prever todos os fatos sociais dignos de regramento. Os vínculos interpessoais são os mais sensíveis à evolução dos costumes, à mudança de valores e dos conceitos de moral e de pudor. Dada a aceleração com que ocorrem, escapam da legislação tradicional.
Em face das lacunas que acabam ocorrendo, o magistrado precisa atentar em que as regras legais existentes não podem servir de limites à prestação jurisdicional. Quando o fato sub judice não está previsto na normatização ordinária, a resposta precisa ser encontrada nos direitos fundamentais que cada vez mais vêm buscando guarida nas Constituições. Não se trata de forma alternativa de se fazer justiça, mas de encontrar uma solução que atenda aos ditames de ordem constitucional.
Imperioso que as interpretações dos juízes sejam criativas.
Ante situações novas, buscar subsídios em regras ditadas para relações jurídicas diversas tende a uma solução conservadora. Mas, tanto não reconhecer direitos sob o fundamento de inexistir previsão legal, como fazer uso de referenciais normatizados para situações outras e em diverso contexto temporal, nada mais é do que mera negação de direitos. Assim, é um dever da jurisprudência inovar diante do novo.
O surgimento de novos paradigmas leva à necessidade de rever os modelos preexistentes, atentando-se na liberdade e na igualdade, pilares da democracia, que estão calcados muito mais no reconhecimento da existência das diferenças. Essa sensibilidade deve ter o magistrado. Tomando como norte a necessidade de assegurar os direitos humanos em sua plenitude subjetiva e objetiva, individual e social, imperioso pensar e repensar a relação entre o justo e o legal. Precisam os juízes arrostar as novas realidades que lhes são postas à decisão e não ter medo de fazer justiça.
6. A responsabilidade da função judicial
O paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente, o confronto entre o conservadorismo social e a emergência de novos valores e novas estruturas de convívio colocam os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema, em face da necessidade de implementação dos direitos de forma ampliativa.
A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões de gênero. Em decorrência de uma visão estereotipada da mulher, exige-lhe uma atitude de recato, sendo feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais. Ainda se vislumbra nos julgados uma postura eminentemente protecionista, que dispõe de uma dupla moralidade. Aparecem com freqüência os termos “inocência da mulher”, “conduta desregrada”, “perversidade”, “comportamento extravagante”, “vida dissoluta”, “situação moralmente irregular”, adjetivações essas ligadas exclusivamente ao exercício da sexualidade. Esses questionamentos jamais foram feitos em relação ao homem. Portanto, são expressões que guardam uma forte carga ideológica que desconsidera a liberdade da mulher.
Também nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcada por um estigma social. É renegada à marginalidade por se afastar dos padrões de comportamento tidos por “normais”. Tal postura homofóbica decorre de mero preconceito que leva à inaceitação dos relacionamentos homossexuais, sendo considerados uma afronta à moral e aos bons costumes. Porém, é discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões estáveis homossexuais. Trata-se de uma união que surge de um vínculo afetivo e gera um enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar regramento jurídico.
Assim, ante a atual posição do homem e da mulher e as novas estruturações familiares, necessária uma revisão crítica e uma atenta avaliação valorativa do fenômeno social, para que se implemente a tão decantada igualdade.
Nesse contexto, é fundamental a missão dos operadores do Direito, que necessitam tomar consciência de que a eles está delegada a função de agentes transformadores dos valores estigmatizantes que levam ao preconceito.
Na trilha do que venha a ser aceito pelos tribunais, como merecedor de tutela, acaba ocorrendo a aceitação social, a gerar, por conseqüência, a possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida.
Uma sociedade que se quer justa, livre, solidária, fraterna e democrática não pode viver com cruéis discriminações, quando a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos. Para cumprir esse lema, é fundamental a atuação dos juízes, que necessitam tomar consciência de que o estado de direito não é um simples estado de legalidade, e a verdadeira justiça não é meramente formal.
[1] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
[2] A referência é ao Código Civil de 1916.
[3] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1888.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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