Processo Penal

Finalmente a Cf/88 prevaleceu: TSE, MP e o sistema acusatório

Finalmente a Cf/88 prevaleceu: TSE, MP e o sistema acusatório[1]

                                                           No início do ano escrevemos um artigo em que transcrevíamos uma matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, na edição do dia 10 de janeiro deste ano de 2014, em matéria assinada pelos jornalistas Andreza Matais e Fabio Fabrini, que estampava a seguinte noticia: “Os promotores e procuradores terão que pedir autorização à Justiça Eleitoral para abrir apurações de suspeita de caixa dois, compra de votos, abuso de poder econômico, difamação e várias outras práticas. O Tribunal Superior Eleitoral tirou do Ministério Público o poder de pedir a instauração de inquéritos policiais para investigação crimes nas eleições deste ano. A partir de agora, promotores e procuradores terão de pedir autorização à Justiça Eleitoral para abrir uma apuração de suspeita de caixa dois, compra de votos, abuso de poder econômico, difamação e várias outras práticas. O atual Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Marco Aurélio foi o único contrário à decisão da Corte. Até a eleição de 2012, o TSE tinha entendimento diferente. As resoluções anteriores que regulavam as eleições diziam: o inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante requisição do Ministério Público ou da Justiça Eleitoral. Para o pleito de 2014, os Ministros mudaram o texto: o inquérito policial eleitoral (sic) somente será instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral. Ou seja, o Ministério Público foi excluído. O relator da nova norma, Ministro José Antônio Dias Toffoli, que irá assumir o comando da corte em maio, afirma que o tribunal mudou o entendimento histórico por duas razões: processos que não tinham o aval inicial da Justiça estavam sendo anulados; outra razão, garantir maior transparência. “O Ministério Público terá que requerer à Justiça. O que não pode haver é uma investigação de gaveta, que ninguém sabe se existe ou não existe. Qualquer investigação, para se iniciar, tem que ter autorização da Justiça”, diz. “A polícia e o Ministério Público não podem agir de ofício. “O atual presidente do tribunal, Ministro Marco Aurélio Mello, foi o único contrário à restrição na corte ao considerar que “o sistema para instauração de inquéritos não provém do Código Eleitoral, mas sim do Código Penal, não cabendo afastar essa competência da Polícia Federal e do Ministério Público.” O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Alexandre Camanho, afirmou que a medida é inconstitucional. “Se o MP pode investigar, então ele pode requisitar à polícia que o faça. Isso também é parte da investigação”, afirmou. A associação não descarta ingressar com medida judicial para derrubar a norma. A nova regra, válida apenas para as eleições de 2014, foi publicada no Diário de Justiça no dia 30 de dezembro e aprovada pelo plenário em sessão administrativa 13 dias antes. O site do TSE divulgou a aprovação da norma à meia noite e vinte do dia 18 de dezembro. Neste ano, serão eleitos presidente da República, governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Para o ministro Dias Toffoli, a medida não irá atolar os juízes eleitorais de processos. “A Justiça nunca faltou.” Às vésperas da eleição de 2012, contudo, o TSE ainda analisava cerca de 1.700 processos referentes a eleição de 2008, mais da metade de corrupção eleitoral. A Procuradoria Geral da República informou que não tem um levantamento de quantos desses processos foram instaurados por iniciativa do Ministério Público. A Polícia Federal também protestou quanto a medida. Para a instituição, contudo, a regra já vale há mais tempo. Em audiência pública no TSE, realizada no ano passado, o delegado Célio Jacinto dos Santos sugeriu que fosse permitido ao órgão abrir inquérito sem a necessidade prévia de requisição ao Ministério Público ou à Justiça Eleitoral. No entanto, o ministro Dias Toffoli ponderou: “Qual a dificuldade da Polícia Federal em encaminhar um ofício ao Ministério Público ou à Justiça Eleitoral fazendo essa requisição?”. Procurada, a PF disse que não iria se manifestar. Para o juiz Marlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), organização que propôs ao Congresso a Lei da Ficha-Limpa após ampla coleta de assinaturas, a decisão é equivocada e pode trazer prejuízo à apuração de irregularidades nas eleições deste ano. “O Ministério Público precisa de liberdade para agir e deve ter poder de requisição de inquéritos. Assim é em todo o âmbito da Justiça criminal e da apuração de abusos. Não faz sentido que isso seja diminuído em matéria eleitoral. Pelo contrário, os poderes deveriam ser ampliados, porque o MP atua justamente como fiscal da aplicação da lei”, critica. Na visão do magistrado, a regra introduzida pelo TSE este ano é inconstitucional, pois “cria uma limitação ao MP que a Constituição não prevê”. “O MP tem poderes para requisitar inquéritos, inclusive exerce a função de controle externo da atividade policial. Entendo que só com uma alteração constitucional se poderia suprimir esses poderes”, explica. Além da questão legal, Reis avalia que a resolução pode contribuir para abarrotar os escaninhos da Justiça Eleitoral. “Em lugar de diminuir, isso vai aumentar o número de demandas apresentadas diretamente ao Judiciário. Vai de encontro a alternativas de agilização e de diminuição das ações”, afirma. O MCCE monitora abusos cometidos na corrida pelo voto. Uma das principais preocupações em ano de eleições gerais, como 2014, é a compra do apoio de lideranças políticas que exercem influência sobre eleitores. “É a compra de votos no atacado”, exemplifica Marlon Reis.

                                                           No dia seguinte, ainda repercutindo a notícia, os mesmos periodistas voltaram ao assunto, in verbis: “O Tribunal Superior Eleitoral tirou do Ministério Público o poder de pedir a instauração de inquéritos policiais para investigação de crimes nas eleições deste ano. A partir de agora, promotores e procuradores terão de pedir autorização à Justiça Eleitoral para abrir uma apuração de suspeita de caixa dois, compra de votos, abuso de poder econômico, difamação e várias outras práticas. Até a eleição de 2012, o TSE tinha entendimento diferente. As resoluções anteriores que regulavam as eleições diziam: “o inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante requisição do Ministério Público ou da Justiça Eleitoral”. Para o pleito de 2014, os ministros mudaram o texto: “O inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral”. Ou seja, o Ministério Público foi excluído. O relator da nova norma, ministro José Antonio Dias Toffoli, que irá assumir o comando da Corte em maio, afirma que o tribunal mudou o entendimento histórico por duas razões: processos que não tinham o aval inicial da Justiça estavam sendo anulados; outra razão, garantir maior transparência. “O Ministério Público terá que requerer à Justiça. O que não pode haver é uma investigação de gaveta, que ninguém sabe se existe ou não existe. Qualquer investigação, para se iniciar, tem que ter autorização da Justiça”, diz. “A polícia e o Ministério Público não podem agir de ofício.”

                                                           Naquela oportunidade, chegamos a advertir que o tema em epígrafe não dizia respeito diretamente a uma das mais importantes atribuições do Ministério Público e, muitas das vezes, de fundamental importância para a persecução criminal: a investigação direta de infrações penais, razão pela qual não vamos enfrentar esta questão (que já o fizemos, aliás), que está para ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal.[2]

                                                           Dissemos, então, que a questão era ainda mais grave: atentemos que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da Constituição Federal).

                                                           Mais de três meses depois, tornamos a escrever trabalho semelhante, desta vez, criticando abertamente o Procurador-Geral da República que somente naquele momento decidiu questionar no Supremo Tribunal Federal a resolução editada pelo Tribunal Superior Eleitoral (tardiamente e sem justificativa plausivel).

                                                           Com efeito, a Resolução 23.396, de dezembro de 2013, estabelecia, entre outras regras, a necessidade de determinação da Justiça Eleitoral para a instauração de inquérito com o objetivo de apurar crime eleitoral. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5104, questiona-se 11 dos 14 artigos da resolução, alegando que há nos dispositivos a usurpação da competência legislativa da União para disciplinar o processo penal, contrariedade aos princípios de juiz natural imparcial e inércia de jurisdição, e injustificada limitação à atuação do Ministério Público Eleitoral. As inconstitucionalidades mais graves decorrem do art. 8º. da resolução, em que se estabelece a necessidade de requisição judicial para a instauração de inquérito eleitoral. “A norma viola, a um só tempo, o princípio acusatório, o dever de imparcialidade do órgão jurisdicional, o princípio da inércia da jurisdição e a titularidade da persecução penal, que a Constituição atribui ao Ministério Público”, afirma o pedido. Alega o chefe do Ministério Público da União que a resolução também cria fase judicial de apreciação sobre notícias-crime não prevista legalmente para outras infrações penais, o que atenta contra o princípio da celeridade. “Imagine-se o enorme risco de prescrição e de ineficiência do processo eleitoral no caso em que, no simples início da investigação, o juiz discorde da instauração de inquérito requisitada pelo Ministério Público e seja, por isso, necessário interpor recurso”, diz a ação.

                                                           Finalmente (e ainda bem que a liminar foi concedida, senão a omissão do Procurador-Geral de Justiça – apontada por nós – poderia ter tido consequências desastrosas face à proximidade das eleições e o trâmite de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade) o Plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu cautelarmente a eficácia do artigo 8º da Resolução 23.396/2013 A decisão ocorreu no julgamento de cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5104. A decisão foi por maioria. Ficaram parcialmente vencidos os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Luiz Fux, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, que deferiam a liminar em maior extensão, e integralmente vencidos os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que indeferiam a liminar. Os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello integraram a maioria, votando pela suspensão apenas do artigo 8º da norma questionada na ADI.

                                                           O Ministro Roberto Barroso, relator da ação, explicou que o sistema acusatório no Brasil permite preservar a necessária neutralidade do Estado-juiz, evitando risco de pré-compreensões sobre a matéria que virá a ser julgada. Além disso, permite a chamada paridade de armas, ou o equilíbrio de forças entre acusação e defesa, que devem ficar equidistantes do Estado-juiz. Dessa forma, a Justiça Eleitoral deve manter sua “necessária neutralidade” no tocante a procedimentos investigatórios. O relator se manifestou no sentido de conceder parcialmente a medida cautelar para suspender a eficácia dos artigos 5º, 6º, 8º e 11º da resolução, e para que fosse dada interpretação conforme a Constituição aos artigos 3º, 4º e 10º. Os artigos 7º e 9º foram considerados constitucionais pelo ministro.

                                                           Ao abrir divergência parcial, o Ministro Teori Zavascki entendeu ser cabível unicamente a suspensão cautelar do artigo 8º da resolução, que condiciona a abertura de inquérito policial eleitoral à determinação da Justiça Eleitoral. O ministro ressaltou que, por configurar uma inovação em relação às normas vigentes em eleições anteriores, este seria o único dispositivo que poderia representar alguma possibilidade de dano que justifique sua impugnação, pois subtrai do Ministério Público sua função constitucional. Segundo ele, esta inovação pode representar a existência de vício de constitucionalidade formal, com a criação de norma processual sem a observância do princípio da legalidade, e também material, ao impor restrições às funções constitucionais do Ministério Público. Igualmente, a Ministra Rosa Weber aderiu à divergência aberta pelo ministro Teori Zavascki para suspender exclusivamente o artigo 8º da resolução. Segundo ela, todos os demais preceitos, além de serem normas de repetição, estão sendo observados em pleitos anteriores sem que se tenha verificado a necessidade de que fossem alterados.

                                                           Para o ministro Luiz Fux, que seguiu integralmente o voto do relator, a instauração de inquérito policial eleitoral apenas mediante autorização da Justiça Eleitoral contraria o dispositivo constitucional que permite o início das investigações pelo Ministério Público sem intervenção judicial. Ele destacou que, em decisões precedentes, o STF considerou que a investigação direta pelo Ministério Público, além de constitucional, assegura plena independência na condução das diligências. Acompanhando o posicionamento do ministro Teori Zavascki, a ministra Cármen Lúcia entendeu que a competência do Ministério Público para apurar crimes eleitorais é restringida pelo artigo 8º da resolução questionada, o que afronta a Constituição Federal. “O ponto nuclear do debate é o direito de o cidadão ter eleições honestas, corretas, com lisura, e que eventuais falhas possam ser avaliadas e sanadas”, afirmou em seu voto.

                                                           JÁ o ministro Ricardo Lewandowski, o artigo 8ª da resolução afronta dispositivo explícito da Constituição Federal que autoriza o Ministério Público a requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. “Requisitar é uma expressão plena de significado, que não se confunde com requerer, que depende da autorização de alguma autoridade. Aqui se trata de uma prerrogativa do Ministério Público, de caráter incondicionado”, destacou. O ministro Marco Aurélio acompanhou integralmente o voto do relator, Roberto Barroso, deferindo a liminar para suspender, além do artigo 8º, outros artigos da resolução. Segundo seu voto, o TSE não pode atuar como legislador positivo. “Não vejo a Justiça Eleitoral como um ‘superórgão’, ela se submete também à legislação, e o poder que ela tem é de expedir instruções para permitir a execução do código eleitoral”. Também para o ministro Celso de Mello, as normas publicadas pelo TSE se destinam a dar execução à lei eleitoral, e sua prevalência pressupõe sua legalidade e constitucionalidade, ambas, sustenta, à primeira vista atingidas pelo artigo 8º da resolução questionada. Ao prever autorização do Judiciário para a abertura de investigação criminal no âmbito eleitoral, o ministro entende que o dispositivo ofende as normas que tratam das atribuições do Ministério Público. Ele acompanhou o voto do ministro Teori Zavascki.

                                                           Ao votar pela suspensão total das normas impugnadas, o presidente do Tribunal, ministro Joaquim Barbosa, ressaltou que o regramento relativo à instauração de inquéritos não é proveniente do sistema normativo eleitoral, mas sim do sistema processual penal. Segundo ele, o estabelecimento de regras para a instauração e tramitação do inquérito policial eleitoral extrapola o poder regulamentar complementar conferido à Justiça Eleitoral. No seu entendimento, as normas impugnadas violam as prerrogativas de requisitar diligências investigatórias e de instaurar inquérito policial atribuídas pela Constituição Federal ao Ministério Público. “Não se pode admitir que um ato normativo infraconstitucional, como é a resolução, suprima ou restrinja os poderes constitucionalmente atribuídos ao parquet”, argumentou. 

Ora, qual a dúvida?

Com efeito, diz o art. 129, VIII da Constituição Federal que são funções do Ministério Público, dentre outras, “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”, cabendo-lhe “exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.” (inciso IX).

                                                           Como se nota pelo inciso I do art. 129, a Constituição deu ao Ministério Público, com exclusividade, a titularidade da ação penal pública e, como diz Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “não seria razoável que a Constituição concedesse o direito de ação[3] com uma mão e retirasse os meios de ajuizá-la adequadamente com a outra. Por isso, deve-se admitir que o Ministério Público possa colher os elementos de convicção necessários para que sua denúncia não seja rejeitada.”[4] Acrescento: inclusive, se for necessário, ou seja, se não houver justa causa para o exercício da ação penal (indícios suficientes da autoria e prova da existência do crime eleitoral), requisitando o inquérito policial à Polícia Federal, órgão com atribuições para investigar crimes eleitorais (art. 144, § 1º., I, primeira parte da Constituição).

                                                           Aqui, mutatis mutandis, acolhe-se a teoria dos poderes implícitos, na forma explicada pelo Ministro Celso de Mello: “Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional – e não aos processos de elaboração legislativa – assinala que, ´Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos` (grifei). Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (Comentários à Constituição Federal Brasileira, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitos – após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO – assinala: ´Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que – em se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (…). Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular. Este, o princípio; esta, a regra. Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte – o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (…).” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2 – Distrito Federal).

                                                           Ora, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – LOMP), no seu art. 26, IV, dispõe caber ao Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los”. Excluiu-se o inquérito policial que tenha por objeto apurar um crime eleitoral?

                                                           Comentando este artigo assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain: “Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subsequente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta consequência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.” (Grifo nosso).[5]

                                                           Continuando a análise da referida Lei Orgânica temos no seu art. 27, verbo ad verbum: “Art. 27 – Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: I – pelos poderes estaduais e municipais; II – pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; “(omissis). Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: I – receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas; II – zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos.”

                                                           Vemos, destarte, que não há dificuldades em se admitir a requisição pelo Ministério Público de instauração de procedimentos administrativos investigatórios de natureza criminal (trate-se de qualquer crime, inclusive eleitoral), desde que haja a necessidade da apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque institucional das atribuições ministeriais. Portanto, não podemos conceber que se diga ser defeso ao Ministério Público requisitar a investigação e a coleta de atos investigatórios para um futuro processo criminal, se houver justa causa, como se disse: indícios suficientes da autoria e prova da existência do crime eleitoral.                       

                                                           De lege lata, podemos citar o Estatuto do Idoso – Lei nº. 10.741/03: “Art. 74. Compete ao Ministério Público: (…)  VI – instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, para a apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção ao idoso.”

                                                           Costuma-se opor ao entendimento acima esposado o art. 144, § 4º. da Constituição Federal, cuja redação diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União. Ocorre que tal atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil (nem da Federal[6]), sendo esta a correta interpretação deste dispositivo constitucional, pois não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas: “Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[7]

                                                           A propósito, Karl Larenz, após advertir que se aplicam os princípios interpretativos gerais das leis também à interpretação da Constituição, ensina que “o contexto significativo da lei determina, em primeiro lugar, da mesma maneira, a compreensão de cada uma das frases e palavras, tal como também, aliás, a compreensão de uma passagem do texto é determinada pelo contexto.” Esclarece este autor que “uma lei é constituída, as mais das vezes, por proposições jurídicas incompletas – a saber: aclaratórias, restritivas e remissivas -, que só conjuntamente com outras normas se complementam numa norma jurídica completa ou se associam numa regulação. O sentido de cada proposição jurídica só se infere, as mais das vezes, quando se a considera como parte da regulação a que pertence.”[8]

                                                           Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.”[9] 

                                               Partindo-se desse pressuposto, não nos esquecemos que ao conceder exclusividade ao Ministério Público para a propositura da ação penal pública (art. 129, I), a Constituição Federal implicitamente outorgou à Instituição a possibilidade de requisitar inquérito policial para respaldar a respectiva peça acusatória.

Lênio Luiz Streck e Luciano Feldens escreveram: “Recorrentemente, aqueles que desafiam a legitimidade do Ministério Público para proceder a diligências investigatórias na seara criminal esgrimem o argumento de que tal possibilidade não se encontraria expressa na Constituição, locus político-normativo de onde emergem suas funções institucionais. Trata-se, na verdade, de uma armadilha argumentativa. Esconde-se, por detrás dessa linha de raciocínio, aquilo que se revela manifestamente insustentável: a consideração de que as atribuições conferidas ao Ministério Público são taxativas, esgotando-se em sua literalidade mesma. Equívoco, data venia, grave.[10] 

                                               Ainda bem a propósito, veja-se a lição de Diego Diniz Ribeiro:          “Sendo assim, respaldando-se na teoria dos poderes implícitos, conclui-se que, se o constituinte atribuiu a uma determinada instituição uma atividade-fim, também está ele, ainda que implicitamente, outorgando-lhe a atividade-meio, pois, do contrário, aquela atividade restaria prejudicada, não passando a disposição legal que a previu de uma determinação vazia e sem efetividade prática. Sendo assim, de tal assertiva se extrai a conclusão lógica de que se o parquet pode o mais, que é a interposição da ação penal pública, também pode ele, ainda que de forma implícita, o menos, qual seja, a investigação criminal pré-processual, pois, do contrário, o permissivo constitucional que outorga ao MP a função titular da ação penal seria totalmente inócuo, não passando de mero discurso retórico.” (Boletim do IBCCrim nº. 121, dezembro/2002).

                                                           Da mesma forma pensa o já citado Marcellus Polastri Lima: “Como já salientamos, de há muito Frederico Marques defendia que o MP poderia, como órgão do Estado-administração e interessado direto na propositura da ação penal, atuar em atividade investigatória.”     Até Júlio Fabbrini Mirabete afirmava: “Como titular do jus puniendi, nada impede que o Ministério Público possa requisitar informações e documentos para instruir procedimentos (artigo 129, IX).[11]

                                                           Objetamos também o seguinte: mesmo em se admitindo que a Lei Orgânica do Ministério Público não permitisse a requisição de inquérito policial (o que, absolutamente, não é verdade), ainda assim, por força do art. 80 da referida Lei Federal poderíamos utilizar, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal nº. 75/93), que “não deixa margem de dúvidas quanto à operacionalização das investigações criminais diretas no âmbito do Ministério Público”, como argumenta Polastri, no livro já aludido (p. 91), referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos arts. 7º., I e 8º. in verbis: “Art. 7º. – Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais: (…) II – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas.” “Art. 8º. – Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: (omissis) II – requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta.

                                                           Há vários sistemas jurídicos alienígenas que ao priorizarem em suas reformas processuais penais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet. No Direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a Polícia detém o poder de conduzir as investigações preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal).

                                                           Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal. Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal: “StPO § 160: (1) (omissis)(2). A Promotoria de Justiça deverá averiguar não só as circunstâncias que sirvam de incriminamento, como também as que sirvam de inocentamento, e cuidar de colher as provas cuja perda seja temível.(3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial. § 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.”

                                                           Na Itália não é diferente no seu “Codice di Procedura Penale”: “Art. 326 – O Ministério Público e a Polícia Judiciária realizarão, no âmbito de suas respectivas atribuições, a investigação necessária para o termo inerente ao exercício da ação penal.” “Art. 327 – O Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da Polícia Judiciária.

                                                           Em Portugal, conforme lição de Germano Marques da Silva, “os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas funções processuais, nomeadamente na investigação criminal que é levada a cabo no inquérito, e fazem-no sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional (arts. 56 e 263).”[12] Ainda em solo lusitano, a Lei Orgânica do Ministério Público, no seu art. 3º., diz competir ao Ministério Público “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e “ fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.

                                                           Em França não é diferente, à vista do art. 41 do respectivo Código de Processo Penal: “O Procurador da República procede ou faz proceder a todos os atos necessários à investigação e ao processamento das infrações da lei penal. Para esse fim, ele dirige as atividades dos oficiais e agentes da polícia Judiciária dentro das atribuições do seu tribunal.”   

                                                           Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público requisitar a instauração de inquérito policial para investigar crime eleitoral (ou, caso se trate de contravenção penal eleitoral, requisitar a realização do termo circunstanciado, previsto no art. 69 da Lei nº. 9.099/95).                        

                                                           Não esqueçamos que o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Dentro desta perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica[13].

Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório e, principalmente, como gestor da prova ou de atos investigatórios. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, “hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar[14], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora[15], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento[16].

                                                           Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido José Frederico Marques: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (…) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[17]

É bem verdade que já houve no Brasil a chamada ação penal ex officio, prevista expressamente na Lei n.º 4.611/65 (revogada pela Lei nº. 9.099/95) e nos arts. 26 e 531 do Código de Processo Penal, onde se permitia que a ação penal fosse iniciada por Portaria da autoridade judiciária: era o chamado procedimento “judicialiforme” previsto para as contravenções penais e para as lesões e homicídios culposos com autoria conhecida nos primeiros quinze dias. Estes dois últimos artigos do código processual evidentemente não foram recepcionados pela nova ordem constitucional, à vista do art. 129, I da Carta Magna.[18]

Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzimos a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, da atividade persecutória[19]. Um dos argumentos mais utilizados para a admissão do Juiz na colheita da prova é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[20]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.

Como ensina Muñoz Conde, “el proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[21]

Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade…)[22] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”. Para o mestre italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´[23]”.

Não se pode permitir uma perigosa e desaconselhável investigação criminal determinada unicamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[24] caracterizado, como diz Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga[25], sob pena, como afirma Luiz Flávio Gomes, de se criar “uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz inquisidor, nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. (…) Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.[26]

É evidente que o dispositivo da citada resolução do Tribunal Superior Eleitoral é teratológico, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração da justiça. (…) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[27]

Parece-nos claro que há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade[28] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal. Como se disse acima, neste sistema estão divididas claramente as três funções básicas da Justiça Penal, quais sejam: o Ministério Público acusa, o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[29]

Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[30] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas absolutamente indispensável um Juiz imparcial.

Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (…) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[31]

E aqui há um outro gravíssimo problema: como se sabe, os arts. 69, VI, 75, parágrafo único e 83 do Código de Processo Penal estabelecem como um dos critérios determinadores da competência exatamente a prevenção. Por ela, e em linhas gerais, qualquer ato praticado por um Juiz de Direito, ainda que anterior ao processo torna-o prevento (o Juízo, evidentemente). Entendemos que tais disposições não deveriam constar de um diploma processual de um Estado Democrático de Direito, pois a prevenção, longe de atrair a competência judicial, deveria excluí-la, visto que a prática deste ato judicial anterior ao processo criminal atinge inevitavelmente a imparcialidade do julgador. Não por menos que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem decidindo reiteradamente pela exclusão do julgador que de alguma forma interferiu na fase investigatória, segundo nos informa Aury Lopes Jr.

Para este autor, “sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em direção à figura do juiz garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão supra partes, está sendo tomado o caminho errado do juiz instrutor. E, mais: a imparcialidade do julgador está comprometida não só pela atividade de reunir material ou estar em contato com as fontes de investigação, mas pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão[32], autorização para intervenção telefônica[33], etc.).”[34]  

                                                           O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu que “o princípio constitucional do justo processo legal manda que cada causa tenha um magistrado competente para decidi-la”, explicou. Neste julgamento, ao votar pela concessão do habeas corpus, o relator, Ministro César Peluso afirmou que “o juiz já teria feito um pré-julgamento do réu ao receber a ação penal”. “Ele teve um contato com o réu que não foi superficial”. A sentença condenatória penal estaria, segundo o Ministro, “repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. O Ministro argumentou que houve quebra da imparcialidade do julgamento. “Ele teve um contato com o réu que não foi superficial”, alegou Peluso. A sentença condenatória penal estaria, segundo o Ministro, “repleta de remissões aos atos das investigações prévias, além de ter opiniões anteriormente concebidas e expostas”. (Habeas Corpus 94641).

                                                           A propósito, importante transcrever, pelo brilhantismo do subscritor, artigo de Augusto Aras, Professor Doutor da Faculdade de Direito da UnB, Subprocurador-Geral da República e Ouvidor-Geral do Ministério Público Federal:

                                                           “No dia 30/12/2013, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) publicou parte das Instruções destinadas a explicitar a legislação eleitoral para o pleito de 2014. Dentre elas se encontra a Resolução nº 23.396 que dispõe sobre Crimes Eleitorais, abordando a atividade da polícia judiciária, a notícia-crime e o inquérito policial. Consta do art. 8º que “o inquérito policial eleitoralsomenteserá instaurado mediante determinação da Justiça Eleitoral, salvo a hipótese de prisão em flagrante. “De logo, aventou-se a hipótese de o TSE ter vedado ao Ministério Público Eleitoral investigar e/ou requisitar a instauração de inquérito policial, a pretexto de que somente o juiz poderia fazê-lo. A Constituição Federal de 1988, seguindo a tradição, assegurou a harmonia e a independência entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Somente ao Legislativo cabe a edição de Leis, não se admitindo aos demais Poderes inovar o ordenamento jurídico, sob pena de usurpação. Outrossim, a Carta diz competir ao Executivo o poder de regulamentar a Lei, explicitando-a, para sua fiel execução. Igual competência tem o Judiciário Eleitoral para “expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código” Eleitoral, ora vigente desde 1965.Neste diploma, o art. 355 dispõe: “As infrações penais definidas neste Código são de ação pública”, cujo titular, nos termos do art. 129, I da CF/88, é o Ministério Público. A Lei Complementar 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União) impõe a mesma atribuição aoparquet(art. 6º, V) e disciplina a função eleitoral (art. 72).A ordem jurídica impõe ao art. 8º uma interpretação conforme a Constituição para reconhecer a existência, validade e eficácia das investigações e requisições do MP Eleitoral, na esteira de toda a jurisprudência da Suprema Corte e do próprio TSE, tudo isso reafirmado pela soberania popular externada pelo legítimo representante do povo brasileiro, o Congresso Nacional, ao rejeitar a PEC 37.Neste aspecto, nada de novo nofront!” ( http://jornalggn.com.br/noticia/tse-nao-pode-avancar-nas-atribuicoes-do-mpf-por-augusto-aras).

                                                           Para concluir, ressalte-se o que dispõe o art. 356 do Código Eleitoral (recepcionado como Lei Complementar, por força do art. 121 da Constituição Federal), segundo o qual “todo cidadão que tiver conhecimento de infração penal deste Código deverá comunicá-la ao juiz eleitoral da zona onde a mesma se verificou. § 1º Quando a comunicação for verbal, mandará a autoridade judicial reduzi-la a termo, assinado pelo apresentante e por duas testemunhas, e a remeterá ao órgão do Ministério Público local, que procederá na forma deste Código. § 2º Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou outros elementos de convicção, deverá requisitá-los diretamente de quaisquer autoridades ou funcionários que possam fornecê-los.”

                                                           Portanto, Ministro Dias Toffolié preciso estudar o Direito Processual Penal à luz da Constituição Federal, senão (ironias à parte) Vossa Excelência acaba por dar razão àqueles que lhe chamam de incompetente e ao ex-presidente Lula de oportunista ao nomeá-lo Ministro do Supremo Tribunal Federal, nada obstante em 1994 e 1995 ter sido Vossa Excelência reprovado no concurso para Juiz de Direito do Estado de São Paulo (o que, diga-se de passagem, não significa nada, nem mérito ou demérito); ou que ele foi generoso (o então Presidente) por ter sido Vossa Excelência, entre os anos de 1995 a 2000, assessor jurídico da liderança do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados; ou por ter sido ele apenas conveniente ao nomear para a Corte Constitucional um ex-advogado do Partido dos Trabalhadores em 1998, 2002 e 2006; e, por fim, por ter reconhecido o trabalho de Vossa Excelência (de janeiro de 2003 a julho de 2005), como subchefe da área de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, durante a gestão do ex-Ministro José Dirceu.

                                                           Oxalá seja o Ministro (e os demais que o acompanharam nesta desastrosa empreitada) desautorizado pelo Plenário da Suprema Corte, quando do julgamento do mérito.



[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Na sessão do dia 11 de junho de 2007, por um pedido de vista do Ministro Cezar Peluso, foi suspenso o julgamento. A matéria está sendo debatida por meio do julgamento de um pedido de Habeas Corpus (HC 84548) do empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, que é acusado de ser o mandante do assassinato do ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, ocorrido em janeiro de 2002. Até o momento, já proferiram seus votos o relator do habeas corpus, Ministro Marco Aurélio e o Ministro Sepúlveda Pertence. O primeiro se posicionou contra o poder de investigação do Ministério Público, alegando que essa atribuição é exclusiva da Polícia. O Ministro Pertence rejeita a tese de inconstitucionalidade das investigações realizadas pelo MP. Para o Ministro Marco Aurélio, o “inquérito policial” acabou se tornando um “inquérito ministerial”. “A sobreposição notada, procedendo o Ministério Público, a um só tempo, a investigação e a propositura da ação penal, não se coaduna com a ordem jurídica em vigor [no Brasil]”, disse ele. Para o Ministro, “o caso revelado neste processo é emblemático”. Ele explicou que já havia processo devidamente formalizado na Primeira Vara da Comarca de Itapecerica da Serra, em São Paulo. “Paralelamente, o Ministério Público veio a formalizar procedimento investigatório, colhendo elementos, submetendo os atos a sigilo e designando promotor de Justiça para a presidência das investigações.” O Ministro Sepúlveda Pertence disse que o MP pode complementar as informações relativas às investigações. “Eu rejeito a argüição abstrata de inconstitucionalidade de qualquer ato investigatório do Ministério Público.” (Fonte: STF).

[3] Na verdade, um dever jurídico  ou de Estado, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade que rege a ação penal pública.

[4] Lei dos Juizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 91.

[5]Comentários à LeiOrgânicaNacional do MinistérioPúblico, ObraJurídicaEditora, ps. 204/205.

[6] A Polícia Federal tem, com exclusividade, apenas a prerrogativa de exercer as funções de polícia judiciária da União, função que não se confunde com a de apurar crimes (a distinção é feita pela própria Constituição Federal (art. 144, § 1º., I e IV). As funções de polícia judiciária compreendem, por exemplo, aquelas previstas no art. 13, I, II e III do Código de Processo Penal. No processo de Extradição nº. 974, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, destacou o papel da Polícia Federal como “polícia judiciária da República”; nesta condição, destacou o Ministro que a instituição precisaria “se aparelhar para cumprir suas atribuições constitucionais.” Entre elas, a de dar totais condições para o bem-estar daqueles que se encontram presos em suas unidades prisionais. “A Polícia Federal há de se aparelhar visando ao cumprimento das atribuições constitucionais – entre estas, as que encerram a qualificação de polícia judiciária”, anotou o Ministro.

[7] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 165.

[8]Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997 (tradução portuguesa de José Lamego).

[9]EstudosJurídicosemHomenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 1992, p. 239.

[10] Crime e Constituição – A Legitimidade da Função Investigatória do Ministério Público, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 81.

[11]Código de ProcessoPenal Interpretado, São Paulo: Atlas, 8ª ed., 2001, p. 560.

[12]Curso de ProcessoPenal, Vol. I, Lisboa: EditorialVerbo, 1996.

[13] Como se sabe, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a definição de Miguel Fenech: “Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión.. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”. Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo”. (Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952,  p. 457).

[14] Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p. 230.

[15] Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

[16] José António Barreiros, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.

[17]Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Forense, p. 64.

[18] Estranhamente, porém, a Lei nº. 11.101/05 (Falências), no art. 185, manda aplicar os arts. 531 a 540 do Código de Processo Penal; na verdade, devem ser aplicados, tão-somente, os arts. 538 e 539 (procedimento sumário).

[19]Sobre a atividade instrutória do Juiz no ProcessoPenal, remetemos o leitor a duas obras: “A Iniciativa Instrutória do Juiz no ProcessoPenal”, de Marcos Alexandre Coelho Zilli, EditoraRevista dos Tribunais, 2003 e “Poderes Instrutórios do Juiz”, de José Roberto dos Santos Bedaque, EditoraRevista dos Tribunais, 2ª. ed., 1994..

[20]Sobre a matéria há obras importantes, a saber, por exemplo: “A Busca da VerdadeReal no ProcessoPenal”, de Marco Antonio de Barros, EditoraRevista dos Tribunais, 2002; “O Mito da VerdadeReal na Dogmática do ProcessoPenal”, de Francisco das Neves Baptista, EditoraRenovar, 2001 e “La verdad en el Proceso Penal”, de Nicolás Guzmán, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2006.

[21] Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

[22]Classicamente, a verdade se define como adequação do intelecto ao real. Pode-se dizer, portanto, que a verdade é uma propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam.” (Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 241). “A porta da verdade estava aberta / Mas só deixava passar / Meia pessoa de cada vez / Assim não era possível atingir toda a verdade. / Porque a meia pessoa que entrava / Só trazia o perfil de meia verdade / E a segunda metade / Voltava igualmente como perfil / E os meios perfis não coincidiam. / Arrebentavam a porta, derrubavam a porta, / Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. / Era dividida em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar. / Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.” (Carlos Drummond de Andrade, do livro “O corpo”, editora Record).Não tenho a menor noção do que é a verdade, mulher! Caguei pra verdade, a verdade é uma coisa escrota, uma nojeira filosófica inventada pelos monges do século XIII, que ficavam tocando punheta nos conventos, verdade o cacete, interessa a objetividade.” (“Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, Rio de Janeiro: Objetiva, p. 65).

[23] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, pp. 44 e 45.

[24] Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe: “Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus.”  Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: “Ninguém me telefona… foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (…) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano…” (in RevistaCarosAmigos – As GrandesEntrevistas, dezembro/2000).

[25] Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

[26]Crime Organizado, São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133

[27] Lopes Jr., Aury, InvestigaçãoPreliminar no ProcessoPenal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.

[28] Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

[29] Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

[30] Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo: Malheiros, 2ª. ed., 2003, p. 51. Também neste sentido, veja-se Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como elemento de seu Papel SocialinO Trabalho“, encarte de doutrina da Revista “Trabalho em Revista”, fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista “Trabalho & Doutrina”, nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.

[31] A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal, obra organizada por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho, Porto Alegre: Notadez, 2006, p. 20.

[32] Art. 242, CPP

[33] Art. 3º. da Lei nº. 9.296/96.

[34]Boletim IBCCRIM – Ano 11 – nº. 127 – Junho/2003.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Finalmente a Cf/88 prevaleceu: TSE, MP e o sistema acusatório. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/finalmente-a-cf88-prevaleceu-tse-mp-e-o-sistema-acusatorio/ Acesso em: 21 nov. 2024
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