Necessidade de fixação de standards[1] probatórios para demonstrar a violência doméstica de lesão, em sede de prisão flagrancial ou no curso das investigações policiais e apontamentos para superações, balizadas pelos diplomas constitucionais-legais e entendimentos dos Tribunais Superiores
Palavras chaves: Fotografia. Lesão Corporal no âmbito doméstico. Prova admitida licitamente e legítima que não viola a ordem pública, os costumes e a moral, devendo ser sopesada. Eventual indício ou alegação de fraude ou edição caberá o ônus de provar àquele quem a alega. Princípio do livre convencimento motivado. Perícia Direta ou Perícia Indireta.
Por Joaquim Leitão Júnior[2]
Questão complexa que tem se apresentado no âmbito das Delegacias de Polícia, na doutrina e jurisprudência, é se a fotografia do rosto lesionado ou de qualquer outra parte do corpo da vítima basta para provar violência doméstica ou não?
Em recente julgamento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça posicionou no sentido de que a simples fotografia do rosto machucado da vítima, não periciada, não constituiria prova suficiente de materialidade para condenação por crime de violência doméstica, sendo o exame de corpo de delito uma exigência legal.
No caso concreto julgado, a vítima não foi submetida ao exame de corpo de delito e levou aos autos fotografia do próprio rosto lesionado.
Na ocasião como já dito, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu uma ordem em Habeas Corpus para absolver um homem que foi condenado a cumprir 03 (três) meses e 15 (quinze) dias em regime semiaberto pelo crime de lesão corporal em âmbito de violência doméstica.
Em juízo de 1º grau, o réu negou a agressão, relatando que tentou se desvencilhar da companheira ao ser agredido com uma panela, unhadas e empurrões. A vítima não apresentou laudo de exame de corpo de delito, mas incluiu como prova uma foto de seu rosto machucado.
Conforme informações extraídas do Conjur, o juízo de primeira instância considerou que essa prova, aliada à palavra da vítima, era suficiente para a condenação. Na mesma direção, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal confirmou a decisão, destacando que as lesões constatadas nas fotografias seriam compatíveis com o depoimento da vítima de que o réu lhe desferiu soco no rosto.
Contudo, o relator do recurso no STJ, o desembargador convocado Olindo Menezes, observou que o exame de corpo de delito é indispensável nas infrações que deixam vestígios, conforme prevê o artigo 158 do Código de Processo Penal.
Vale realçar que, o artigo 158 do Código de Processo Penal preconiza que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Nesse ponto ainda, a lei processual penal prevê a prioridade à realização do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra mulher.
O desembargador ainda invocou o parágrafo 3º do mesmo artigo a indicar que “serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”, contudo nada disso consta no caso julgado, em desfavor do réu. O desembargador assinalou que “no caso, onde nada disso ocorreu, uma simples fotografia do rosto da vítima, não periciada, não constitui prova suficiente de materialidade, senão um indicio leve, sendo a absolvição de rigor, portanto”, concluiu o relator, sendo a votação unânime.
Esses foram os eixos centrais que formou o precedente em estudo.
A propósito, vejamos a redação do art. 158, do CPP:
“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
Parágrafo único. Dar-se-á prioridade à realização do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva: (Incluído dada pela Lei nº 13.721, de 2018)
I – violência doméstica e familiar contra mulher; (Incluído dada pela Lei nº 13.721, de 2018)
II – violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. (Incluído dada pela Lei nº 13.721, de 2018)”
Diante dessas análises do julgado e da realidade vivenciada, a grande preocupação que permeia a discussão são que fotografias podem ser manipuladas digitalmente, inclusive com emprego de técnicas de maquiagem, forjar hematomas, autolesões, etc.
Devemos partir do pressuposto de que, a fotografia é meio de prova admitido legitimamente e licitamente que não viola a ordem pública, os costumes e a moral. Eventual indício ou alegação de fraude ou edição caberá o ônus de provar àquele quem a alega, podendo ser empregada pelo princípio do livre convencimento motivado.
Por outro lado, se cogitássemos quanto a eventual vídeo de lesão apresentado pela vítima, testemunhas, terceiros (ambientes privados) e até mesmo de vídeo das lesões obtidas em captação de câmeras de vigilância em ambiente público, entendemos que a análise encamparia outro entendimento, mormente se comprovado a fidedignidade do seu teor, embora não seja a discussão central (até para realização de perícia indireta).
Não podemos ignorar a situação de vulnerabilidade da vítima no âmbito doméstico, mas também ao mesmo tempo, não podemos deixar de observar as exigências constitucionais e legais no campo da persecução penal-constitucional e criar um procedimento investigatório e um processo penal apartado de toda legislação e preceitos constitucionais.
Pois bem!
É cediço que há possibilidade da realização de exame indireto de corpo de delito, como sublinhado no julgamento, com base em prontuários médicos da vítima. Essa possibilidade advém diretamente da redação do artigo 12, §3º, da Lei Maria da Penha (são admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde). Nesse ponto, poderíamos ter esse caminho, a fim de atender o art. 158, do CPP.
Outro caminho interessante a ser trilhado para superarmos estas problemáticas no campo probatório, seria a criação pelo Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil do Brasil – CONCPC ou por cada instituição de Polícia Judiciária de um protocolo ou padrão de procedimento para que as delegacias de todo o país passem a adotar, como padrão de atendimento no âmbito de violência doméstica, com a realização de auto de constatação de lesões corporais nos casos de violência física contra as mulheres, inclusive com tomada de fotografias sob vários ângulos, caso autorizado pela vítima de forma expressa, sem prejuízo de o legislador ordinário positivar e tornar a obrigatoriedade desse procedimento na própria Lei Maria da Penha.
A propositura deste protocolo ou padrão de procedimento estaria em consonância com o artigo 159 do Código de Processo Penal ao fixar o exame de corpo de delito a ser realizado por perito oficial ou, na falta deste (parágrafo primeiro), estabelece a possibilidade de sua feitura por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. Destaca-se que regra geral, não há profissionais médicos nas delegacias de polícia, motivo pelo qual, a rigor, o auto não poderia substituir a perícia técnica.
Obviamente, como dito, o auto de constatação não substituiria a prova pericial, todavia, seria empregado como complemento de corroboração da palavra da vítima a ilustrar a materialidade delitiva e trazer maior segurança na coleta de elementos informativos e/ou probatórios para a situação.
Nesse sentir, as delegadas de polícia Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin apontam interessante ponto de vista de solução nessa direção:
“Seria então possível que, dentro da própria delegacia de polícia, no momento da confecção do boletim de ocorrência ou do pedido de medida protetiva de urgência, dois policiais fossem indicados pela autoridade policial para que realizassem um “exame provisório” e constatassem as lesões aparentes apresentadas pela vítima. Após essa análise, tomadas fotografias, as lesões aparentes seriam descritas em um auto de constatação de lesões corporais” (MORETZSOHN; BURIN, 2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-11/questao-genero-lesoes-violencia-domestica-podem-comprovadas-fotos).
Em pesquisas pela rede mundial de computadores, pudemos constatar que esse procedimento já é realidade em algumas unidades de polícia judiciária no estado do Paraná, onde é confeccionado um “auto de constatação provisória de lesões corporais”, contendo a assinatura da mulher vítima de violência doméstica, da autoridade policial e de duas testemunhas, além da descrição sumária das lesões e fotografias da lesão, quando autorizada sua tomada pela vítima.
Aliás, citando novamente as delegadas Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin em brilhante artigo sobre a temática, as mesmas pontuaram que:
“Um caminho viável é a determinação de exame indireto de corpo de delito com fundamento nos prontuários médicos da vítima. Essa possibilidade decorre expressamente do disposto no artigo 12, §3º, da Lei Maria da Penha (são admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde). Mas, de novo, nem sempre a mulher se submete a atendimento médico. Continua-se sem prova da materialidade.
Diante desses casos, é comum que autoridades policiais façam juntar aos autos dos inquéritos fotos das lesões, sejam fotos colhidas na própria delegacia, quando do registro do caso, sejam fotos fornecidas pela própria vítima. Ocorre que, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a utilização de fotografia da vítima não é o bastante para comprovar a violência sofrida.
[…]
A ideia de proteção das mulheres em situação de vulnerabilidade familiar não escusa o sistema de persecução penal de fazer provas adequadas e de respeitar o devido processo legal. A propósito, vale lembrar que os precedentes do STJ que determinam a especial valoração da palavra da vítima em casos de violência doméstica e familiar não determinam que a narrativa da vítima seja bastante para justificar condenações. Exige-se sempre que elementos outros corroborem as suas declarações.
Como, então, compatibilizar as exigências do devido processo legal e a realidade de que inúmeros são os casos em que a mulher não se submete a exame de corpo de delito nem a atendimento médico?
Nossa sugestão é que as delegacias de todo o país passem a adotar, como protocolo de atendimento, a realização de auto de constatação de lesões corporais nos casos de violência física contra as mulheres. A obrigatoriedade desse proceder poderia ser incorporada na própria Lei Maria da Penha.
Não que o auto de constatação pudesse substituir a prova pericial. Ele serviria como elemento corroborador da palavra da vítima.
Essa afirmação decorre do fato de o artigo 159 do Código de Processo Penal prever que o exame de corpo de delito será realizado por perito oficial ou, na falta deste (parágrafo primeiro), por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. Por certo não há profissionais médicos nas delegacias de polícia, de modo que o auto não poderia substituir a necessidade de perícia.
Seria então possível que, dentro da própria delegacia de polícia, no momento da confecção do boletim de ocorrência ou do pedido de medida protetiva de urgência, dois policiais fossem indicados pela autoridade policial para que realizassem um “exame provisório” e constatassem as lesões aparentes apresentadas pela vítima. Após essa análise, tomadas fotografias, as lesões aparentes seriam descritas em um auto de constatação de lesões corporais.
Tal procedimento já é adotado em algumas unidades de polícia judiciária no estado do Paraná, em que é confeccionado um “auto de constatação provisória de lesões corporais” contendo a assinatura da mulher, da autoridade policial e de duas testemunhas, além da descrição sumária das lesões e fotografias, quando autorizada sua tomada pela vítima.
Cremos que, ao assim proceder, estar-se ia compatibilizando as exigências do devido processo legal com a necessária proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, promovendo-se a adequada persecução penal das pessoas agressoras.” (MORETZSOHN; BURIN, 2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-11/questao-genero-lesoes-violencia-domestica-podem-comprovadas-fotos).
Não podemos olvidar que a atualmente, as fotografias possuem metadados que são dados que apontam algumas informações importantes como localização geográfica, dia, horário etc.
O emprego da fotografia como prova é permitido em nosso sistema processual penal e uma fotografia aliada aos demais elementos, inclusive vídeos sem indícios que qualquer manipulação, juntamente com testemunhos podem convergir para uma possível condenação, dentro do princípio do livre convencimento motivado, mormente se presente o exame de corpo de delito, direto ou indireto, que é reputado como indispensável quando a infração deixar vestígios.
Devemos alertar que, qualquer elemento de prova, a grosso modo, é passível de manipulação em maior ou menor escala, por isso o legislador positivou a cadeia de custódia, colimando evitar isso ou ao menos dificultar essa possibilidade de manipulação.
Acrescido a isto, entendemos que não basta apenas o argumento simplista de que a fotografia seja possível de editar ou forjar para se recusar sua utilização, sendo imperioso a comprovação e o ônus daquele que alega essa situação.
Conjugado a premissa supra, pelo princípio do livre convencimento motivado, é conferido ao intérprete se vale de qualquer meio de prova admitido em direito, desde que não violem a ordem pública, os costumes e a moral, lembrando que em caso de infrações que deixem vestígios, a regra deve ser a realização de perícia direta ou indireta. Não podemos perder de mente que essa regra ao longo do tempo, já sofreu temperamentos e flexibilizações na forma de interpretar, tanto pela doutrina quanto pelos Tribunais pátrios, devendo tal imperativo não ser ignorado em âmbito de violência doméstica.
Mais do que nunca é preciso repensarmos em standards probatórios para demonstrar a violência doméstica de lesão, em sede de prisão flagrancial ou no curso das investigações policiais e apontamentos para superações, balizadas pelos diplomas constitucionais-legais e entendimentos dos Tribunais Superiores.
Por todo o condensado, não descartamos que haja necessidade de nova análise mais aprofundada por parte da doutrina e dos próprios Tribunais Superiores sobre o (im)possibilidade do emprego da fotografia nessas circunstâncias.
Das considerações finais
Ante o exposto, para superar a problemática da comprovação da lesão por meio de fotografias, acreditamos que as possibilidades aventadas seriam de extrema importância, a fim de evitar injustiças em face da vítima e também em face de agressores aos quais pesam às imputações iniciais, podendo ser alvos de simulações da suposta vítima – embora isso seja exceção à regra.
Por outro lado, se cogitássemos quanto a eventual vídeo de lesão apresentado pela vítima, testemunhas, terceiros (ambientes privados) e até mesmo em captação de câmeras de vigilância em ambiente público, entendemos que a análise encamparia outro entendimento, mormente se comprovado a fidedignidade do seu teor, embora não seja a discussão central (com a possibilidade de realização de perícia indireta).
Notadamente, devemos repensar em standards probatórios para demonstrar a violência doméstica de lesão, em sede de prisão flagrancial ou no curso das investigações policiais e apontamentos para superações, balizadas pelos diplomas constitucionais-legais e entendimentos dos Tribunais Superiores.
Por derradeiro, como já sublinhado, não descartamos que haja necessidade de nova revisitação e análise mais aprofundada sobre o tema, por parte da doutrina e dos próprios Tribunais Superiores sobre a (im)possibilidade do emprego da fotografia nessas circunstâncias.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6ª Turma. AgRg no HC 691.221/DF, relator: ministro Olindo Menezes — desembargador convocado do TRF 1ª Região, julgado em 26/4/2022.
MORETZOHN, Fernanda; e BURIN, Patricia. QUESTÃO DE GÊNERO: Lesões em sede de violência doméstica podem ser comprovadas com fotos? CONJUR. Publicado em 11 de novembro de 2022. Disponível em: «https://www.conjur.com.br/2022-nov-11/questao-genero-lesoes-violencia-domestica-podem-comprovadas-fotos».
VITAL, Danilo. EXAME OBRIGATÓRIO: Foto do rosto machucado da vítima não basta para provar violência doméstica.CONJUR. Publicado em 13 de julho de 2022. Disponível em:« https://www.conjur.com.br/2022-jul-13/foto-rosto-vitima-nao-basta-provar-violencia-domestica».
[1] Significado: padrão, tipo, modelo, norma.
[2] Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas e autor de artigos jurídicos. Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso e atualmente lotado na unidade desconcentrada do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO) de Barra do Garças-MT.