Processo Penal

A absolvição pelo Tribunal do Júri e a possibilidade de recurso

 Thomás Luz Raimundo Brito[1]

A Constituição Federal, no art. 5º, XXXVIII, estatui, in verbis:

“é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos”.

O Código de Processo Penal, ao disciplinar o recurso de apelação, em relação às decisões do Tribunal do Júri, assim dispõe, litteris:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: 

(…)

a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;             

b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;              

c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;          

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.”.

O diploma processual penal, por conta das alterações introduzidas pela Lei 11689/2008, em relação à ordem dos quesitos, que devem ser formulados pelo Juiz presidente do Tribunal do Júri e apresentados aos jurados, estabelece, no art. 483, verbis:

“Art. 483.  Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:           

I – a materialidade do fato;       

II – a autoria ou participação;    

III – se o acusado deve ser absolvido;    

IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;           

V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação”

Saliente-se que ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal admitiam a possibilidade de interposição de recurso, por parte do Ministério Público, fundamentado na premissa de que a decisão absolutória emanada do Conselho de Sentença foi manifestamente contrária às provas do processo. Nesse sentido, vale transcrever os seguintes precedentes:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. ABSOLVIÇÃO NO TRIBUNAL DO JÚRI. CASSAÇÃO DO VEREDITO POPULAR PELA SEGUNDA INSTÂNCIA ESTADUAL. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE LINGUAGEM NO ACÓRDÃO ESTADUAL: INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. ALEGAÇÃO DE SER O RECURSO PARA QUESTIONAR A DECISÃO DOS JURADOS MANIFESTAMENTE CONTRÁRIO ÀS PROVAS DOS AUTOS EXCLUSIVO DA DEFESA: IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. (…) 3. A jurisprudência deste Supremo Tribunal é firme no sentido de que o princípio constitucional da soberania dos veredictos quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos não é violado pela determinação de realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri, pois a pretensão revisional das decisões do Tribunal do Júri convive com a regra da soberania dos veredictos populares. Precedentes. 4. Negar ao Ministério Público o direito ao recurso nas hipóteses de manifesto descompasso entre o veredicto popular e a prova dos autos implicaria violação à garantia do devido processo legal, que contempla, dentre outros elementos indispensáveis a sua configuração, o direito à igualdade entre as partes 5. Habeas corpus denegado.” (HC 111207, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 04/12/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-246 DIVULG 14-12-2012 PUBLIC 17-12-2012 – grifo nosso)

“EMENTA: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. JÚRI. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO (CP, ART. 121, § 2º, IV). PACIENTE ABSOLVIDO. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO SOB FUNDAMENTO DE QUE A ABSOLVIÇÃO É MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR A REALIZAÇÃO DE NOVO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL POPULAR. MATÉRIA NÃO APRECIADA NA ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REVOLVIMENTO DE MATÉRA FÁTICO-PROBATÓRIA. INVIABILIDADE NESTA VIA ESTREITA. RESPEITADA, ADEMAIS, A SOBERANIA DOS VEREDICTOS. ORDEM DENEGADA. (…) 2. A alegada violação à soberania dos veredictos ante a inexistência de decisão contrária à prova dos autos não foi apreciada pelo S.T.J., que limitou-se a aplicar a Súmula 7 daquela Corte, mercê da necessidade de revolvimento de matéria fática para julgar o recurso especial, daí porque o seu exame, por esta Corte, implicaria supressão de instância. 3. O princípio constitucional da soberania dos veredictos não é violado pela determinação de realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri quando a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos. (Precedentes: HC 104301/ES, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, PRIMEIRA TURMA, DJe 04/03/2011; HC 76994/RJ, Rel. Ministro MAURÍCIO CORRÊA, SEGUNDA TURMA, DJ 26/06/1998; HC 102004/ES, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, PRIMEIRA TURMA, DJe 08/02/2011; e HC 94052/PR, Rel. Ministro EROS GRAU, SEGUNDA TURMA, DJe 14/08/2009). 4. Deveras, é cediço na Corte que: ‘1. Ao determinar a realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri, o Tribunal de Justiça procura demonstrar, nos limites do comedimento na apreciação da prova, não existir nos autos material probatório a corroborar a tese defensiva acolhida pelos jurados. Dever constitucional de fundamentar todas as decisões judiciais (art. 93, inc. IX, da Constituição da República). Inexistência de excesso de linguagem. 2. A determinação de realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri não contraria o princípio constitucional da soberania dos veredictos quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos. 3. Habeas corpus denegado.’ (HC 104301/ES, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, PRIMEIRA TURMA, DJe 04/03/2011). 5. Parecer do parquet pela denegação da ordem. 6. Ordem denegada.” (HC 96584, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/05/2011, DJe-109 DIVULG 07-06-2011 PUBLIC 08-06-2011 EMENT VOL-02539-01 PP-00035– grifo nosso).

Destarte, conforme bem explicitado pelo Ministro Alexandre de Moraes, no voto condutor do acórdão lavrado no HC 192.579/SP:

“Trata-se de entendimento tradicional em nosso ordenamento jurídico, pois, desde meados do século passado, essa CORTE já entendia constitucional o novo julgamento pelo Tribunal do Júri quando a decisão fosse contrária a prova dos autos. Um dos cases mais lembrados é o do HC 32.271/SP, Rel. Min. LUIZ GALOTTI, Tribunal Pleno, DJ de 24/09/1953, ocasião em que o Min. NELSON HUNGRIA evoluiu no seu entendimento e votou pela constitucionalidade da Lei n. 263, de 23 de fevereiro de 1948, que previa o novo julgamento pelo Tribunal do Júri quando o resultado fosse contrário à prova dos autos. Nas palavras do saudoso Min. NELSON HUNGRIA:

‘Já fui daqueles que adotaram esse ponto de vista, mas o reexame da matéria me convenceu de que não havia nessa duplicidade uma ofensa ao princípio constitucional da anacrônica soberania do Júri, uma vez que o segundo julgamento era devolvido ao próprio tribunal de jurados, que, assim, seria o único a rever sua própria decisão.’

E a ementa do julgamento foi assim redigida: NÃO É INCONSTITUCIONAL A LEI 263 DE 1948, QUE PERMITE AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ANULAR A DECISÃO DO JÚRI, QUANDO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA A PROVA DOS AUTOS. SE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA, AO JULGAR A APELAÇÃO, COM O CONHECIMENTO INTEGRAL DA PROVA DOS AUTOS, CONCLUIU SER CONTRÁRIA A EVIDÊNCIA DESTA A DECISÃO DO JÚRI, NÃO E POSSÍVEL, EM HABEAS-CORPUS, DECIDIR EM SENTIDO OPOSTO.”

O Superior Tribunal de Justiça, por meio da Terceira Seção, também proclamou a possibilidade de interposição de recurso de apelação, em adversidade à decisão do Conselho de Sentença que absolveu o réu. Traz-se à colação o mencionado acórdão, in verbis:

“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. ABSOLVIÇÃO. APELAÇÃO DA ACUSAÇÃO PROVIDA. ART. 593, III, D, DO CPP. SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO. O JUÍZO ABSOLUTÓRIO PREVISO NO ART. 483, III, DO CPP NÃO É ABSOLUTO. POSSIBILIDADE DE CASSAÇÃO PELO TRIBUNAL DE APELAÇÃO. EXIGÊNCIA DA DEMONSTRAÇÃO CONCRETA DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS. SOBERANIA DOS VEREDICTOS PRESERVADA. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO QUE DEMANDA REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE EM HABEAS CORPUS.

PRECEDENTES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO. WRIT NÃO CONHECIDO.

(…) 2. As decisões proferidas pelo conselho de sentença não são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o Tribunal ad quem, nos termos do art. 593, III, d, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez, determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise do mérito da demanda.

3. A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição.

Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no art. 483, III, do CPP.

4. O Tribunal de Justiça local, eximindo-se de emitir qualquer juízo de valor quanto ao mérito da acusação, demonstrou a existência de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos amparado por depoimento de testemunha e exame de corpo de delito. Verifica-se que a decisão do conselho de sentença foi cassada, com fundamento de que as provas dos autos não deram respaldo para a absolvição, ante a inexistência de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, não prevalecendo, a tese defensiva da acidentalidade, tendo em vista a demonstração de que o acusado continuou a desferir golpes à vítima já caída ao chão, sendo a causa da sua morte, traumatismos no crânio, pescoço e tórax.

5. Havendo o acórdão impugnado afirmado, com base em elementos concretos demonstrados nos autos, que a decisão dos jurados proferida em primeiro julgamento encontra-se manifestamente contrária à prova dos autos, é defeso a esta Corte Superior manifestar-se de forma diversa, sob pena de proceder indevido revolvimento fático-probatório, incabível na via estreita do writ.

Habeas corpus não conhecido.” (HC 313.251/RJ, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/02/2018, DJe 27/03/2018 – grifo nosso).

Ocorre que, recentemente, ganhou força na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a tese de que a decisão absolutória do Conselho de Sentença, fundada no art. 483, III, do CPP, não comporta a interposição de recurso de apelação. Nesta toada, por exemplo, eis o seguinte julgado da Segunda Turma da Corte Suprema:

“Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. 2. Tribunal do Júri e soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF). Impugnabilidade de absolvição a partir de quesito genérico (art. 483, III, c/c §2º, CPP) por hipótese de decisão manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, “d”, CPP). Absolvição por clemência e soberania dos veredictos. 3. O Júri é uma instituição voltada a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal, o que se consagra constitucionalmente com o princípio da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF). Consequentemente, restringe-se o recurso cabível em face da decisão de mérito dos jurados, o que resta admissível somente na hipótese da alínea “d” do inc. III do art. 593 do CPP: “for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”. Em caso de procedência de tal apelação, o Tribunal composto por juízes togados pode somente submeter o réu a novo julgamento por jurados. 4. Na reforma legislativa de 2008, alterou-se substancialmente o procedimento do júri, inclusive a sistemática de quesitação aos jurados. Inseriu-se um quesito genérico e obrigatório, em que se pergunta ao julgador leigo: “O jurado absolve o acusado?” (art. 483, III e §2º, CPP). Ou seja, o Júri pode absolver o réu sem qualquer especificação e sem necessidade de motivação. 5. Considerando o quesito genérico e a desnecessidade de motivação na decisão dos jurados, configura-se a possibilidade de absolvição por clemência, ou seja, mesmo em contrariedade manifesta à prova dos autos. Se ao responder o quesito genérico o jurado pode absolver o réu sem especificar os motivos, e, assim, por qualquer fundamento, não há absolvição com tal embasamento que possa ser considerada “manifestamente contrária à prova dos autos”. 6. Limitação ao recurso da acusação com base no art. 593, III, “d”, CPP, se a absolvição tiver como fundamento o quesito genérico (art. 483, III e §2º, CPP). Inexistência de violação à paridade de armas. Presunção de inocência como orientação da estrutura do processo penal. Inexistência de violação ao direito ao recurso (art. 8.2.h, CADH). Possibilidade de restrição do recurso acusatório. Negado provimento ao agravo regimental interposto pelo Ministério Público Federal, mantendo a decisão monocrática proferida, que ao invalidar o acórdão do Tribunal de Justiça, restabeleceu, como efeito consequencial, a sentença penal absolutória emanada da Presidência do Tribunal do Júri.” (RHC 117076 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-274 DIVULG 17-11-2020 PUBLIC 18-11-2020).

Vale ressaltar que há, no âmbito da Suprema Corte, decisões em sentido contrário, que mantêm o entendimento tradicional sobre a possibilidade de interposição de recurso ministerial, nas hipóteses sob comento. Nesse passo, cabe transcrever o seguinte julgado da Primeira Turma da aludida Corte de Justiça:

“Ementa: CONSTITUCIONAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ABSOLVIÇÃO PELA NEGATIVA DE AUTORIA (SEGUNDO QUESITO, PREVISTO NO ART. 483, II, DO CPP). DECISÃO DOS JURADOS MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. ANÁLISE PELO TRIBUNAL EM SEDE DE APELAÇÃO INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONSTITUCIONALIDADE. EXCLUSIVA COMPETÊNCIA DO JÚRI PARA A REALIZAÇÃO DE NOVO E DEFINITIVO JULGAMENTO DE MÉRITO. 1. A soberania dos veredictos é garantia constitucional do Tribunal do Júri, órgão competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; sendo a única instância exauriente na apreciação dos fatos e provas do processo. Impossibilidade de suas decisões serem materialmente substituídas por decisões proferidas por juízes ou Tribunais togados. Exclusividade na análise do mérito. 2. Em nosso ordenamento jurídico, embora soberana enquanto decisão emanada do Juízo Natural constitucionalmente previsto para os crimes dolosos contra a vida, o específico pronunciamento do Tribunal do Júri não é inatacável, incontrastável ou ilimitado, devendo respeito ao duplo grau de jurisdição. Precedentes. 3. A apelação não substitui a previsão constitucional de exclusividade do Tribunal do Júri na análise de mérito dos crimes dolosos contra a vida, pois, ao afastar a primeira decisão do Conselho de Sentença, simplesmente, determina novo e definitivo julgamento de mérito pelo próprio Júri. 4. Sendo constitucionalmente possível a realização de um novo julgamento pelo próprio Tribunal do Júri, dentro do sistema acusatório consagrado pelo nosso ordenamento jurídico como garantia do devido processo legal, não é possível o estabelecimento de distinção interpretativa para fins de recursos apelatórios entre acusação e defesa, sob pena de ferimento ao próprio princípio do contraditório, que impõe a condução dialética do processo (par conditio). 5. Recurso Ordinário a que se nega provimento.” (RHC 192579, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 09/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 14-06-2021 PUBLIC 15-06-2021)

Ante a divergência existente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria, no bojo do ARE 1225185, litteris:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI E SOBERANIA DOS VEREDICTOS (ART. 5º, XXXVIII, C, CF). IMPUGNABILIDADE DE ABSOLVIÇÃO A PARTIR DE QUESITO GENÉRICO (ART. 483, III, C/C §2º, CPP) POR HIPÓTESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, D, CPP). ABSOLVIÇÃO POR CLEMÊNCIA E SOBERANIA DOS VEREDICTOS. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.” (ARE 1225185 RG, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-155 DIVULG 19-06-2020 PUBLIC 22-06-2020)

Frise-se que o sobredito processo está incluído na pauta do Plenário da Corte Suprema, com previsão de julgamento para o dia 10 de fevereiro de 2022, conforme se depreende de consulta ao sistema de movimentação processual constante no site do Tribunal.

Em resumo, há a perspectiva de que o Plenário do Supremo Tribunal Federal decida o tema, com brevidade.

Entendemos que a soberania dos veredictos não obsta a possibilidade de recurso contra a decisão absolutória emanada do Conselho de Sentença.

Ora, a soberania dos veredictos impede, apenas, que o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal substitua a decisão dos jurados, tanto que, ao reconhecer que o veredicto foi manifestamente contrário à prova dos autos, o órgão judicial de segunda instância apenas determina a realização de novo julgamento.

Destarte, a soberania do que decidido pelo Conselho de Sentença resta preservada, pois o Tribunal de segundo grau não substitui a decisão dos jurados e efetua o mero juízo rescindente, cassando a decisão anterior e determinando a realização de novo julgamento.

Vale salientar que o Código de Processo Penal explicitamente prevê, no art. 593, §3º, que, caso o Tribunal ad quem se convença que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dará provimento ao apelo para sujeitar o réu a novo julgamento, porém não se admite, pelo mesmo motivo, segunda apelação.   

Portanto, a soberania da decisão dos jurados resta obviamente assegurada, porque, mesmo que o Conselho de Sentença insista no veredicto anterior, considerado manifestamente contrário à prova dos autos pelo Tribunal, não será possível a interposição de novo recurso de apelação, com o mesmo fundamento.

Ponha-se em relevo, ainda, que que o diploma processual penal prevê, expressamente, a possibilidade de interposição de recurso de apelação, quando a decisão do Conselho de Sentença for manifestamente contrária à prova dos autos, sem fazer distinção em relação ao decisum absolutório, ou condenatório (art. 593, d, do CPP).

Assim, a interpretação jurídica – que veda a hipótese de interposição de recurso contra as decisões do Conselho de Sentença, fundadas na resposta afirmativa ao quesito absolutório genérico -, viola o devido processo legal e veda o acesso ao duplo grau de jurisdição.

Ademais, negar ao Ministério Público a possibilidade de recorrer afronta, fortemente, a paridade de armas, já que confere exclusivamente à defesa a possibilidade de apelar ao Tribunal, impugnando a decisão dos jurados como manifestamente contrária à prova dos autos.

Não bastasse isso, subtrair a legitimidade recursal do órgão ministerial ocasionará proteção social deficiente, pois absolvições completamente divorciadas do acervo probatório, muitas vezes movidas por sentimentos insondáveis, seriam absolutas e definitivas.

O cenário supracitado conferiria um poder ilimitado ao Conselho de Sentença, contribuindo para a impunidade. Nessa linha, um modelar exemplo é o caso, que motivou o julgamento do HC 178777, cuja ordem foi concedida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, para restabelecer a decisão absolutória do Conselho de Sentença “considerada a livre convicção dos jurados”.

Cabe transcrever parte do resumo da notícia do referido julgamento, publicado no site do Supremo Tribunal Federal em 29/09/2020:

“A Turma cassou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) que havia determinado ao Tribunal do Júri a realização de novo julgamento de V.R.M., acusado de tentar matar a esposa, quando ela saía de um culto religioso, com golpes de faca, por imaginar ter sido traído. Por maioria dos votos, o colegiado aplicou seu novo entendimento sobre o princípio da soberania dos vereditos e concedeu pedido da Defensoria Pública estadual (DPE-MG) formulado no Habeas Corpus (HC) 178777.

O acusado, que confessou o crime, foi absolvido pelo Tribunal do Júri. No entanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) reformou a decisão por entender que ela era contrária ao conjunto probatório e determinou a realização de novo júri. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão.”

Colhem-se, a propósito, os seguintes trechos dos votos vencidos no aludido julgamento:

Qual é o caso aqui? O caso é tentativa de feminicídio. É um dos crimes mais graves que o Código Penal prevê. O Brasil é campeão – lamentavelmente! – de feminicídio, em virtude ainda de uma cultura extremamente machista, uma cultura de desrespeito à mulher. E, no caso, a denúncia e a pronúncia foram por tentativa de homicídio qualificado, por motivo fútil, mediante emboscada contra a mulher em razão exatamente da sua condição do sexo feminino. E, pasmem, o paciente confessou o crime. Ele confessou que tentou matar a sua companheira, à época dos fatos, por acreditar que a mesma estava traindo -o, o que teria sido confirmado pela própria vítima em depoimento prestado por testemunha ocular (…).” (voto do Ministro Alexandre de Moraes)

“O paciente, desconfiado de traição e por motivos de ciúme, arrastou e empurrou a vítima, sua mulher, contra a parede e lhe desferiu várias facadas, que atingiram a cabeça e as costas na altura dos pulmões. Em seguida, fugiu do local, onde era realizado um culto religioso, e dispensou a faca utilizada, jogando-a num rio. Esse é o fato que estamos trazendo a julgamento. (…) O próprio paciente confessou a prática do fato e o Tribunal do Júri reconheceu que o fato ocorreu – a materialidade do delito – e reconheceu que o paciente foi o autor. Portanto, não há dúvida de que o paciente, efetivamente, tentou matar a mulher a facadas. O júri concluiu isso. Depois, em contradição que parece evidente – a menos que se ache natural e admissível pelo Direito uma pessoa esfaquear a outra em tentativa de homicídio por ciúme -, o júri – vá se entender lá por quê – votou pela absolvição. Há recurso para o Tribunal de Justiça e a pergunta que se faz é: não pode o Tribunal de Justiça, soberano na revisão dos fatos, reconhecer – não revogar – que ocorreu decisão contrária à prova dos autos e mandar realizar novo júri? Se essa não é uma decisão contrária à prova dos autos, tenho dificuldade em saber o que é, porque o fato ocorreu, a autoria foi comprovada e confessada, e a vítima, de fato, recebeu as facadas em tentativa de homicídio por ciúmes. Feminicídio em estado bruto e apenas mais uma estatística para o recorde mundial que temos – como lembrou o Ministro Alexandre de Moraes -, sem nenhuma sanção do Direito?

Vou pedir todas as vênias para entender diferentemente. Quer dizer que, se o Júri tiver um surto de machismo ou de primitivismo e absolver alguém, o tribunal não pode rever e pedir a um novo júri que reavalie, como já decidimos? Se um novo júri entender no mesmo sentido do primeiro, aí já não há mais nada o que se fazer, mas não ter uma chance de se rever situação em que o homem tenta, confessadamente, matar sua mulher a facadas… difícil sustentar ponto de vista em que o Direito não admita isso.” (voto do Ministro Luís Roberto Barroso – grifo nosso).

Vale salientar, outrossim, como bem explicitado pelo Ministério Público de Minas Gerais no ARE 1225185 em tramitação no Supremo Tribunal Federal, que a absolvição por clemência não é permitida no ordenamento jurídico e que ela significa a autorização para o restabelecimento da vingança e da justiça com as próprias mãos.

Obviamente, não é possível rotular de equivocada todas as decisões absolutórias do Tribunal do Júri. Todavia, há de se oportunizar que o Tribunal ad quem, pura e tão-somente, avalie se tal decisão é manifestamente contrária à prova dos autos.

Gize-se que, como já ressaltou o Supremo Tribunal Federal, “o específico pronunciamento do Tribunal do Júri não é inatacável, incontrastável ou ilimitado” (HC 70.193/RS, Primeira Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 6/11/2006).  

Noutro giro de enfoque, a alteração legislativa, que modificou os quesitos a serem apresentados aos jurados e inseriu a pergunta absolutória genérica (art. 483, III, do CPP) não tem o condão de alterar o sistema jurídico e vedar a possibilidade de recurso, por parte do órgão acusatório, com a invocação adicional do princípio da soberania dos veredictos.

Ora, a introdução do quesito absolutório de natureza genérica objetivou, tão-somente, simplificar o questionamento aos jurados, os quais são, em regra, leigos na matéria jurídica, facilitando a respectiva compreensão.

Ponha-se em linha de destaque que o fato de o quesito ser genérico não torna irrecorrível a decisão absolutória, apenas porque esta decorre da íntima convicção dos jurados em resposta a uma pergunta que não especifica uma tese de defesa e se cinge a indagar sobre a absolvição.

Nessa senda de intelecção, ainda que o jurado não precise obviamente expor razões e responda afirmativamente ao quesito absolutório genérico, resta clara a compatibilidade da soberania do veredicto com a possibilidade de interposição de recurso, a fim de que o Tribunal de segunda instância avalie se a absolvição encontra mínimo respaldo na prova dos autos.

No ponto, cabe concluir que o entendimento em sentido contrário ao que acima propugnado, ocasiona escancarada violação a necessária igualdade processual entre as partes, já que o Conselho de Sentença, quando condena, se limita a responder negativamente ao mesmo quesito genérico previsto no art. 483, III, do CPP. Nessa trilha de intelecção, o réu sempre poderá provocar o Tribunal, para que este avalie a conformidade da condenação com as provas dos autos, ao passo que a Justiça Pública, na defesa da sociedade, não poderá recorrer da absolvição. Afinal, a quem interessa limitar o duplo grau de jurisdição, apenas para o Ministério Público?

Em suma, o ordenamento jurídico pátrio agasalha a possibilidade de interposição de recurso de apelação do Ministério Público, contra decisões absolutórias do Conselho de Sentença que sejam manifestamente contrárias à prova dos autos. Ressalte-se que o entendimento em sentido contrário viola o devido processo legal, o princípio do duplo grau de jurisdição e a paridade de armas, abrindo margem para um poder ilimitado e inatacável do Conselho de Sentença.

     



[1] Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia. Autor do Livro “Mandado de Injunção” (Editora Nuria Fabris, 2015), Coautor do livro “Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio” (Editora Forum, 2008).

Como citar e referenciar este artigo:
BRITO, Thomás Luz Raimundo. A absolvição pelo Tribunal do Júri e a possibilidade de recurso. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/a-absolvicao-pelo-tribunal-do-juri-e-a-possibilidade-de-recurso/ Acesso em: 21 nov. 2024
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