Consignação em pagamento
Maria Berenice Dias*
1. Introdução. 2. O depósito extrajudicial. a. Estabelecimento bancário. b. Praça de pagamento. c. Cientificação do credor. d. Postura do credor. e. A atitude do depositante ante a recusa do credor. 3. A demanda judicial. a. Momento do depósito. b. Efeitos do depósito. c. Prazo de contestação. d. Atitude do demandado. e. Revelia. f. Contestação. g. Insuficiência do depósito. h. Complementação do depósito. 3. Ação de dúplice natureza. a. Eficácia sentencial. b. O valor devido. c. Sede da execução. 4. A ação de consignação de aluguéis.
1. Introdução
Dois procedimentos especiais mereceram mudanças quando da recente alteração do estatuto processual através das quatro leis editadas em 13 de dezembro de 1994. A ação de consignação em pagamento foi a que a mais mutações se sujeitou, pois a ação de usucapião só sofreu a amputação da audiência preliminar de justificação, e que servia como marco para a fluência do prazo contestacional.
O pagamento por consignação é instituto de direito material, regrado pelos arts. 972 a 984 do CC, dispositivos que, por regularem também aspectos procedimentais da demanda de consignação, acabaram sofrendo alterações, pela recente feição dada ao instituto com a mudança legislativa introduzida pela lei 8951. Conforme assinalou ADROALDO FURTADO FABRÍCIO[1] a alteração mais importante não foi na ação mas na órbita material, por dizer com os pressupostos para que a consignação tenha efeito de pagamento.
Pelo novo regramento possível tornou-se o depósito com finalidade liberatória independente de intervenção judicial. A par desta novidade em dois outros pontos registra relevo a reforma. A permissão de o réu levantar a quantia incontroversa do valor depositado e a eficácia dúplice da sentença que concluir pela insuficiência do depósito, evidenciam os significativos aperfeiçoamentos alcançados pela reforma.
2. O depósito extrajudicial
Em se tratando de obrigação pecuniária facultam os parágrafos introduzidos no art. 890 do CPC a possibilidade de sua extinção através de depósito bancário feito pelo devedor. Assim, restou por surgir mais um mecanismo de solução de conflitos à margem do Poder Judiciário, como lúcida tentativa de tentar desafogá-lo.
O devedor tem uma mera faculdade de optar pelo depósito em estabelecimento bancário, possibilidade que não se apresenta como pressuposto ao uso da via judicial.
a. Estabelecimento bancário
Cabe lembrar que medidas de ordem pragmática se fazem necessárias, por parte do Banco Central, regulamentando esta nova modalidade de conta, eis que aberta pelo depositante, mas a favor do destinatário, e indisponível por um período àquele e, posteriormente ao decurso de um certo laapso temporal, ao próprio beneficiário. As instituições bancárias foram transformaddas em verdadeiras serventias judiciais.
Autorizado o depósito na rede bancária, prefere a lei os estabelecimentos que integram a rede oficial, não se podendo interpretar a vírgula aposta equivocadamente após ao invés de antes da palavra oficial como querendo significar que é cabível o depósito somente onde existir banco estatal. Essa expressão final não pode ser entendida como significando apenas onde houver estabelecimento bancário oficial, o que inviabilizaria, em muitas oportunidades, a sua utilização pelo devedor[2].
b. Praça de pagamento
A escolha da praça do pagamento é determinada pela lei ou pelos termos da obrigação, havendo quem entenda que descabe que decorra do foro de eleição, a não ser que haja expressa previsão também para o depósito extrajudicial[3]. Não há motivo para se afastar a possibilidade do se preferir o lugar eleito consensualmente entre as partes, ainda que não haja referência contratual para o seu uso na hipótese de consignação extrajudicial. Como em ambas as hipóteses se trata de forma de pagamento com fins liberatórios, não há porque se exigir casuística previsão para as duas modalidades. É o mesmo CALMON DE PASSOS[4] quem salienta a simetria entre a consignação extrajudicial e a judicial
c. Cientificação do credor
Optando o devedor pelo uso da nova modalidade de pagamento, necessário definir-se a quem está afeita a tarefa de comunicar ao credor o depósito. O uso do pronome se, posposto ao verbo cientificar, resta por deixar indefinido quem seja o legitimado para a providência. Como salientou ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, na magistral palestra referida, pretendesse o legislador atribuir ao devedor o encargo, simplesmente, omitiria esta partícula do texto.
CALMON DE PASSOS, no entanto, entende que a providência cabe ao devedor, sustentando, inclusive a necessidade de motivação quer das razões do depósito, quer da justificativa da recusa, sob o fundamento da igualdade de regras para a validade das duas formas de consignação, dizendo que não cabe a pura e simples ciência de que o depósito foi feito, mas das razões que o levavam a fazê-lo[5].
Até por simetria com a identificação do destinatário da recusa, não se pode atribuir ao devedor o encargo da comunicação. É de atentar-se à circunstância de que o numerário, até o decurso do prazo da recusa, fica indisponível para o devedor e, manifestada a inaceitação, a impossibilidade do levantamento se transfere ao credor. Imperioso que a ciência deste fato seja feita pela instituição bancária para que não lhe advenha eventual obrigação indenizatória. Conforme CÂNDIDO DINAMARCO[6] a omissão pode gerar o risco de saque feito após extinto o direito de levantar ou mesmo depois de proposta a ação consignatória. A indispensabilidade destes cuidados evidencia a necessidade de a comunicação ser avocada pelo banco depositário.
Um último argumento. Como o prazo de recusa se conta à partir do recebimento do aviso de recepção – que serve como marco para que o numerário fique à disposição do credor, ocorrendo a liberação do devedor – mister que seu termo não esteja condicionado a eventual comunicação do devedor ao banco, circunstância subjetiva pouco recomendável. Categórico COSTA MACHADO ao dizer que o banco é quem deverá enviar a carta, não comportando o texto nenhuma outra forma de cientificação [7].
d. Postura do credor
Devidamente cientificado o credor de que está à sua disposição o numerário depositado pelo devedor – ciência esta, como visto, a ser procedida pelo estabelecimento bancário – duas posturas pode assumir.
Comparecendo e sacando a importância depositada, liberado restará o devedor, pois ocorreu a extinção da vínculo obrigacional entretido por ambos. Este dispositivo é norma de direito material, e eterotópica – para usar a expressão de PONTES DE MIRANDA – sua previsão na lei processual. Ainda que desatendidos alguns dos pressupostos para a higidez desta forma de pagamento, o recebimento do numerário sana qualquer irregularidade.
O silêncio do credor dispõe de igual efeito, pois configura reconhecimento do direito do devedor ao pagamento. Nada manifestando o titular do crédito a importância fica à sua disposição, ingressa no seu patrimônio, valendo como quitação ao devedor que perde a disponibilidade do numerário, que já é do credor. Consegue-se, portanto, por decurso de tempo, um efeito liberatório em benefício do devedor equivalente ao do pagamento, sem depender da intervenção judicial[8]. Dita atitude omissiva, não impede, no entanto, o uso da via judicial para o reconhecimento da invalidade do depósito e conseqüente eficácia liberalizante. Porém, enquanto não invalidado o depósito não recusado valerá a quitação[9].
Cabe lembrar que o levantamento pode ser feito durante ou após o decurso do prazo de recusa. Em qualquer das hipóteses a quitação ocorre da data do depósito, conforme o art. 972 do CC, ao contrário do que afirma CÂNDIDO DINAMARCO de que a extinção do débito operar-se-á pela extinção do direito de recusar e não pelo levantamento [10].
Não concordando o credor com a consignação extrajudicial levada à efeito, mister que manifeste sua recusa em 10 dias, de forma escrita ao estabelecimento bancário (art. 890, §3º do CPC). O prazo para a manifestação do titular do crédito se conta da recepção, pelo estabelecimento bancário do aviso de recebimento, e não da ciência pelo credor do depósito. A negativa de recebimento não necessita, ao contrário do que sustenta CALMON DE PASSOS[11] de motivação. Mais, tal atitude, não impede que o credor proceda a cobrança do débito, caso em que, para evitar o reconhecimento da litigância de má-fé, necessita infirmar a validade do depósito extrajudicial ou justificar o motivo da recusa.
Manifestada a inaceitação ultima-se a tentativa da consignação através desta nova modalidade de pagamento, voltando a disponibilidade do crédito ao depositante.
e. A atitude do depositante ante a recusa do credor
Recusando-se expressamente o credor em receber a importância depositada, duas poderão ser as atitudes do devedor. No prazo de 30 dias poderá propor a ação consignatória pela via judicial, instruindo a inicial com a prova do depósito e da recusa (art. 890, § 3º do CPC). Não lhe é proibido – apesar da redação do § 4º do mesmo artigo – levantar a importância antes do decurso daquele prazo.
Ao contrário do que afirma CÂNDIDO DINAMARCO não se pode ter esta limitação temporal como inócua, e que sequer deveria estar inscrita no Código [12]. Mister lembrar que dispõe o depósito de força de pagamento nos termos do art. 942 do CC. A sentença, conforme bem evidencia ADROALDO FURTADO FABRÍCIO[13] tem carga eficacial meramente declaratória, sendo a eficácia constitutiva inerente ao depósito. Nestes termos, ocorrendo o ingresso da ação dentro do prazo de trinta dias, o depósito extrajudicial efetivado permanece dispondo do efeito liberatório, desde sua efetivação, e a sentença declarará quitado o débito à partir daquele marco. Em não havendo a propositura da demanda dentro do lapso temporal legal, resta inócuo o depósito para o fim de marcar a data do pagamento em caso de procedência da demanda.
Com a ultrapassagem do prazo não se pode falar, por óbvio, em perda do direito ao uso da ação de consignação, o que configuraria inconstitucional obstrução ao exercício do direito à tutela jurídica. O que perde o obrigado – se não proposta a ação dentro de decadencial lapso legal – é a possibilidade de usufruir do efeito liberatório à partir da data da consignação primeira, deslocando-se a extinção da obrigação para o momento do novo depósito. Ainda que permaneça a importância depositada, não está o autor compelido a levantá-la e repetir o ato, porém, nesta hipótese o efeito liberatório só ocorrerá à partir da citação do demandado.
3. A demanda judicial
Em ocorrendo mora accipiendi, e independente do uso da faculdade de proceder ao depósito extrajudicial, pode o devedor buscar exonerar-se de sua obrigação pela via jurisdicional, através da ação de consignação em pagamento.
A grande inovação trazida pela reforma foi terminar com a audiência de oblação para o prévio oferecimento do débito, medida das mais salutares a dispensar a designação de data para que venha o devedor depositar e o credor receber a quantia ou a coisa devida.
a. Momento do depósito
Em tendo havido o prévio procedimento da consignação extrajudicial, necessário tão só o autor instruir a petição inicial com a prova do depósito e da recusa (§ 3º do art. 890 do CPC) para que o juiz determine a citação do réu para vir levantar o valor depositado ou contestar a ação.
Se inocorreu esta fase anterior, ao propor a ação deve o autor pedir seu recolhimento, a ser efetivado dentro de 5 dias da decisão deferitória do pedido. Pela expressão legal o depósito depende da concordância judicial, ato de todo despiciendo a burocratizar desnecessariamente a demanda. Recomenda CÂNDIDO DINAMARCO[14] que se aguarde a comprovacão do depósito para que seja determinada a citação, cautela, no entanto, que se mostra excessiva, a retardar o procedimento que a lei quer ágil. O atendimento tempestivo do pressuposto processual é encargo do autor.
b. Efeitos do depósito
Diversas as seqüelas das distintas modalidades de depósito com relação ao momento da extinção da obrigação. Considera o art. 942 do CC a consignação uma modalidade de pagamento. Pela feição pretérita da ação, tal efeito liberatório ocorria após a propositura da ação, ou seja, mais precisamente por ocasião da audiência em que ocorreu o depósito em face da recusa de levantamento pelo credor. Agora o art. 890 do CPC concede efeito de pagamento ao depósito bancário, em fase pré-processual. Assim, tendo havido prévia tentativa de desoneração – através do procedimento que se desenvolve perante a instituição financeira – o âmbito de abrangência da autoridade da coisa julgada antecede à própria demanda, eis que o juízo de procedência levará ao reconhecimento da existência de quitação desde a data do depósito. Somente na hipótese de não ter sido proposta a ação dentro de prazo de 30 dias da recusa do credor é que inocorre o transbordamento do efeito declaratório do pagamento para antes do acionamento da via judicial. Neste caso a liberação ocorrerá quando da citação do réu.
c. Prazo de contestação
Extinta a preliminar audiência, único é o momento para o réu ou receber a importância depositada ou contestar ação. Não existe mais a diversidade temporal entre estes dois atos, quando em um primeiro momento poderia o demandado tão só receber, vindo a contestar 10 dias depois. Agora, dentro de um único prazo uma das duas posturas deve assumir o demandado.
Além de terem sido alterados os momentos de manifestação do devedor, foi igualmente unificado o prazo de resposta, eliminando-se, finalmente, o tratamento diferenciado, que se dava à ação de consignação[15]. O silêncio do novo texto legal sobre o prazo de contestação leva à aplicação subsidiária da regra geral de 15 dias do art. 297 do CPC, unificação que melhor atende à necessidade de uniformização dos atos do processo.
d. Atitudes do demandado
A especialidade da ação consignatória reside na possibilidade de o demandado ao ser citado praticar alternativamente dois atos. Ou o réu levanta a importância depositada ou contesta a ação, sendo incompatíveis a prática de ambos, a não ser na hipótese de alegar insuficiência do oferecimento.
Optando o demandado pelo recebimento da importância depositada, é de se considerar que reconheceu o direito do autor à quitação, ensejando a extinção meritória do processo nos termos do inc. II do art. 269 do CPC, devendo arcar com os encargos processuais. Isolada a posição de VICENTE GRECO FILHO [16]entendendo que nesta hipótese não deve o credor ser condenado a pagar custas e honorários advocatícios, para que não seja incentivado a contestar. Não há como não compensar o autor dos gastos de ter se socorrido da via judicial, pois ocorreu autocomposição unilateral[17].
e. Revelia
Eliminou a nova redação do art. 897 do CPC o tratamento diferenciado que era dispensado à revelia na ação consignatória, e que impunha, pelo seu sentido exclusivamente literal, sempre um julgamento de procedência da ação.
Pela sistemática legal, a ausência de resposta leva à presunção de veracidade dos fatos articulados pelo autor, sem implicar na necessária procedência da ação. A explicitação acrescentada – e ocorrentes os efeitos da revelia – serviu como mera advertência de que a omissão do réu não tem a força de levar a um automático julgamento de procedência. Continua exagerada a disposição contida no art. 897 do CPC, não-obstante a tentativa de corrigi-la, conforme CÂNDIDO DINAMARCO[18]
f. Contestação
A modificação introduzida no caput do art. 986 do CPC serviu exclusivamente para adaptar sua redação à nova sistemática da demanda, eliminando o díspar tratamento quanto ao prazo de contestação e ordinarizando o regime do termo a quo para sua fluência.
Permaneceu, no entanto, a previsão casuística das possibilidades impugnativas, na tentativa de delimitar o objeto da ação, elenco de intrínseca inutilidade segundo ADROALDO FURTADO FABRÍCIO[19], pois os temas previstos englobam toda a matéria de defesa possível, ao se atentar ao fato de que o âmbito de cognição da demanda é parcial, onde apenas tem lugar a controvérsia sobre a pretensão a liberar-se manifestada pelo autor[20]. Incabível é transbordar do thema decidendum, se revelando despiciendas as previsões legais, até porque não se pode ter como afastada a possibilidade de oposição das objeções processuais do art. 301 do CPC. Ao réu é facultado exercer qualquer das modalidade de resposta, desde que compatíveis com a especialidade do procedimento[21].
g. Insuficiência do depósito
Sofreu o art. 896 do CPC o acréscimo de um parágrafo, condicionando, à alegação de insuficiência do depósito, o encargo de quantificar o valor faltante, exigência de intuitiva utilidade prática[22], a dar efetividade ao direito de complementação concedido ao autor. A nova previsão legal de defesa, fulcrada na falta de integralidade do depósito, está sujeita à indicação do montante devido, sob pena de não se poder acolher dito fundamento da contestação – dispositivo que atende ao princípio da impugnação especificada do § único do art. 302 do CPC.
Calcando-se exclusivamente a resposta do réu na falta de correspondência entre o valor do débito e o quantum depositado, pode o réu proceder ao levantamento da importância consignada pois sobre ela inexiste controvérsia. É preciso registrar que somente a alegação isolada de insuficiência do depósito gera como efeito a permissão de levantamento do seu objeto, uma vez que a presença na contestação de qualquer outra defesa de mérito prevista pelo art. 896 coloca em dúvida o direito do devedor (autor) de livrar-se, ainda que parcialmente, da obrigação, conforme alerta ANTÔNIO CLÁUDIO DA COSTA MACHADO[23].
A possibilidade de levantamento parcial e a execução do saldo, inviabiliza posterior pedido de rescisão contratual, a não ser que não haja incompatibilidade entre o crédito e a desconstituição.
h. Complementação do depósito
O juiz, ante a alegação da insuficiência, poderá, a requerimento do réu, permitir o levantamento da importância depositada. Com vista o autor, ele, ou complementa o depósito – sem estabelecer-se qualquer discussão sobre o seu montante, ultimando-se o processo – ou nada mais deposita e a ação prossegue, tendo como âmbito de cognição exclusivamente o valor da diferença que restou controvertida, hipótese em que ocorre a parcial exoneração do autor (§ 1º do art. 899 do CPC). Para VICENTE GRECO FILHO[24] quando o inadimplemento acarreta a rescisão do contrato de pleno direito, descabe a complementação.
3. Ação de dúplice natureza
No âmbito judicial a mais significativa prescrição da nova lei foi conceder dúplice caráter à demanda consignatória. Surpreendente era a solução preconizada pelo legislador de 1974, ante o reconhecimento da existência do débito satisfeito de forma não integral. Tal conclusão, ao levar à improcedência da ação, autorizava o devedor levantar a importância depositada, impossibilitando o credor de receber, nem ao menos a parte que o devedor confessava como devida. Vencedor o demandado-credor na ação de consignação em pagamento, ironicamente era fatal o levantamento do bem ou valor pelo devedor-consignante e ao “vencedor” nada se atribuía senão o ônus de voltar a juízo, agora como autor em pleito de cobrança[25].
Pela atual sistemática, ante a alegação de insuficiência, possível é ao réu dispor da importância consignada, seguindo a demanda exclusivamente pelo valor da diferença.
a. Eficácia sentencial
A intromissão do § 2º ao art. 899 do CPC decorre do ônus imposto ao réu no § único do art. 896 de declinar, na contestação fundada na insuficiência do depósito, o valor que entende faltante. Havendo a insistência do autor na dimensão quantitativa indicada na inicial, restringe-se o objeto litigioso ao valor da diferença pretendida pelo réu, a tornar indispensável manifestação sentencial. Se improcedente a ação – ou seja, se houver o reconhecimento de que efetivamente insuficiente foi a importância depositada – a sentença dispõe de carga eficacial declaratória de inexistência do direito à exoneração da obrigação. Agora, à partir da reforma, enfeixa a sentença também a condenação[26] do autor de pagar o valor que falta. Assim, concedeu a lei um duplicidade eficacial à sentença gerando título executivo à favor do réu, solução impensável na sistemática tradicional sem o uso da via reconvencional.
Conforme CÂNDIDO DINAMARCO a lei n. 8.951, de 13 de dezembro de 1994, modernizou o instituto e fez dele ágil instrumento para a tutela daquele dos litigantes a quem a ordem material conceder o direito – o direito do devedor consignante à exoneração ou o direito do credor-demandado a receber o que lhe é devido[27].
b. O valor devido
O valor a maior do que o depositado e eventualmente igual ou menor do que o apontado pelo réu na contestação, é o montante devido – mencionado no dispositivo legal – que o juiz deverá indicar, e que se constituirá em título executivo judicial à favor do credor.
Apesar de ter o autor apontado a importância que entendia devida, e o réu reclamado valor a maior, ainda assim pode ser que não logre a instrução quantificar o montante do saldo. Possível, nesta hipótese, que seja proferida uma sentença ilíquida, é o que se conclui da expressão determinará sempre que possível, contida no § 2º do art. 899 do CPC. Tal circunstância faz necessário que se instaure a fase de liquidação, para apurar o quantum debeatur.
c. Sede da execução
Autoriza o texto inovado que a execução do saldo devedor, reconhecido na sentença de improcedência, seja executo pelo demandado, nos mesmos autos da ação consignatória. Apesar de ser esta a forma inerente à execução dos títulos executivos judiciais, a explicitação deve-se, talvez, ao ineditismo da situação, eis tratar-se de execução a ser promovida pelo réu. Ficou clara a fixação da competência do juiz da consignatória para a execução.
Ainda que não tenha a sentença apontado o valor certo do débito remanescente, a necessária liquidação também ocorrerá, por óbvio, no mesmo procedimento.
A atual estrutura da ação vem recebendo os aplausos da doutrina, podendo concordar-se com CÂNDIDO DINAMARCO ao referir que essa valorosíssima inovação inclui-se no contexto de um processo que não é mais encarado unilateralmente como arma de um dos litigantes contra o outro, mas como instrumento para dar tutela a quem tiver direito[28].
4. A ação de consignação de aluguéis
A Lei Inquilinária nº 8245 de 18 de outubro de 1991, criou forma procedimental própria para a consignação em pagamento, distanciando-se da ação especial posta no CPC, imprimindo um rito mais ágil e célere para desobrigar o locatário do pagamento dos aluguéis. Afastou a necessidade de audiência de consignação e depósito, bem como foi abreviado pela metade o prazo de 10 dias do art. 899 do CPC para a complementação do valor consignado (inc. VII do art. 67).
Modificações outras também ocorreram, mas de menor importância. A competência da ação restou fixada no lugar do imóvel (art. 58, inc. II) ao invés de na praça de pagamento posta na lei processual (art. 891). Igualmente, em se tratando de débitos intercorrentes, deixou de dispor o credor do prazo de 5 dias à contar do dia do pagamento para o depósito judicial (art. 892 do CPC), devendo fazê-lo no dia seguinte dos respectivos vencimentos (inc. III do art. 67).
Algumas dúvidas restaram, no entanto, pelo fato de não ter fixado a lex specialis o prazo para a contestação, o que dividiu a doutrina e ensejou um cisma na jurisprudência. Enquanto alguns magistrados passaram a adotar o prazo de 10 dias previsto para a ação de consignação (art. 896 do CPC), outros assinavam 15 dias por aplicação subsidiária do art. 297 do processo ordinário.
De outro lado, também não explicita a lei o termo a quo para o oferecimento da contestação, ao criar uma desnecessária intimação do autor para proceder ao depósito. Assim, proposta a ação e ordenada a citação do réu, é intimado o autor para efetuar em 24 horas o depósito judicial do valor oferecido. Citado o réu para receber a importância depositada ou contestar, não há definição se o prazo de contestação corre da data do depósito, da data da citação ou da juntada do instrumento citatório aos autos. Esta última hipótese, que parece, em um primeiro momento, a que mais se afeiçoa à praxis, encontra óbice nas diversas espécies de citação facultadas pelo inc IV do art. 58, entre elas telex ou fac-símile.
Alterado de forma profunda o procedimento da ação consignatória do estatuto processual, restou mais célere do que o gerado para solver os débitos locatícios. Porém, ainda que surpreendente a constatação, não se afigura outra a resposta senão a de que persiste a dupla normatização, permanecendo a consignação de aluguéis com o rito da lei das locações. A lei especial, que rege determinada categoria de vínculo jurídico, não resta derrogada pela alteração da norma geral.
Por um motivo mais significativo, no entanto, descabe ter-se por implantado um regime único, aplicando-se com exclusividade a demanda agora regrada pelo estatuto processual. Defere a lei inquilinária o uso da via reconvencional tendo como objeto tanto o despejo como a cobrança dos valores consignados (inc. VI do art. 67). Agora o código processual reproduziu a regra. Apesar de não nominar como reconvenção, acabou por deferir caráter dúplice à ação, permitindo a formação de título executivo a favor do réu sobre o débito faltante. Porém, de maior abrangência é a reconvenção da Lei 8255/91, ao deferir o exercício da ação de despejo por esta incidente via. A ter-se por única a forma procedimental da pretensão de depósito, estar-se-ia afastando o uso deste expediente, perda sem razão de ocorrer.
Há, no entanto, forma de se gozarem das benesses da reforma nas reações locatárias. O primeiro reflexo positivo que se visualiza é que, subtraído do art. 896 do CPC o prazo da contestação, resta superada a discórdia, devendo prevalecer o prazo unificado de 15 dias do procedimento ordinário (art. 297 do CPC) para ambas as demandas.
Por outro lado, em face da falta de explicitação da lei de locações sobre a forma de proceder o autor ao depósito, o modo e o momento do seu levantamento pelo réu, bem como ante a ausência de estipulação do termo inicial do prazo de contestação, é de questionar-se sobre a possibilidade de se adotar a normatização atual, invocando-se o disposto no art. 79 das disposição finais e transitórias que determina aplicação subsidiária do estatuto processual. Como agora está de maneira melhor posta a desnecessidade da audiência consignatória – eis que inexiste intimação do autor para o depósito, que já é requerido com a inicial (inc. I do art. 893 do CPC) – possível é se adotar, em face da omissão da lei, o expediente ora criado.
Igual exercício hermenêutico poderá vir a ser utilizado para que possam os locatários fazer uso da faculdade aberta nos parágrafos inseridos no art. 890 do CPC que gerou o procedimento extrajudicial. Omissa a lei inquilinária sobre esta possibilidade não se mostra desarrazoado se ter por aplicáveis as novas regras, apesar da respeitável posição contrária de NELSON NERY JUNIOR[29]. Com isto estar-se-ia aperfeiçoando ainda mais a forma de dirimir as controvérsia desta espécie de vínculo jurídico que dispõem de relevo social tão significativo.
[2] – CALMON DE PASSOS, Inovações do CPC, p. 82
[3] – op. cit., p. 81
[4] – op. cit., p. 80
[5] – op. loc. cit.
[6] – A Reforma do Código de Processo Civil, p. 217
[7] – A Reforma do Processo Civil Interpretado, p. 105
[8] – HUMBERTO TEODORO JÚNIOR, As Inovações no CPC, p. 53
[9] – CALMON DE PASSOS, op. loc. cit., p. 80
[10] – op. cit., p. 218
[11] – op. cit. , p. 80
[12] – op. loc. cit.
[13] – Comentários ao CPC., v. XVIII, t. III, p. 48
[14] – op. cit., p. 219
[15] – CALMON DE PASSOS, op. cit., p. 84
[16] – Direito Processual Civil Brasileiro, v. 3, p. 211
[17] – ANTÔNIO CARLOS DA COSTA MACHADO, op. cit., p. 109
[18] – op. cit., p. 220
[19] – palestra referida
[20] – OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, Procedimentos Especiais, p. 52
[21] – NELSON NERY JUNIOR, Atualdiades sobre o Processo Civil, p. 124
[22] – CÂDIDO DINAMARCO, op. cit., p. 221
[23] – op. cit., p. 111
[24] – op. cit., p. 212
[25] – CÂNDIDO DINAMARCO, op. cit., p. 221
[26] – Trata-se de sentença condenatória por constituir título executivo, conforme alerta Cândido Dinamarco lembrando lição de Liebman, op. cit., p. 223
[27] – op. cit., p. 221
[28] – op. cit., p. 223
[29] – op. cit., p. 123
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Procedimentos Especiais. Rio de Janeiro: Aide, 1989.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995.
COSTA MACHADO, Antônio Cláudio da. A Reforma do Processo Civil Interpretada, São Paulo: Saraiva, 1995.
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, v. 8, t. 3, 1980.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro, São Paulo: Saraiva, v. 3, 1995.
NERY JÚNIOR, Nelson. Atualidades sobre Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
PASSOS, J. J. Calmon de. Inovações do Código de Processo Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As Inovações no Código de Processo Civil, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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