Processo Civil

Considerações sobre o arrolamento em face da Lei n° 7.019, de 31.08.1982

Considerações sobre o arrolamento em face da Lei n° 7.019, de 31.08.1982

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

I – Com as alterações introduzidas nos arts. 1.031 a 1.038, do C.P.C., pela Lei n. 7.019, de 31.8.82, a par de sensível simplificação no processo de homologação da partilha amigável e da partilha de bens de pequeno valor, verifica-se, agora, em uma nova sistemática, a possibilidade da adoção de um dos três ritos previstos na atual ordem jurídica positiva, quais sejam: o inventário solene, regulado pelos arts. 982 a 1.030, do estatuto processual civil, que, não tendo sido atingido pela nova lei, não será objeto de exame no presente trabalho; o chamado arrolamento sumário, ora sob nova sistemática, a ser adotado entre partes maiores e capazes, havendo consenso sobre a partilha; e a última forma procedimental, regulada pelo art. 1.036, dita partilha de bens de pequeno valor,  a ser adotada sempre que o valor do espólio for inferior a 2.000 O.R.Ts., mesmo havendo intervenção de incapaz, ou dissídio entre herdeiros.

 

II – O arrolamento sumário.

 

Estabelece o art. 1.031, do C.P.C., com sua nova redação, que a partilha anmigável será homologada de plano pelo Juiz. Ao fazer expressa remissão ao art. 1.773, do C.C., o supracitado dispositivo não afastou a intervenção judicial quando existirem partes capazes, mas somente estabeleceu que a partilha pode ser feita por escritura pública, termo nos autos do inventário ou escrito particular, sujeita, no entanto, à homologação judicial, pois exige a observância dos arts. 1.032 a 1.035, do mesmo estatuto. Em suma, do confronto exegético dos textos legais, forçoso é concluir-se que, mesmo feita a partilha por pública escritura, mister se faz a chancela judicial.

 

Refere ao artigo sub examen a necessidade da prova de quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, reproduzindo a exigência do art. 192, do C.T.N. Tais comprovantes, que buscam tão-só dar certeza da disponibilidade plena dos bens do de cujus, segundo o disposto no parágrafo único, do art. 35, do C.T.N.

 

Precisos e claros os termos da lei, em o art. 1.031, ao referir-se a tributos do espólio e ao vincular, indissocialvelmente, a prova de quitação dos mesmos à homologação judicial fixando aquela como pré-requisito desta. Com efeito, tendo em conta que o art. 1.034 expressamente afasta da apreciação judicial o lançamento, pagamento ou quitação de taxa judiciária e dos tributos incidentes sob a transmissão da propriedade dos bens do espólio, em não se adotar a compreensão acima exposta para o art. 1031, forçoso seria o reconhecimento de evidente contradição entre este último dispositivo e o art. 1034, o que parece inadmissível em face do § 2.º, do mesmo art. 1034, que estabelece a forma de lançamento e cobrança do imposto de transmissão.

 

Ao remeter à via administrativa a cobrança de tal tributo, subtraiu a lei, do judiciário, o dever de controlar o seu recolhimento. Ao contrário de respeitáveis entendimentos, atrevo-me afirmar que  tal forma de proceder não enseja nem a insegurança de quem vier a transacionar bens recebidos através de partilha amigável, e nem deixará a Fazenda Pública de receber o tributo que lhe é devido e pelo valor que estimar. Uma vez homologada a partilha, para o registro da mesma no ofício imobiliário competente, indispensável a comprovação do recolhimento do imposto de transmissão (art. 143, da Lei dos Registros Públicos), e para tal, a parte, através do procedimento administrativo próprio, atenderá ao pagamento pelo valor atribuído pelo Fisco, independente do valor indicado para a partilha.

 

Além desses requisitos, exige a lei que,  na petição inicial, haja designação do inventariante, a declaração dos títulos dos herdeiros, e dos bens do espólio, assim como a atribuição de valores a ditos bens, para a partilha. Não é exigida, modo expresso, como faz o parágrafo único, do art. 987, do C.P.C., a apresentação do atestado de óbito do autor da herança, mas tanto tal documento como os tendentes a comprovar a qualidade de herdeiro dos requerentes e a propriedade dos bens do espólio são indispensáveis a teor do art. 283, do Código de Processo, a dar legitimidade à pretensão deduzida em juízo. Explicita o art. 1.032, que arrola os requisitos do pedido, a inocorrência da lavrura de termos de qualquer espécie, o que demonstra a disponibilidade, inclusive, do termo de compromisso de inventariante.

 

Atendidos os requisitos legais supra-referidos, o despacho judicial que mandar registrar e autuar o pedido, já nomeará o inventariante indicado, homologando o Juiz, nessa mesma oportunidade, a partilha, dando por ultimado o procedimento. Da decisão homologatória serão extraídas certidões, uma vez que dispensáveis os formais de partilha por inexistir sentença a julgar a partilha, pressuposto estabelecido pelo art. 1.027, do C.P.C., para a extração de formais. De posse da certidão é que o herdeiro, cessionário ou legatário (pois em todas essas hipóteses cabível a adoção deste rito), providenciará no recolhimento do imposto de transmissão, pelo valor atribuído pela Fazenda Pública, através do procedimento deferido pelo § 2.º, do art. 1.034 do C.P.C., e à complementação da taxa judiciária, se houve divergência com valor apontado na partilha, conforme o § 1.º, do mesmo artigo. Com o registro imobiliário se perfectibiliza a transmissão da propriedade dos bens imóveis, não restando qualquer possibilidade de serem reclamados tributos de nenhuma ordem.

 

Igual procedimento será adotado no caso de um único herdeiro, como refere o parárafo único, do art. 1.031, onde a decisão judicial será meramente declaratória de adjudicação. De outra parte, apesar do inc. 25, do art. 167, da Lei dos Registros Públicos, mencionar sentença de adjudicação , por enexistir sentença, como se infere do art. 715, do C.P.C.

 

A indisponibilidade quanto à adoção deste rito, que tem aplicação imediata, atingindo os feitos em andamento, por se tratar de norma de caráter instrumental, não dá azo às partes, e nem ao Juiz, para que se adote procedimento que não mais de encontre regrado em lei. Mister, pois, que sejam as partes intimadas a complementarem o pedido, atendendo as novas exigências, pena de indeferimento da petição inicial ou extinção do feito. Não há como se afastar a aplicação do art. 284, e seu parágrafo único, em caso de falta de atendimento de todas as exigências da lei. Não tem respaldo legal a suspensão do feito, a adoção do rito solene, e nem a destituição do inventariante, ex officio, pelo Juiz.  Ad argumentadum, e apenas como subsídio aos doutos, cumpre não olvidar, na hipótese de inobservância do disposto no parágrafo único, do art. 284, do C.P.C., a regra contida no art. 989, do mesmo estatuto, onde o comando legal é imperativo e diz que o Juiz determinará, de ofício, que se inicie o inventário se as pessoas mencionadas nos arts. 987 e 988 não providenciarem na adoção do rito previsto em lei. O art. 989 tem aplicação autorizada expressamente pelo que ora dispões o art. 1.038, com a nova redação dada pela Lei n. 7.019/82.

 

Despiciento afirmar-se, por outro lado, que, se houver dificuldade ou impossibilidade, alegadas pelas partes, para a obtenção da negativas tributárias, procederá o Juiz de conformidade com o art. 399, do C.P.C., requisitando as mesmas. A ausência de avaliação também é muito abrevia o novel procedimento, só se tornando a mesma necessária quando os credores do espólio discordarem dos valores atribuídos aos bens reservados para a satisfação  de seus créditos. Conforme preceitua o parágrafo único, do art. 1.035, do C.P.C., mister se faz a notificação do credor. Por não haver a prescrição de nenhum procedimento especial, poderá ocorrer: 1) o espontâneo comparecimento do credor manifestando sua concordância, já na petição inicial, sendo também possível; 2) a cientificação ser feita através do procedimento preconizado no art. 867, do C.P.C., ou mesmo 3) dentro dos autos do arrolamento, atendendo requerimento das partes, para que sejam intimados os credores a se manifestarem dentro no prazo a ser fizado pelo Juiz.

 

Conforme explicitado, bem andou o legislador em concentrar o arrolamento sumário em um único ato, ausentando a Fazenda Pública da órbita judicial e lhe conferindo meios administrativos par obter a satisfação de seus créditos, o que ensejará uma mais célebre prestação jurisdicional, com atendimento mais pronto às partes, e um conseqüente desafogamento do Poder Judiciário.

 

III – A partilha de bens de pequeno valor.

 

No art. 1.036, do C.P.C., acha-se regulada a partilha de bens de pequeno valor, ou seja, inferior a 2.000 O.R.T.Ns., procedimento a ser adotado quando houver dissenso entre herdeiros ou concorrerem a partes menores ou incapazes. Este procedimento tem início com o pedido de abertura de inventário pelo inventariante que, ao ser nomeado, independentemente da lavratura  do respectivo termo, apresentará suas declarações e o plano de partilha, já atribuindo valor aos bens. A lei não fixou data para essa apresentação, podendo ser adotado o prazo do art. 993, do C.P.C., fixindo-se o termo a quo na data da nomeação pelo Juiz, mas nada impedindo, porém, que já constem tais elementos da petição inaugural. A aplicação subsidiária do art. 993 encontra respaldo, também, no art. 1.038, em sua nova redação.

 

Como um dos pressupostos para eleição de rito é a falta de acordo entre os herdeiros quanto à partilha, pois, em caso contrário, é de ser adotado o rito mais simplificado do arrolamento sumário, não comparecendo todos os herdeiros faz-se necessária a citação dos ausentes, nos termos do art. 999, do C.P.C., bem como do M.P., se houver interesse de incapazes. Vê-se, ainda mais uma vez, a aplicação subsidiária do art. 1.038. Só no caso de haver impugnação é que se procederá à avaliação.

 

É de se estranhar tenha a nova lei mantido a audiência para a deliberação sobre a partilha (art. 1.036, § 2.º), o que em muito retardaria a conclusão do feito. Tal audiência já não vem sendo designada, ao menos em nosso Estado, e sem qualquer prejuízo às partes. No § 3.º, do mesmo art. 1.036, surge o único termo previsto na lei, mas pode o mesmo também  ser dispensado e a partilha ser deliberada por despacho judicial, intimando-se as partes.

 

Ante o texto do § 4.º, do art. 1.036, desnecessária se faz a remessa dos autos ao contador, sendo julgada a partilha diante da prova do pagamento dos tributos relativos aos bens do espólio e suas rendas, dispensando-se, assim, o prévio recolhimento do imposto de transmissão. No caso de haver impugnação, haverá sentença a julgar a partilha, fazendo-se necessária a expedição de formais. Pode, no entanto, ser adotada a forma prevista no art. 1.029, do C.P.C., quando, então, como no arrolamento sumário, expedir-se-ão somente certidões.

 

IV – Por fim,  no que no que pertine com a atual redação do art. 1.037, totalmente modificada, mister registrar algumas observações. O pagamento dos valores previsto na Lei n. 6.858, de 24.11.80, de acordo com o art. 1.037, independerá de inventário ou arrolamento. Aquele diploma legal dispões sobre o pagamento, aos dependentes ou sucessores, de valores não recebidos em vida pelos respectivos titulares. O art. 1.º trata de valores relativos ao F.G.T.S. e PIS/PASEP, sendo que em sua parte final se refere ao pagamento aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. Nessa parte, portanto, a Lei n. 7.019/82 não inivou.

 

No entanto, a segunda parte do art. 2.º, da mesma Lei n. 6.858/80, estipula sua incidência quanto aos saldos bancários e de contas de caderneta de poupança e fundos de investimentos de valor até 500 O.R.T.Ns., na hipótese da inexistência de outros bens sujeitos a inventário, vale dizer, se existirem outros bens sujeitos a inventário, ou os valores forem superiores a 500 O.R.T.Ns., para o levantamento dos referidos valores é indispensável o inventário ou arrolamento. Aliás, o decreto n. 85.845, de 26.3.82, que regulamentou a Lei n. 6.858/80, em seu art. 1.º, parágrafo único, inc. V, condiciona, claramente, o pagamento dos valores que menciona ao fato de não existirem na sucessão outros bens sujeitos a inventário, e o art. 4.º, do mesmo decreto, somente exige a comprovação, por meio de declaração, da inexistência de outros bens, para os fins do item V, parágrafo único, do art. 1.º.

 

Essa a situação vigente até o advento da Lei n. 7.019/82, que modificou também a redação do art. 1.037, do C.P.C., o qual passou a viger, verbis: independerá de inventário ou arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei n. 6.858, de 24.11.80. Ora, como os valores relativos a salários, F.G.T.S., PIS/PASEP, restituições de Imposto de Renda, e outros tributos recolhidos pela pessoa física, já podiam ser levantados independentemente de inventário, pelos dependentes habilitados perante a Previdência Social, ou na forma de legislação específica dos servidores civis e militares (art. 1.º, da Lei n. 6.858/80), parece lícito, senão forçoso, concluir-se que a nova redação dada ao art. 1.037, do C.P.C., teve como alvo exclusivo a parte final do caput, do art. 2.º, da Lei n. 6.858/80, que trata dos saldos bancários e cadernetas de poupança e fundos de investimento de valor até 500 O.R.T.Ns.,

 

Tal entendimento parte do princípio geral de hermenêutica, segundo o qual inexiste disposição legal inócua, e, por isso, não parece correta e assertiva de que nunca dependeu de inventário ou arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei n. 6.858/80. Destarte, se existissem outros bens sujeitos a inventário e os saldos bancários, cadernetas de poupança e fundos de investimento fossem de valor superior a 500 O.R.T.Ns., seria obrigatório o inventário ou arrolamento, e os sucessores somente poderiam levantar tais valores mediante alvará judicial.

 

A nova redação dada ao art. 1.037, do C.P.C., parece ter revogado, portanto, o disposto no art. 2.º, in fine, da Lei n. 6.858/80, e as regras pertinentes do decreto que a regulamentou. Doravante, em conseqüência, mesmo existindo outros bens sujeitos a inventário e mesmo sendo os saldos bancários, de cadernetas de poupança e de fundos de investimentos, superiores a 500 O.R.T.Ns., poderão os sucessores previstos na lei civil levantar tais valores independentemente de inventário ou arrolamento, desde que, obviamente, comprovem a qualidade de sucessores.

 

Vê-se, desta rápida e despretensiosa análise, que o legislador teve por intuito, usando um termo atual, desburocratizar o processo do inventário, através da abreviação dos arrolamentos, o que vem de encontro aos mais altos interesses, quer das partes, quer da própria justiça, vez que a prestação jurisdicional célebre é o anseio maior de todos que se socorrem do Poder Judiciário para dirimir suas controvérsias ou ver declarados seus direitos.

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Considerações sobre o arrolamento em face da Lei n° 7.019, de 31.08.1982. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 1991. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/consideracoes-sobre-o-arrolamento-em-face-da-lei-nd-7019-de-31081982/ Acesso em: 21 nov. 2024
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