Carlos Athayde Valadares Viegas *
Este estudo tem o intento de promover a discussão sobre um dos aspectos controvertidos da sistemática recursal brasileira, qual sejam, as questões ligadas à facultatividade dos magistrados em aplicar a regra processual específica.
Em especial, trataremos da relação entre o juízo de admissibilidade do agravo de instrumento (art. 527, II, CPC) e a concessão do efeito suspensivo ou da antecipação de tutela pelo relator (arts. 527, III e 558, CPC). Trata-se, afinal, de um poder, uma discricionariedade, ou um dever? O que é o poder/dever do juiz em relação às normas aparentemente permissivas?
Antes, porém, faremos uma breve digressão histórica e conceitual sobre o recurso de agravo, objeto desta nossa pesquisa.
O agravo é o recurso próprio para enfrentar as decisões interlocutórias (art. 162, §2º, CPC), que são aquelas que, apesar de seu conteúdo judicial decisório, não possuem as características trazidas nos art. 267 e 269 do CPC, ou seja, não são sentenças.
Originário do direito medieval português destinava-se a “contornar a vedação ali presente quanto ao emprego do recurso de apelação para impugnar as decisões interlocutórias” 1.
Transportado para o Brasil pelos colonizadores, fora previsto nas ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Após a independência, foi recepcionado pelo ordenamento pré e pós-constituição de 1824.
Já nas primeiras linhas do direito processual genuinamente brasileiro, surgido em 1832, com a promulgação do Código de Processo Criminal do Império, o agravo estava presente como instituto recursal.
O Regulamento 737 2, de 25 de novembro de 1850, que consolidou a matéria processual brasileira, também o previu.
Com o golpe republicano, continuou prevalecendo dito regulamento, o qual inspirou os códigos processuais estaduais até o advento do Estado Novo, quando foi o recurso do agravo inserido no diploma processual de 1939.
A redação original do Código de Processo Civil em vigor continha, em relação ao agravo, uma regulação diferente da atual, dentre as quais a modalidade instrumental ser regra e a retida exceção.
As alterações contidas na nova redação dada pela Lei 11.187 de 19.10.2005 vieram para aprimorar as questões de funcionamento do sistema judiciário e clarear a interpretação quanto à aplicação das modalidades do agravo. Pela nova sistemática, não restam dúvidas quanto à ordem estabelecida pelo legislador, a modalidade retida do agravo passou a ser a regra, sendo o agravo de instrumento reservado para as causas de lesão grave e de difícil reparação, para os casos de inadmissão de apelação e aqueles relativos aos efeitos em que a apelação é recebida.
O atual Código de Processo Civil contempla o instituto no seu art. 522. “Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento”.
Distribuído o agravo e designado o relator este, com base nos artigos 527 e 557 do CPC, fará a análise do cabimento do recurso. Aqui uma importante consideração: a combinação dos critérios contidos nos artigos 527 e 557 é fundamental para a avaliação da admissibilidade do agravo de instrumento, uma vez que se trata de recurso de fundamentação vinculada.
Note-se que as hipóteses de admissão do agravo são, prima facie, as mesmas para a concessão do efeito suspensivo ou da antecipação de tutela em sede de agravo.
Ocorre, neste momento, um fenômeno chamado consubstanciação processual, uma confusão de matérias ou, nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier uma “sobreposição entre o juízo de admissibilidade de recursos e o mérito, quando se trata de recursos com fundamentação vinculada”.3
A doutrina classifica as inovadoras ferramentas processuais colocadas à disposição do relator, em sede de juízo de admissibilidade recursal, como sendo um instrumental de amplos poderes4.
No nosso entendimento, contudo, devemos conceber como amplo aquilo que é abrangente, mas não ilimitado ou absoluto, uma vez que esta amplitude está restrita à lei, ao texto do diploma processual e acima de tudo ao abrangente mandamento constitucional solidificado no princípio do devido processo legal.
A lei objetivamente determinou rigorosos critérios para serem estritamente observados pelo relator, que deles não pode se afastar. Nada aqui lhe é facultado, tendo a legislação previsto todas as hipóteses de atuação do relator, que, primeiramente, “deverá verificar se é o caso de se negar, liminarmente seguimento ao gravo. (Sendo o agravo intempestivo, manifestamente improcedente, deserto, contrário a súmula ou jurisprudência dominante, deverá o relator, com apoio no art. 557 do CPC, negar-lhe seguimento” 5 , ou convertê-lo em agravo retido, art. 527, II do CPC).
Na ponta oposta, verificadas as condições para o recebimento do agravo de instrumento, quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, e havendo pedido para tanto, também fica o relator restrito aos ditames legais, devendo, então, atribuir efeito suspensivo ao recurso e deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão (art. 527, III).
Note-se que, apesar do texto legal utilizar o termo “poderá”, não se trata na verdade de uma faculdade dada ao juiz. Pois, uma vez preenchidas as condições para a admissão do agravo de instrumento torna-se um dever do juiz suspender o curso do processo original ou deferir a antecipação da tutela, dependendo apenas do pedido do agravante, haja vista que os requisitos para a admissão do agravo na modalidade de instrumento são, em essência, os mesmos exigidos para a concessão das medidas de urgência previstas nos arts. 527, III e 558 do CPC (lesão grave e de difícil reparação).
Repise-se, portanto: da inteligência do art. 527, II, do CPC, cabe agravo de instrumento quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida. Diz ainda que poderá o relator atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 527, III), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão.
Na mesma esteira, o art. 558 diz que a requerimento do agravante o relator “poderá” (leia-se: deverá) suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara, quando do caso concreto possa resultar lesão grave e de difícil reparação, sendo relevante a fundamentação.
Neste caso, como já dito, os critérios para o cabimento do agravo de instrumento são, por si só, bastantes para a concessão da suspensão do feito, ou antecipação da tutela, pois, caso recebido o agravo na modalidade de instrumento, a condição para a concessão da medida de urgência pretendida já está dada, uma vez que similares os pressupostos para um e outro.
Roberto Eurico Schmidt Junior, em obra específica que trata das antecipações de tutela jurisdicional, referindo-se ao termo “poderá”, assim se pronuncia “não somos do entendimento de que tal indica, pura e simplesmente, uma faculdade do juiz. A exemplo do que ocorre no processo cautelar, estando presentes os requisitos, deve a liminar ser concedida. Assim, a discricionariedade apontada no caput do artigo(278, CPC) limita-se à análise dos requisitos para a concessão da medida.”6
A não concessão dos efeitos requeridos no agravo de instrumento, regularmente recebido pelo tribunal, fere mortalmente pelo menos dois princípios constitucionais, fundamentais para o Estado democrático de Direito, quais sejam o Due Process of Law (devido processo legal) e o da duração razoável do processo.
Por força deste primeiro princípio constitucional, o magistrado deve, relativamente ao processo, agir em conformidade com a lógica legalmente instituída, pois com o devido processo legal “combinado com o direito de acesso à justiça (art.5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude de defesa (art.5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e quando se fala em processo, e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica”.7
Vamos frisar: o princípio fala do devido processo legal, não de um possível processo legal. O que o princípio constitucional garante é a aplicação da lei pelo Estado/Juiz, vedando explicitamente a facultatividade ou uma pretensa discricionariedade do magistrado. O juiz que não aplica as hipóteses legais previstas no ordenamento, especialmente no novel regulamento do agravo, contidos na Lei 11.187/2005, está consumando uma arbitrariedade.
Além da arbitrariedade de não aplicar a lei no caso concreto, o magistrado que se recusa a atender aos ditames da lei, também está ferindo o princípio da duração razoável do processo, pois, a gravidade ou o perigo de lesão já podem ter sido transformados em definitivo prejuízo ao direito do agravante quando sobrevier o julgamento do agravo, que foi recebido sem o atendimento do pedido de suspensão da decisão agravada ou da antecipação da tutela. Afinal, ao prolongar no tempo a decisão sobre o caso, e em virtude disto sobrevindo a lesão ao direito, deixou de ser razoável a duração daquele feito.
Entretanto, há que se vincar que, em sua maioria, os Tribunais não coadunam com a conclusão ora apresentada, já que se amparam na interpretação literal do texto legal, atribuindo ao termo poderá, constante dos artigos citados, um sentido de faculdade do julgador e não, como seria de se esperar, de vinculação.
Argumentam que, sendo o ato julgador uma combinação entre a inteligência da lei e a vontade do magistrado, esta tem prevalência em relação àquela, ou seja, mais peso tem a vontade que a letra da lei.
Contudo, a vontade que faz parte do ato julgador não é a vontade de um homem, mas, pelo contrário, é a vontade do Estado, pois, como nos ensina o Professor Manuel Galdino da Paixão Júnior, o julgamento combina a “inteligência do homem, que se fez Juiz, e de quem o Estado a tomou, por empréstimo, fazendo dele um órgão seu, por meio de quem declara a vontade soberana” 8. Estando, contudo esta vontade restrita à lei.
Portanto, em que pese o posicionamento majoritário em contrário, defende-se aqui a tese de que a concessão de efeito suspensivo ou de antecipação de tutela em sede de agravo de instrumento é corolário lógico e indissociável da anterior admissibilidade do recurso na modalidade de instrumento, pela similitude dos pressupostos para a admissão e para a concessão da medida de urgência pretendida.
Notas de rodapé convertidas
1Kosikoski, Sandro Marcelo- Manual dos Recursos Cíveis- 4ª. Edição-p.243
2 Wambier, Teresa Arruda Alvim- Os Agravos no CPC Brasileiro-4ª. Edição-p.50.
3 Wambier, Teresa Arruda Alvim – Omissão Judicial e Embargos de Declaração-editora Rt-2005-p.64-65.
4 Júnior, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil, 47ª Edição, V.I, Forense, p.684.
5 Didier, Jr. Fredie, Leonardo José Carneiro da Cunha. Curso de Direito Processual Civil. 4ª edição, v.3,Podivm,p.143.
6 Schidt Junior, Eduardo Eurico,-Tutela Antecipada de Ofício. Editora Juruá, p.111-2007.
7 Da Silva, Afonso José, Curso de Direito Constitucional Positivo-Malheiros Editores-27ª edição, p.432(grifo nosso).
8 Manuel Galdinho da Paixão Júnior, Teoria geral do Processo, Editora Del Rey, p.297.2002.
Texto revisado por Cláudio Miranda Pagano (Professor de Direito da Faculdade Pitágoras, Defensor Público, Mestre em Direito)
* Acadêmico do 7º Período do curso de Direito da Faculdade Pitágoras de Belo Horizonte(MG).
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.