A América Ameaçada?
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Sim, mas bem menos pelos terroristas islâmicos. Quem a ameaça mais profundamente — e inconscientemente, o que é mais grave, porque “ele” pensa que só ameaça os islâmicos — é um cidadão chamado George W. Bush. Um político de capacidade aquém do idealmente exigível para o cargo que ocupa e que jamais poderia ter penetrado na alta política. Nela ingressou e nela cresceu porque a democracia, à semelhança do que acontece na evolução biológica do homem — peixe, réptil e mamífero — ainda guarda muito de seu regime antecedente, a aristocracia. Um Kennedy, ou um Bush, por exemplo, nos EUA, que se candidate a qualquer eleição, sempre será bem-vindo por partidos e eleitores, só em razão do sobrenome. Capacidade já não é tão importante quando o sangue é azul. É a força do nome, da “nobreza”, que ainda tem, paradoxalmente, grande peso nas democracias. Estas não se livram facilmente do passado.
A História é construída segundo dois fatores: 1) o desenrolar, por vezes imprevisível, dos fatos sociais e políticos, e 2) o mero acaso do nascimentos dos bebês. A “roleta russa” — ou será agora melhor batizada “americana”? — da sorte ou azar que tanto pode significar a salvação quanto o suicídio político de uma nação. Jefferson, Lincoln e Franklin D. Roosevelt, por exemplo, foram bênçãos. Quem pode prever qual o peso comportamental, político e econômico que um risonho bebê terá quando chegar à idade adulta? É uma incógnita. Se W. Bush não tivesse nascido, quase certamente o mundo não estaria como está hoje, ameaçado de uma conflagração de alcance imprevisível. Algum outro político — certamente bem mais ajuizado que o atual presidente dos EUA — estaria ocupando o cargo mais poderoso do mundo. Poderoso e, só por isso, triplamente perigoso, porque qualquer falha de direção de seu condutor pode redundar em colisões de conseqüências planetárias.
Um presidente, digamos, “normal” teria tido mais cautela antes de invadir o Iraque. Mesmo ardendo de vontade para mostrar a seu pai que tinha valor, sim, tanto que “foi além dele” no que se refere a Saddam Hussein. Certamente esse hipotético presidente teria se preocupado em forjar uma indispensável reputação de “amigo da verdade” — e reputação, em política, é quase tudo —, porque a verdade aparece, cedo ou tarde. Não por causa da polícia, mas em razão do jornalismo investigativo, essa terrível arma de dois gumes, muito mais útil que prejudicial.
Teria também, o hipotético presidente, se preocupado com o bem-estar dos palestinos que, sem a menor cerimônia, foram expulsos das terras que ocupavam há vários séculos, após a última diáspora judaica. Diáspora pela qual os palestinos não são responsáveis. No alvoroço lírico da criação de um Estado próprio — uma idéia, em tese, justa — judeus e não-judeus americanos simplesmente se esqueceram de pensar no povo palestino. Ocorre que os injustamente esquecidos também não esquecem, daí o caldeirão de ódio represado que se manifesta em “terrorismo”. Ou “resistência”, conforme o ângulo da parte interessada.
Se presidentes anteriores a George W. Bush também não pensaram muito sobre a necessidade de serem igualmente justos com os palestinos — quando o conflito era menor, porque menor o afluxo judaico à região — o problema se tornou mais agudo em décadas recentes, exigindo dupla atenção de W. Bush. E esta atenção foi negada, sobretudo porque fazem a sua cabeça presidencial colaboradores mais preocupados com os lucros da indústria armamentista — nadando em felicidade no atual clima belicista — e com a incômoda dependência americana do petróleo existente no Oriente Médio. Os internacionalistas costumam ressaltar a evidente pressa seletiva de Bush em “implantar a liberdade e a democracia” nas regiões produtoras de petróleo. Onde não há petróleo a preocupação com a liberdade é bem remota. E ele faz isso porque supõe que, assim agindo, atua como um patriota “experto”, de longa visão, tão longa que os outros, “as bestas”, não alcançam. É o que transparece nos seus discursos. Ele parece acreditar que a verdade é totalmente manipulável mas, mesmo não o sendo totalmente, garante uma aprovação suficiente nas pesquisas de opinião.
Estou, porém, me desviando do tema deste artigo: a ameaça real à América. E a ameaça a que me refiro não é aquela relacionada com bombas e atentados vários em território americano. Refiro-me ao perigo institucional que corre a própria democracia americana. Risco não a prédios, metrôs, aviões ou navios. Um risco íntimo, capaz de bichar o próprio caroço democrático do grande país que praticamente inventou a forma menos defeituosa de organização governamental, fórmula depois imitada por quase todos os países ditos democráticos.
Qual, porém, a relação de causa e efeito entre o perigo W. Bush e a democracia americana? Não estarei exagerando? Poderia a nação americana tornar-se anti-democrática, claramente ditatorial, em razão de um eventual Bush, personagem de bem mediana força intelectual? Teria esse algo simplório cidadão o poder que empurrar para fora dos trilhos a pesada e potente locomotiva da democracia americana? Qualquer pessoa que se considere pelo menos medianamente informada afastaria — reconheço —, de imediato, essa possibilidade. Uma delas, ouvindo minha conjetura, retrucou no ato: “Impossível! Absurdo! Jamais os Estados Unidos se tornarão uma ditadura!”
Profecias são fontes de desmoralização dos profetas. Estes, para salvar a reputação, só devem profetizar para um distante futuro, Assim mesmo, com imprecisos enunciados, porque se suas previsões se revelarem erradas, ou o profeta já não mais estará entre os vivos — e os mortos merecem respeito —, ou, se vivo, arranjará uma sutil desculpa para dizer que não afirmou exatamente isso ou aquilo. A reputação do profeta, vide Nostradamus, é salva pela dúvida e infinitas possibilidades do mingau interpretativo.
Qual o perigo concreto, real, anti-democrático — via Bush — que ameaça o povo americano? É que, em razão de suas “poucas luzes” — como se costuma dizer no mundo jurídico brasileiro —, Bush, temendo que, ao deixar o cargo, tenha que viver como um prisioneiro, rodeado de seguranças (tal o legado de ódios e ressentimentos que deixará, findo seu governo) tudo fará para que a América se sinta constantemente “sob ameaça”. Esta foi, certamente, uma das razões porque deu carta branca a Israel para invadir o Líbano e destruir pontes, casas, prédios, veículos e qualquer coisa que se movesse ou permanecesse quieta (imobilidade suspeita, indício de que se trata de um terrorista na moita). É inconcebível que o premier israelense iniciasse os bombardeios, de tanta má-repercussão internacional, sem autorização do presidente americano.
Pode-se ler o que tramita dentro do cérebro do atual ocupante da Casa Branca: “Enquanto eu mantiver meu povo atemorizado com as ameaças terroristas, ele me apoiará. Como me apoiou, extraordinariamente, após o 11 de setembro. Meu prestígio subiu de trinta e poucos por cento para oitenta e tantos. Não posso, portanto, como político, relaxar, apaziguando o temor de meus eleitores. E o melhor modo de garantir, em meu benefício, esse ódio aos Estados Unidos será apoiando Israel de modo incondicional. Como o povo israelense está assustado com a ameaça de extinção do Estado de Israel” — observação minha: o também afoito presidente iraniano andou falando essa bobagem —, “sem condições psicológicas de raciocinar com equilíbrio, seu governo vai continuar massacrando libaneses e palestinos, gerando o ódio e o perigo necessário à minha permanência como presidente dos Estados Unidos”. Isso porque os povos árabes identificaram uma unidade de propósito entre judeus e americanos.
Tenho como certo que muitos ditadores tiveram, em momentos de suas vidas, já cansados mas ainda no cargo, o desejo de viver em paz, como simples ex-detentores do poder. Com dinheiro suficiente para viverem bem até a morte, e ainda deixar meios para que seus filhos e netos vivam decentemente, deve ser forte a tentação para uma vida tranqüila, sem inimigos perigosos, sem guarda-costas, lendo, viajando, proferindo palestras, etc. Ocorre que essa tranqüilidade torna-se impossível aos ditadores. A partir de um certo ponto de seus governos, abandonar o poder é risco certo de vida. Todos aqueles que sofreram injustiças pesadas tentarão se vingar. Seja com processos judiciais, seja com atentados ou simples bofetões ou pontapés dados inesperadamente. Um ditador que gerou muito ódio não pode caminhar sozinho pelas ruas. Um ex-ministro da Justiça dos tempos da ditadura brasileira, manteve, por vários anos, seguranças muito bem armados até quando permanecia em casa. Seria, pergunta-se, imaginável Hitler, Stálin, Pinochet, Lenine, Idi Amin Dada, e muitos outros, andando sozinho pelas ruas, depois de, no poder, ter gerado tantos inimigos? Se até mesmo ex-presidentes bem democráticos tiveram que criar um “foro privilegiado” para evitar a vingança miúda — via processos judiciais de ressentidos — imagine-se o que conjetura um governante que provocou imensos ódios.
É aí que está o perigo maior que ronda a América de Bush. O aumento deliberado da sensação geral de perigo como fórmula de permanência no poder. Perigos geram a necessidade de um pai protetor.
Mas haveria uma alternativa, ousada, que, se concretizada, salvaria não só Bush, como também a América e o próprio planeta do caminho de um novo caos político e militar: o reconhecimento, elementar, de que os conflitos individuais têm que ser resolvidos por tribunais idôneos, imparciais. Por “terceiros”, devidamente legitimados.
Se há séculos se reconheceu — unanimemente — que os conflitos inter-individuais devem ser resolvidos por um “terceiro”, que impõe sua decisão depois de ouvir as partes, por que — pergunta-se — ainda se teima na estupidez de pretender que o conflito árabe-israelense seja solucionado por acordo entre eles mesmos? Com tanta morte, medo e sangue minando o senso de justiça das partes envolvidas será impossível chegar-se a um acordo estritamente construído pelos litigantes. É preciso que a ONU “cresça e apareça” — pelo menos e inicialmente —, no seu componente “judiciário”, impondo a solução mais justa, inclusive criando compensações financeiras para quem perder território na decisão.
Se George W. Bush, tão ousado em certas posições, tiver o “estalo” e a coragem de dar efetividade a um “judiciário universal”, que já existe — a Corte Internacional de Justiça —, porém castrado no poder de fazer cumprir suas próprias decisões, ele entraria na História. E dela sairia depois pela porta da frente, não pela dos fundos, como parece ser hoje o seu destino, se não mudar de orientação. Se ele cometesse essa ousadia — santa ousadia —, “viraria a mesa” da opinião pública, obtendo reconhecimento universal. Eu mesmo, irrelevante pulga palpiteira, cancelaria de imediato, todas as considerações negativas sobre ele que revelei neste texto. E esse cancelamento não seria baseado apenas em oportunismo e falsidade. Tenho a convicção — talvez benevolente demais — de que os seres humanos são vítimas de limitações pelas quais não são inteiramente responsáveis. Bush é um bom marido, um bom pai, um bom filho e homem temente a Deus. Qualidades, em tese, ideais em qualquer homem, mas não suficientes para um verdadeiro estadista. É também um patriota, embora com uma visão hoje ultrapassada, estreita, do que significa patriotismo. Este já não pode conflitar com o amor ou pelo menos o respeito a todos os povos do mundo. Bush não atingiu este estágio, mas não é impossível que isso ocorra. Se alguns amigos interesseiros que o rodeiam disserem que essa nova visão prejudica “the business”, é o caso de dizer a eles que já lucraram o suficiente.
Uma Corte Internacional de Justiça, com juízes íntegros, indicados por entidades de reconhecida isenção, passaria a julgar todos os conflitos que estimulem guerras, aplicando não só o Direito Público Internacional como também regras de equidade e princípios gerais de direito. A autorização para o uso da equidade — inclusive com compensações financeiras — seria indispensável porque decisões “duras de engolir” descem mais facilmente quando o prejuízo material não é excessivo.
O site da “National Priority Project” informa-nos que o custo atual da invasão do Iraque está acima dos trezentos bilhões de dólares. Com 10% desse valor aplicado em compensações às partes mais prejudicadas com a decisão da Corte Internacional a decisão judicial significaria um estancamento na sangria do contribuinte americano. Pense nisso, Bush. E pense também na alegria interior de um dia poder caminhar sem guarda-costas. Perseguido, sim. Não por vingativos terroristas mas por caçadores de autógrafos. Essa vida combina mais com sua natureza amigável, sorridente, e está à sua disposição com umas poucas canetadas. “Scholars” de notável competência na área não faltarão para assessorá-lo nessa bela empreitada.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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