Política

11 de agosto de 2008: dia de luto para a advocacia

11 de agosto de 2008: dia de luto para a advocacia

 

 

Mário Gonçalves Júnior*

 

 

Pelo que se tem noticiado, tudo indica que o 11 de agosto deste ano será um dia de luto para a Advocacia. O Governo prepara um presente de grego para os advogados: veto do presidente da República a projeto de lei que disciplina a inviolabilidade dos escritórios de advogados.

 

Pelo projeto aprovado no Congresso, os escritórios de advocacia só perdem a inviolabilidade nos casos em que os próprios advogados estiverem sendo investigados como suspeitos de crimes. Em relação aos clientes dos advogados, a inviolabilidade é garantida.

 

O discurso dos pró-veto está circulando argumentos no sentido de que o projeto estimularia a impunidade, exacerbando as prerrogativas dos advogados. A OAB nacional se posicionou a favor do projeto, mas associações de magistrados, procuradores e da polícia posicionam-se contra.

 

O sigilo profissional dos advogados sempre foi comparado ao sigilo dos confessionários. A julgar pelos argumentos dos que querem ver os escritórios de advocacia expostos feito bancas de feira-livre, é de se perguntar por que, então, não são violados também os locais onde as pessoas confessam pecados. Afinal, muitas vezes pecados são também capitulados como crimes. Está na lei de Moisés e no Código Penal: “Não matarás”, por exemplo.

 

A justificativa do combate à impunidade serve como uma luva para tudo, até para cinicamente atacar o Estado de Direito. No tempo da ditadura, toda atrocidade era justificada com a necessidade de se enfrentar o “mar de lama” (essa mesma água suja que infelizmente empastela as solas dos sapatos de todos nós até hoje, vinte anos de redemocratização). Com essa baboseira tudo pode ser inocentado, inclusive dependurar padres no pau-de-arara para revelarem confissões de párocos criminosos.

 

No fundo o que esse movimento contra inviolabilidade dos escritórios de advocacia esconde são duas coisas bem nítidas, mas que não parecem querer sair debaixo do tapete: (1) uma crescente insatisfação com a lei rigorosa para os mais pobres e flácida para os mais ricos; (2) a manifesta inépcia dos órgãos oficiais de buscarem provas incriminadoras respeitando os limites da lei e os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.

 

As vozes das agremiações e corporações que estão empurrando a advocacia para o buraco só encontram eco porque nós, brasileiros (enquanto povo, nação), infelizmente flertamos muito tempo e de maneira desavergonhada com a impunidade seletiva (“aos amigos tudo, aos inimigos a lei”). Só pobre vai para a cadeia, que invariavelmente é um depósito humano, enquanto ricos saem do país depois de habeas corpus e pela porta da frente, carimbando passaporte e tudo. Classe média, quando muito, usufrui de sala especial quando tem diploma universitário. Do contrário, vai para os mesmos crematórios psíquicos.

 

Só poderia dar no que deu. Como os ricos sempre conseguem safar-se da aplicação da lei penal com mil subterfúgios processuais legítimos, quando não são absolvidos porque não foram produzidas provas suficientes ou bem produzidas, apelam para a prescrição. Daí as bem intencionadas autoridades policiais e judiciárias querem transformar a prisão preventiva em prisão punitiva, ante a perspectiva desanimadora da prisão definitiva que no final das contas nunca acaba sendo aplicada.

 

A massa iletrada e pobre assiste a tudo isto, não tem cultura mínima para discernir, mas o sentimento de injustiça os empurra a apoiar os que querem os escritórios de advocacia casas-da-Maria-Joana. É fácil e até covarde convencer esse povo massacrado e esquecido pelo Estado de que arrombar os escritórios de advocacia é o caminho mais fácil para prender bandidos. Difícil é explicar, até para os juristas, como é que alguns conseguem alcançar a Corte máxima desprezando as instâncias intermediárias (“aos amigos tudo, aos inimigos as Súmulas!”).

 

Esses acontecimentos recentes relacionados ao prende-e-solta de Daniel Dantas seria natural somente numa República incipiente. É por isso que, intuitivamente a alguns, técnica e cientificamente a outros, causam perplexidade. Para os leigos é um concerto desafinado. Para especialistas, o caos incomum noutras ciências, exatas ou não.

 

Os juristas conservadores sempre terão à mão o argumento de que “o direito não é uma ciência exata”, para explicar essa inconsistência jurídica. Curioso que outras ciências “inexatas” não padecem hoje dessas turbulências. A psicologia e a psiquiatria têm paradigmas mais seguros, mesmo que mudem de tempos em tempos. Psicopata é psicopata, por mais inalcançável que sejam as profundezas da mente humana. E o conceito se aplica a ricos e pobres. Cada patologia tem seu tratamento, sua medicação, ninguém fica à própria sorte, ninguém é overdosado. Em direito, ao menos no Brasil, isto está longe de acontecer. Ainda é ao gosto do fregüês.

 

A sociedade leiga nem pode assistir senão perplexa, como criança ao primeiro teorema, se nós, os especialistas, gaguejamos se perguntados sobre essa esquisita escala de valores. O discurso de que “a democracia não é obra pronta” soa como falácia, mesmo na diversidade cultural brasileira. Que não é pronta, não é mesmo, em lugar algum do mundo. Mas ao invés de levantar, estamos derrubando o pouco que está de pé.

 

Por outro lado, para que investigar se se pode ir direto à fonte (escritórios de advocacia)? Já está na hora de algum instituto isento fazer uma estatística de quantos juízes costumam, ou alguma vez manejaram, o instrumento da inspeção judicial, e, por conseguinte, qual o percentual de juízes que geralmente só trabalham nos seus gabinetes, a tudo resolvendo com papel e caneta. Ou quantos Delegados costumam ir a campo e quantos também só ficam no interior das delegacias. Ou quantos policiais estão designados para trabalhos internos e burocráticos, e quantos estão nas ruas combatendo o crime. Ao invés de mudar coisas como estas, é mais fácil arrombar os escritórios de advocacia, grampear linhas telefônicas a torto e a direito, incriminar pessoas com base exclusivamente em siglas mencionadas em conversas interceptadas. Faltam provas? Não importa. Basta chamar a imprensa para transmitir ao vivo e em cadeia nacional o uso das algemas em executivos flagrados no pijama. O show se encarrega de maquiar as falhas de investigação.

 

A desculpa esfarrapada de que os escritórios de advocacia tornar-se-iam refúgios para os criminosos é de amargar. É o “pequeno ditadorzinho nascendo dentro de cada um”, usando as palavras do próprio Presidente da República. Afinal, a má intenção fingida é a boa intenção traiçoeira.

 

* Demarest e Almeida Advogados. Pós graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho.

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
JÚNIOR, Mário Gonçalves. 11 de agosto de 2008: dia de luto para a advocacia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/11-de-agosto-de-2008-dia-de-luto-para-a-advocacia/ Acesso em: 19 nov. 2024
Sair da versão mobile