Hermenêutica

Para Uma Aproximação da Lei Enquanto Gramática: Norma e a Linguagem Jurídica Como Sentidos (Re) Apresentados.

Para Uma Aproximação da Lei Enquanto Gramática: Norma e a Linguagem Jurídica Como Sentidos (Re) Apresentados.

 

 

Antonio Marcelo Pacheco*

 

Resumo:

 

O texto tem como objetivo desenvolver uma compreensão em torno da norma jurídica enquanto produto de linguagem, na medida em que se considera esse conceito fundamental ao sistema jurídico como elemento-chave do conteúdo relacional da lei com os sujeitos. Parte-se do fato de que a norma, enquanto significante, pode (re) apresentar diferentes condições de linguagem, sem que uma prepondere em particular, o que não reduz a sua capacidade de organizar uma certa capacidade de mundividência. É, enquanto linguagem, uma ferramenta do imaginário, mesmo quando a sua clareza de conteúdo não mais seja possível uma vez observada a diacronia de sentidos em uma sociedade de complexidade e de segunda modernidade. É essa condição de segunda modernidade um fator determinante para a ruptura do modelo dogmático e tradicional, uma vez que os grandes metarrelatos, entre eles o do direito, se viram invadidos por toda uma gama de elementos multidisciplinares que tiveram como efeito principal a perda de uma essência, de um conteúdo centralizante e objetivo. É esse o caso do sistema jurídico e dos seus principais conceitos, entre eles o de norma jurídica. Na obrigatoriedade de representar as condições de facticidade, o direito se viu obrigado a aceitar-se enquanto discurso policontextual e assimétrico.

 

Palavras-Chave: NORMA; LINGUAGEM; SENTIDO; MUNDIVIDÊNCIA.

 

Abstract:

 

The main objective of the present text is to develop an understanding around the juridical norm as language product, in the way it is considered as a fundamental concept to the juridical system as key-element as a law-subject relational substance. Starting since the fact that the norm, while significant, can (re)present different conditions of the language, but one is not predominant in particular, what do not reduce its capacity to organize the worldvidence. It is, while language, an imaginary tool, even when its substantial clarification is not possible once its diachronic of the senses in a complexity society and of second modernity. This is the condition of the second modernity a determinant factor to the rupture of the dogmatic and traditional model, once the great metareports, among then the law, was sawn intruded by all holes of multidisciplinary elements which has as main effect the loss of an essence, of a centralizing and objective subject. This is the case of the juridical system and of its main concepts, among then the juridical norm. In the obligatorily to represent as factual conditions, the law is seen as obliged to accept itself as a discourse, policontextual and asymmetric.

 

KEYWORDS: NORM; LANGUAGE; SENSE; WORLDVIDENCE.

 

 

 

Introdução

 

“O tempo da vida humana: um ponto. Sua substância: um fluxo. Suas sensações: trevas. Todo o seu corpo: corrupção. Sua alma: um redemoinho. Sua sorte: um enigma. Que nos pode então servir de guia? A filosofia, apenas isso”. (Marco Aurélio. Meditações. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.25).

 

 

            Inegável o papel da filosofia para a compreensão em torno das questões que afligem a ontologia do ser. Contudo, antes mesmo de ser filosofia, o pensamento é linguagem. É nela que se percebem as convenções de sentido que permitem ao ser se encontrar como um ser aí, na medida em que (re) conhece nos sentidos a sua relação com o mundo.

 

 

            A linguagem é expressão exteriorizante de sentidos, condição de possibilidade na qual real e ficção (re) encontram existência, vez que enquanto representação de pré-juízos busca no imaginário[1] referencias aos quais os sujeitos estabelecem as fronteiras de uma suposta racionalidade racionalizadora.

 

            Em se observando a construção do espaço social dos e nos sujeitos é perceptível a sua necessidade em (re) afirmar os grandes sistemas discursivos que, inegavelmente com a emergência da modernidade dita histórica[2], passaram ainda mais a reclamar aqueles sentidos lógicos e supostamente seguros para o exercício constante do condicionamento simbólico dos indivíduos no espaço do imaginário social.

 

            Essa inserção de sentidos no mundo do ser é um paradoxo que a modernidade, por um lado, não conseguiu enfrentar, já que aqueles grandes sistemas discursivos acabaram por ‘poluir’ o espaço de linguagem com uma miríade de conceitos que não raro, ao entrarem em conflito, geraram uma condição de (des) encantamento fácil a partir das grandes definições, reduzindo-nos a uma condição de consumidores de signos não afeitos ao reconhecimento da compreensão; por outro lado, esse mesmo (des) encantamento de conceitos se constituiu numa condição de (in) segurança calcada na capacidade da razão em (re) apresentar o mundo. Condição essa que na segunda modernidade a sociedade de espetáculo se encarregou de aprofundar em sua pulsão (des) estruturadora.

 

            É assim em relação ao sistema jurídico.[3] A lei, ainda que banhada pela mitificação de uma lógica científica, racionalizante e mesmo moralista, não pode ser vista sem a medida daquilo que ela é realmente, isto é, linguagem. Enquanto linguagem ela é um exercício de ideologia, uma estratégia de representação que, inexoravelmente, condiciona o olhar sobre o sujeito, sobre a relação dos sujeitos e em conseqüência, sobre o mundano neles. A lei é um símbolo importante para a (re) apresentação do mundo, vez que nela há um capital simbólico de significativo valor para a memória daqueles hábitos que realizam o ser aí no mundo.

 

            Como linguagem a base da lei está na palavra, e essa é o que apela a ‘coisa’ a vir à presença do ser no discurso. No caso do discurso jurídico, a ‘coisa’ é a norma, ou melhor, é aquela ação que antes primariamente humana, sem um significado jurisdicizante, agora é também jurídica e, portanto, jurisdicizada.

 

            Ela faz com que o ente, isto é, a norma, venha a ser um seu sentido no discurso do ser. Mas só o pode fazer porque a linguagem é também o que escuta a voz do ser, o seu apelo a ser (re) escutado e dito. Enquanto casa do ser, deixa ser. Deixa o ente vir à presença na medida mesmo em que traz todos os sentidos que estão subjacentes a polissemia de representações mundanas, ou como quer Hans Kelsen, representações de sua ‘mundividência’, quer dizer, de certa imagem do mundo e da vida que se quer ver realizadas.

 

            Tal apelação que convoca a coisa à presença do ser diz respeito, no caso do discurso jurídico, àquela necessidade com que a lei busca fundar a origem de sua própria legitimidade a qual está subsumida qualquer possibilidade lingüística do agir humano.

 

            A lei é apenas, se é que pode ser apenas, uma escrita que (re) apresenta os sujeitos na medida em que é uma apresentação de certo espaço sócio-cultural (re) adequado. Enquanto escrita é obrigatório reconhecer que há muitos sentidos em torno, por exemplo, das palavras “lei”, “direito”, “norma” e “justiça”.[4] Compreendendo-a como escrita que (re) apresenta, na medida em que se pretende como um porta-voz de uma cultura há pelo menos dois sentidos que se destacam e que vale lembrar para além do primeiro sentido mais explícito que traz, qual seja, o de ordem, mas não menos significativos: primeiro, ela é uma (re) apresentação de significados ou idéias por meio de sinais, de palavras e, segundo, é igualmente um tipo de escritura.

 

            Ela é qualquer sistema mnemônico usado para registrar um agir, uma mensagem ou, mais importante, fixar uma memória de acontecimentos que solidificam ações e conceitos morais, bem assim compreendidos como referências repetitivas dos sujeitos, estabelecendo-lhes a possibilidade de retirar do imaginário aquele conjunto de símbolos que ajudam a consolidar certa compreensão da realidade, na medida mesmo em que essas compreensões são as (re) apresentações que se querem legítimas dos sujeitos no espaço social.[5]

 

            Portanto, o espaço social é determinado pela crise[6], pela contradição que não raro engessam a palavra-conceito ‘lei’ e confunde a linguagem jurídica, bem assim qualquer linguagem, pelas dificuldades que são sentidas pelos sujeitos mundanos (aqui se entende a presença no mundo como uma participação efetiva do ente “mundano”, entendido como aquele que está no mundo, quer dizer, em comunhão com uma história, com o seu contexto, na sua condição de ser aí). Todavia, a presença constante da palavra-conceito ‘crise’ é fundamento, condição de existência mesma da linguagem da lei, pois é nela que está (re) alçada a sua capacidade de mundividência.

 

            É possível, assim, reter a hipótese de que a lei, enquanto palavra de uma escrita se insere como prática coletiva das sociedades e como uma prática semântica e pessoal da construção do próprio ser aí e, ao mesmo tempo, enquanto práxis (de) limita a compreensão daquelas condições que permitem ao ser o reconhecimento de ser um ser capaz de estar distinto do ente, já que na escrita da lei estão desenhadas as origens e as raízes daquelas ações que identificam o sujeito para si e para outros sujeitos, no caso em tela, os sujeitos legais.

 

            Ela está, também, numa condição sinalagmática[7], pois traz uma condição de troca simbólica constante dos sujeitos com o imaginário. Isso é assim, em um, por que “o homem é pré-visor. Está orientado – como no mito de Prometeu – ao longínquo, ao não presente no espaço e no tempo: ao contrário da condição de irracionalidade, vive para o futuro e não para o presente” [8]. A lei é o mercado onde se realiza essa condição de sujeito enquanto pré-visor, na medida em que na sua função de (re) apresentação do agir do homem no seu presente está condicionado um agir já posto no futuro e no passado.

 

            Em dois, a lei é um esgotamento de transformação da realidade mundana dos sujeitos, e esse esgotamento diz respeito àqueles sentidos que negociam o modo de ser da pessoa e da sociedade, numa constante possibilidade de sentidos ativos que criam, alteram e (re) apresentam formas de existência subjetiva e objetiva, social e pessoal.

 

            Em três, porque a lei é uma (re) edição daquelas condições ontológicas, sociais e históricas, alteradas seguidamente por ela, linguagem jurídica, na medida em que mantém no homem uma produção de sentidos que não raro estão ao/de encontro às expectativas dele e cumprindo nessa frustração de expectativas um papel de moeda de troca na relação lei/sujeito.

            A lei é, enquanto linguagem, também uma metáfora de origens, já que a metáfora é a idéia de correspondência de uma expressão na qual a significação natural de uma palavra é substituída por outra em virtude da relação de semelhança subentendida em alguma coisa que não a coisa em si.

 

            Difícil mesmo é buscar o que se quer com a palavra origem, pois nela há múltiplas significações. Toda origem traz em si uma parte oculta, de qualquer coisa obscura, envolvida, velada, embutida e fixada em outra coisa ou mesmo enquanto aporia de um vínculo, um liame. É esse ocultamento na escrita que obrigou o discurso jurídico a confiar nos pressupostos do paradigma racionalista moderno a partir de uma metematização de significados semânticos que, obedecendo a uma deontologia de sintagmas geraram o mito de uma estrutura lingüística compreensível e até capaz de ser posta a partir do verbo ‘analisar’(suprema origem da validade, da vigência e da eficácia) pela dogmática positivista.

 

            A idéia da lei como origem é pressuposto relevante para a dogmática, vez que a afirmação de que a lei (re) vela esse pressuposto dá ao sujeito que (re) vela tal momento simbólico uma condição destacada enquanto sujeito que se presume produtor de sentidos, de significados fundamentais. Entretanto, tais sentidos são reflexos de uma ontologia jurídica que quer encontrar um sentido abrangente, e nesse sentido uniforme do ser na medida daquilo que torna possível as múltiplas existências polissêmicas que são reflexos de realidades.

 

            Entretanto, na mesma medida que carrega essa sombra a qual a linguagem somente alcança uma imagem de segunda instância, isto é, a idéia de origem, a lei enquanto escrita também tem o sentido de construir no ser uma idéia de arraigamento, pois ela, de acordo com o que sugere Paul Ricoeur, enquanto uma metáfora da realidade é poder de (re) descrever a realidade segundo uma pluralidade de modos de discurso que incluem um conjunto de sentidos nem sempre objetivantes e de fácil significação, mas que constantemente (re) ordenados trazem uma sensação de pertencimento a uma certa ordem artificial e imposta como referencial dos comportamentos sociais.

 

            Portanto, o que se quer aqui é o enfrentamento da lei como escrita, como linguagem aberta, que traz uma origem que a racionalidade moderna acreditou revelar sem perceber que tal processo que revela ao mesmo tempo vela e é em si uma metáfora na qual a ‘coisa’ do discurso jurídico, isto é, os feitos da lei, do direito, da norma e da justiça em muitos aspectos ainda não aconteceram, pois para os sujeitos o discurso da lei é mera pretensão generalizante desses sentidos não raro diacrônicos com o tempo dos sujeitos e com o próprio tempo sócio-cultural.

 

 

I – A lei como elucidação: limites e fronteiras da noção fundacional da compreensão da escrita jurídica.

 

“As coisas nos desbordam. As ordenamos. Se desagregam. As ordenamos novamente e nós nos desagregamos”. (Rilke)

 

 

            A lei não é qualquer palavra, mas sim é um conceito-signo, uma aporia em si e, nisto está a sua insuperável pretensão de credibilidade e utilidade. Gadamer já chamara a atenção para a distinção entre qualquer palavra e a palavra-conceito, pois nessa última, além da presença de uma tradição há todo um contexto de significação que não raro é um potencial de (re) apresentação de realidade. É o caso dos signos que formam o discurso jurídico.

 

            Enquanto conceito, a lei está no mundo enquanto signo de linguagem e se alguma coisa caracteriza a linguagem é justamente a sua relação sempre intrínseca, mas nem sempre (des) velada em relação àquilo que nos acostumamos a chamar por realidade perceptível.

 

            Parece curioso que se tenha certa dificuldade em se buscar uma compreensão em torno do conceito de realidade, já que qualquer tentativa de definição é um atentado típico da racionalidade instrumentalizante que em muitos sentidos é um vício de (per) versão presente nos grandes discursos aos quais se estrutura o paradigma de nossa modernidade. Paradigma esse que é estruturado em cima do conceito de verdade, o qual é intencionalmente associado ao conceito de razão e lei.

 

            A verdade não pode ser vista em si mesma, mas é sempre uma palavra-conceito de aproximação assintótica, absoluta, de uma coisa que por definição é inatingível nos limites mesmo da linguagem em si mesma, vez que ela é dependente de toda uma rede autopoiética e semiótica que no espaço do discurso e do texto é tornado, igualmente, objeto epistemológico da lei. As teorias vêm se alterando num fluxo continuo, porém as suas aproximações com o conceito de ‘verdade absoluta’ permanecem estáticas, temporárias e temerárias. A lei se estrutura, nesse sentido, sobre um terreno infértil e de difícil síntese, apesar da força que a sentença, exercício ideológico do intérprete quer realizar a partir do momento em que se subjaz em torno desse conceito.

 

            A realidade, porquanto um conceito está, assim, num discurso que produz uma indistinção entre ela e o real, entre uma imagem de real e sentido de realidade, entre a (re) apresentação e o significado (ainda que todo sentido já seja em si uma (re) apresentação), entre aquilo que está para o sujeito e aquilo que pode ser ao ser. Em sendo a lei uma presunção de existência de realidade não raro aceitamos uma identificação entre elas, o que de certa forma explica a força de verdade que a lei encontra e recebe nos e dos sujeitos. Ocorre que se a realidade é discurso, também a lei o é, portanto são ambas (re) apresentações de aporias que a partir da imagem aceitamos (re) velar o mundo no espaço de linguagem do mundo.[9]

 

            E os conceitos não acontecem ao acaso, ainda que as suas origens estejam não raro obscuras ao próprio ser que deles se utiliza como (re) apresentação. Colocados no espaço do mundo do ser, enquanto presentes em discurso estão em condição de compreensão, apesar de seu entendimento ser não raro diacrônico e muitas vezes contraditório ao próprio sentido que quer o sujeito de linguagem. Nefasto, contudo, é o esforço que o pensamento dogmático realiza em reduzir a compreensão para reafirmar a ‘análise’ dos sujeitos com os conceitos, tentativa em grande parte marcada pelo (in) sucesso em fundar uma fronteira sólida entre o sujeito e o objeto, reduzindo o primeiro a condição de coadjuvante de si mesmo e o segundo a condição de um algo que não está desde sempre no olhar do próprio sujeito.

            Todavia, o termo discurso, que hoje é freqüentemente utilizado como um equivalente ao de texto tem na linguagem corrente uma conotação de oralidade que o opõe ao texto como escrito. Quer dizer, a lei, enquanto palavra-conceito transita tanto no espaço do discurso, quanto no espaço do texto.

 

            No caso do primeiro, debilitado pelo desinteresse do próprio Estado que o via apenas a partir da condição do instituto da oralidade, presente ao longo do rito processual, especialmente no espaço da audiência preliminar, o sentido que a lei carrega é sempre delimitado pela subjetividade, sempre de sentido aberto, pois que tem um tempo de enunciação marcado pela perda de memória da própria enunciação e, comumentemente transformado pelas condições sócio-culturais ao qual se vê inserido, o que muito justifica a (in) compreensão sobre o que vem a ser a lei, confundida que é com moral, ética, justiça, verdade, certeza, etc.

 

            Tal confusão é uma condição de existência da eficácia da lei enquanto (re) apresentação de sentidos objetificantes para os sujeitos, numa objetividade descolada de significados que em se mantendo ocultos, torna o discurso jurídico um exercício empobrecido de exegese da norma. Contudo, chama a atenção que a oralidade, limitada nessa sua capacidade epistemológica da memória foi abandonada pelo próprio proprietário do discurso oficializante da lei, pois mesmo em meio as suas diminuídas condições de significados, a aproximação entre os sujeitos envolvidos na atuação do espaço dos tribunais passou a significar uma exigência de compreensão do fato humano ao qual o Estado-juiz não podia, ou não queria se responsabilizar quanto ao capital de compreensão que envolvia, na medida em que esse capital simbólico é exercício de poder.

 

            No caso do segundo, a lei como texto é desde sempre uma condição de compreensão aberto-fechada, vez que cada sujeito tem com o texto uma relação intercontextual subjetiva a partir da posição social ao qual o sujeito parte para ‘ver/ler’ o texto de lei. E é um sentido aberto-fechado na medida em que no texto há condições possíveis para um reconhecimento hermenêutico, não de certezas analíticas, mas de (in) definições compreensíveis ao ser aí que se busca no texto, não raro com insucesso se o seu encontro for centrado na ‘verdade real’, na certeza e na definitividade dos sentidos.

 

            O campo social não é somente o resultado de estratificações econômicas, mas igualmente culturais, aos quais os sujeitos diferem na própria capacidade de associarem ao conceito um sentido único. A relação de sentidos que se estabelece entre o campo social ao qual me encontro e a palavra-conceito que busco encontrar no texto, ainda mais quando é o caso da linguagem jurídica, varia até mesmo no interior do mesmo campo, o que torna tanto o texto, quanto o discurso um exercício de uniformidade impossível mesmo a qualquer pretensão de exegese dogmática. A distinção entre eles, nesse caso, está que a uniformidade do discurso se situa na perda, vez que a enunciação é uma morte anunciada de sentidos, ainda mais em uma sociedade marcada pela dromologia de informações[10] em que novos sentidos se colocam quanto aos que caem em perdimento a partir do instante do encontro do sujeito/texto/discurso/mundividência.

 

            A demarcação da diferença e da fronteira entre discurso e texto, e entre a palavra no discurso e no texto segundo a pretensão hermenêutica, remete-nos à diferença entre o que está dito no texto e no discurso com aquilo que o sujeito ‘ouviu’ e ‘leu’, bem como naquilo que autor do texto e o emissor do discurso, em relação ao ouvinte-leitor apreendem dos sentidos colocados nessas formas de linguagem mundanas.

 

            Como afirmado, no discurso há um perdimento de sentidos, pois a sua trajetória é realizada por um espaço de imaginário que, numa sociedade de extremo predomínio da imagem como é a nossa, se assalta aos sentidos tornando-os instante mesmo de sua emergência, em perdimentos tão instantâneos que a compreensão não raro não produz nenhum consenso ou significado significante.

 

            No texto, ao contrário, há um transbordamento de uma consciência discursiva ou uma escuta da voz, isto é, do pensamento, enfim, de memória. Mas o sentido e a voz do texto não podem estar apenas no que está escrito nos limites da página. Ele é um processo, uma provocação de um sentido mais geral e abrangente do que o que está escrito, o que impede com que o seu sentido seja um sentido facilmente aprisionado, o que nos remete a um novo perdimento. A sentença enquanto texto de significativa potencionalidade da linguagem da lei é um exemplo cabal dessa esquizofrênica pretensão dogmática em afirmar o aprisionamento dos sentidos, ainda que sobre tal condição racionalizante os sujeitos se tenham reunido para construir àquelas condições de hominização.

 

            As regras lingüísticas, semióticas e pragmáticas que trabalham no texto, como condições de sua legibilidade não podem ser consideradas quando se escreve, ainda que quem o faça seja um lingüista, mesmo o da lei. A paixão maior ou menor, que está inscrita na escrita transporta aos saberes adquiridos ao longo do tempo de vida do escritor-jurista, toda uma cultura da língua e da fala em que ele escreve e que nela se inscrevem na medida em que escapam tanto à consciência de quem escreve quanto à pretensão de consciência daquele que é o leitor do texto.

 

            Essa condição de paradoxo entre o texto e o autor do texto se agrava no espaço da linguagem da lei, não somente pelo que se disse, mas por que nela se busca ocultar o autor, vez que a sua legitimidade está na simbologia de que tal linguagem é em tal grau impessoal que se aproxima de uma coisificação lingüística. Desde já se pode afirmar que tal ocultamento é uma blindagem que se esvai apesar das dificuldades dos sujeitos com a linguagem jurídica.

 

            Nem mesmo a lei no texto normativizado, através de sua formatação tradicional, isto é, dos códigos de lei, bem assim em suas instituições juridicizantes, os tribunais, como também na tradição multisecular da redução a termo não tem como escapar à perda da uniformidade e da legitimidade da consciência.

 

            O tema do texto jurídico é, nesse sentido, um algo indefinido, tanto em seu significado semântico, bem como em seu significado ontológico, quanto também em seus efeitos, estando a sua possibilidade de compreensão restrita as diferenças daquele que com o seu olhar busca retratar o que mesmo na linguagem escrita a palavra teima em (re) velar eternamente e, dessa forma, é restrita a partir de uma (re) afirmação da dogmática com o uso indiscriminado de uma deontologia que busca reduzir o texto de lei a figura de uma gramatologia impessoal, absoluta e verdadeira.

 

            A lei é linguagem de sentidos, a qual, apressadamente, essa tradição dogmática buscou dar um sentido lógico através da pretensão exegética de uma hermenêutica que se quis ver reduzida a figura de um método de análise, porém tal pretensão se viu naufragar com toda uma produção que renovou essa matriz de pensamento. Texto e realidade possuem diferenças que nenhuma ciência de interpretação pode pretender superar, e mesmo que se confundam ainda que na lei, essa diferença é fundamental para a própria existência-experiência da compreensão do direito e da linguagem que ele é.

 

            A escrita jurídica bem como o discurso jurídico está assentada em uma mitificação que serve a uma ideologização do espaço social. Mas enquanto representante do imaginário é impensável aceitar qualquer posição que a (re) apresente como uma forma de elucidação de sentidos. O que a lei revela é aquilo que o sujeito que com ela interage já desde sempre pretendeu (re) velar. Mesmo as leis estão estruturadas em uma linguagem que manifestamente se observa enquanto um conjunto de binômios aberto/fechado e determinado-indeterminado, e mesmo quando confundidas com a realidade enquanto bens simbólicos cumprem as funções cognitivas para as quais foram (re) conhecidas no imaginário e no espaço de linguagem do texto e do discurso, inclusive ao carregar todas as condições que esvaziam o consenso da relação do ser aí no mundo por pretender, paradoxo, o consenso positivo.

 

            Essa conseqüente ideologização da lei não tem o condão de afastar o fato de que a palavra tem espaços múltiplos e diacrônicos que certa pretensão científica buscou encobrir. Esses espaços em interminável construção são preenchidos por sintagmas que não escondem o fato de que representam aquelas imagens na realidade marcadas por ‘disfunções mentais’ e por ‘desvios comportamentais’ nas fáceis análises epistemológicas e interdisciplinares que aparecem como essencialmente ligadas aos processos de produção das realidades sócio-culturais. No discurso jurídico é patente o escopo de se atemporalizar essas condições de desvios como figuras simbólicas conhecidas como tipos jurisdicizados do mundo do ser para o mundo do dever-ser e, assim, tornarem-se controláveis por um discurso de poder sobre o ser aí mundano.

 

            Ameaça concreta, essas ‘disfunções mentais’ e esses ‘desvios comportamentais’ estão além da condição de patologias reduzíveis ao homem, mas são na linguagem da lei àquelas condições em que a linguagem se subverte e, no caso em tela, os territórios indesejáveis de onde o ser aí (re) faz o próprio ser aí no mundo e que nessa possibilidade de subversão dos comportamentos dá origem a uma ‘dobra da lei’, isto é, a uma lacuna, campo de absoluta (in) determinação ao mesmo tempo em que força do direito.

 

            A lei se apresenta dessa forma como uma unidade produtiva onde todos os grupos sociais interagem entre si e se confirmam na medida mesmo que confirmam os sujeitos que identicamente interagem uns com os outros.

 

            E, na medida em que ela busca ser esse espaço de comunicação não consegue se construir como elucidação, pois ela é consumida em um Estado cuja característica está situada na legitimidade da estratificação social e de uma apropriação do excedente produtivo pelo bloco histórico[11], inclusive daqueles bens simbólicos que animam a condição de existência da lei.

 

            Paradoxalmente, porém, tal organização produtiva tem sentido ainda mais complexo e ostensivo e tende a se justificar como linguagem capaz de integrar de uma forma mais regrada e rígida os acontecimentos sociais. Assim não há somente uma lei individual que não seja antes lei social e o social se define por esse espaço de trocas simbólicas no imaginário a partir de um primeiro espaço individual cognoscitivo.

 

            Nas sociedades modernas a organização da lei atinge uma formação de conteúdos que através de uma roupagem científica organiza e planeja, de forma técnica e sistemática não somente as relações produtivas desses bens simbólicos que são fundamentos das relações intersubjetivas em si mesmas, mas também (re) organiza e regula todos aqueles outros conceitos fundantes, tais como família, sistema pedagógico, mercado, sistema ético e político, subjetividade cognoscitiva, etc. Mas atenção: na mesma medida em que é fundamento para esses conceitos, os perde, já que a lei é um paradoxo de perdimento de sentidos daqueles mesmos sentidos que busca determinar.

 

            Não seria o caso de se afirmar aqui que a lei é uma ficção, mas nela é perceptível um espaço ficcional, pois a olhando sob o prisma do discurso e do texto confrontados no espaço dos foros, não raro a sua emergência é uma (re) velação (in) compreensível em que o próprio sujeito emissor do bem simbólico, isto é, da sentença, não tem nem mesmo para si o desdobramento do que venha a ser o próprio significado da lei quando contraposto ao fato dos sujeitos (mesmo porque os sujeitos estão perdidos para ele). Ela envolve o fato, o agir humano, mas ao coisificá-lo o fato é reificado e para ele mesmo se torna uma mera presunção metodológica.

 

 

II – O fim da certeza é o início da incerteza?

 

“Creio no improvável, porque, se acreditarmos nas probabilidades, vamos rumo ao caos demográfico, ao caos econômico, ao caos ecológico, ao caos nuclear… Mas o improvável pode acontecer”.(Edgar Morin)

 

 

            No encontro da razão ocidental, determinada pela objetificação do pensamento cartesiano, elaborada enquanto relação de linearidade e progressividade de causas e efeitos marcados em uma realidade estática, com uma realidade agora dinâmica e complexa de uma linguagem simbólica que no imaginário trouxe um (des) velamento das técnicas comunicacionais, o resultado é ameaça de uma subversão dos grandes sistemas explicativos, entre eles o direito, ainda mais no que diz respeito àquela relação de causa e efeito.

 

            É essa crise o epicentro do universo de linguagem que em sua tradição dogmática sem medir ainda as conseqüências coloca o discurso jurídico na defensiva. Frente a esta realidade sublunar animada pelas suas próprias leis de auto-organização e em seu contínuo movimento de transformação/subversão em direção a emergência do ‘novo’, não só o onisciente demônio de Laplace.[12] representa um ideal inatingível como também o controle que se poderia obter a partir de um conhecimento do absoluto, entendido no discurso jurídico como uma ‘teoria pura do direito’, ou ainda pretensiosamente, como o império da análise da relação sujeito/fato.

 

            (Re) alinhar a capacidade semântica da lei é (a) dotar uma alteração significativa no sistema normativo, e transformar esta a partir desta relativização é atingir potencialmente tudo aquilo que entendemos ser hodiernamente a própria linguagem do direito como um todo. Conseqüência disto é a mitificação que a palavra jurídica sofreu desde a emergência da modernidade e o distanciamento desse sistema do sujeito e do fato, visto que estes somente alcançam status de realidade a partir do sentido (im) posto pela ordem jurídico-discursiva.

 

            O sistema jurídico observado como um subsistema presente no espaço social não é comprimível em sua natureza, e isto é assim por que a lei, enquanto espaço incomprimível, mesmo não pretendendo se oferecer como um campo incomensurável de sentidos está determinada em grande medida pela perda tanto do poder de (re) apresentar, quanto do poder de (pré) visão. E este odor de indefinição no sistema jurídico está na raiz de sua condição de perdimento.

 

            Essa é uma dimensão irredutível e para a qual a linguagem jurídica deve se preparar para enfrentar e alcançar o momento da manifestação dos fenômenos (que nem sempre tem ares de fatos de relevância social), de sentidos possíveis, de respostas plausíveis e necessariamente adequadas, uma vez esteja o problema na capacidade presente da cognição da linguagem da lei e os seus (e) feitos naquele espaço de indeterminação do discurso e do texto de lei.

 

            O sistema normativo[13], e a figura da norma jurídica são institutos insuflados pela presença das regras de linguagem. No caso do segundo isso é assim na essência de seus elementos de validade, existência e eficácia, as quais sofrem nessa era de incertezas.

 

            A validade, enquanto elemento ontológico da norma, como lembra Norberto Bobbio, “(…) ao juicio de existência o de hecho. Esto es, se trata de comprobar si una regla jurídica existe o no, o mejor si aquella determinada regla, así como es, es una regla jurídica”,[14] é um acontecer obrigacional na comunicação que trava com o sujeito, legitimando-se enquanto signo de e na comunicação que estabelece entre o sistema jurídico e o indivíduo, um espaço de existência e de imposição.

 

            A eficácia é momento de exercício de uma regra simbólica sobre o fato; neste sentido ela é representação fenomelógica de toda ação que é jurisdicizada a partir de sua natureza comunicacional. A eficácia traz, na medida em que recebe, força ao que se entende como justo, na perspectiva, repita-se, de entender este justo como uma mínima regra de expectativas presentes em um determinado espaço de discurso de lei.

 

            A existência está na condição sinalagmática do sujeito com o seu momento, uma vez que é um exercício de troca dos sentidos entre sujeitos/lei. O grau de (des) ajuste entre essa condição determina o ostracismo do sentido estatal da linguagem da lei com o encontro de novos sentidos do agir, compreendido enquanto crise de soberania do Estado, uma vez que nesse espaço novo de ação os sujeitos buscam a sua própria idéia de sistema jurídico.

 

            Desta forma, a manifestação de uma linguagem da lei é teoria que somente pode acontecer no sujeito. A palavra-conceito ‘lei’ é o principal instrumento condicionante deste, transformado em um sujeito social ao longo de todo esse processo de jurisdicização.

            Como toda teoria representa uma redução de realidade, acontece uma perda significativa do poder heurístico da lei quando antevista por qualquer discurso significante. O exercício da teorização não diz mais respeito a uma busca por um conhecimento último, essencial, a partir do qual o sujeito tem todas as condições dispostas à sua frente para impor aquilo que é o verbo, o seu verbo, à representação certa da realidade, ao contrário, se (re) conhece um contínuo diálogo sujeito/lei, realidade/lei a partir de uma comunicação paradoxal que os mantenham vinculados numa elaboração constante de um processo de co-evolução, aonde se pode anotar uma transformação mútua, um atuar em ambos a partir de uma (re) construção daquilo que objeto e sujeito estabelecem como limites de sua linguagem, ao mesmo tempo em que se admite a legitimidade para que esta igualmente os (trans) forme num espaço de comunicação.

 

            Somos uma simultaneidade lingüística incontrolável de produtores e de produtos do processo semântico de (re) construção da realidade que, não raro, nos escapa, já que os impérios de certeza e de exatidão (trans) formador da palavra-conceito seja essa a lei ou não, não se presentificaram. O ser aí não é um somente ser aí, mas nele mesmo há uma multiplicidade complexa e contraditória que inviabiliza que a linguagem possa ser ‘a linguagem’, mas sim linguagens possíveis nesse frenético mercado do imaginário. A lei, enquanto condição de fala de determinado grupo de sujeitos buscou com a modernidade estabelecer uma discursividade uniforme e generalizante, busca essa que não aconteceu.

 

            Para todo aquele logos crítico que já traz em si uma ruptura com as verdades tradicionais do pensamento racionalista da modernidade, determinado pela oposição àquela linearidade da medição deontológica e que a posteriori procurou explicar as dinâmicas e realidades sociais a partir desse pressuposto de sentido verdadeiro e único, tal pensamento crítico abandonou toda a esperança ingênua de que pela medição dos conjuntos de regras do discurso, ou do texto jurídico se conseguiria uma segura determinação dos desdobramentos no futuro dos atos praticados no presente. O futuro ainda se encontra aberto para o presente e na lei não se pode (re) encontrar todo e qualquer sujeito já desde sempre posto na própria ordem legal.

 

            Essa tensão é um problema de percepção, e essa não pode ser entendida como um fluxo linear pré-determinado, isto é: como uma realidade esperada e certa. Ao contrário, ela é observada como o paradoxo de um arranjo (acoplamento) estrutural entre uma condição relacional dos sujeitos e o meio em que estes se realizam enquanto ser aí no mundo. E tal acoplamento somente pode se justificar enquanto enunciação de uma determinada ‘fala’ sobre aquela confusão entre mundo e (re) apresentação deste a partir da lei.

 

            O acoplamento estrutural é esse encontro entre sistemas que formam o espaço de linguagem aonde o ser aí se confunde com sua mundividência, e aonde os conceitos têm a pretensão de (re) apresentar alguma percepção sobre a realidade. No caso da lei, é o resultado de uma constante troca simbólica entre conceitos chave do sistema jurídico com conceitos chave de outros sistemas, sem perder a condição de (re) apresentar o espaço do ambiente ao próprio ser aí. Nessa capacidade cognitiva de reconhecer essa condição da linguagem em acoplar está a (im) possibilidade do ser reconhecer-se distinto do ente, ainda que com ele se confunda num círculo constante de percepção.

 

            Os sujeitos atuam e agem primeiro num impulso determinado pelo domínio das emoções, bem como por toda uma extensa esfera existencial em grande medida inconsciente, ato contínuo são reduzidos à regência da linguagem da lei enquanto alguma lógica observável e que pode vir a constituir alguma regra, moral ou jurídica, enfim, um fato social.

 

            Fruto desta capacidade em estabelecer uma linguagem reflexiva praticada pelo sujeito sobre os próprios atos, também a necessidade de justificação e/ou (re) apresentação realizada tradicionalmente pelo discurso e pelo texto encontra em sua idealização jurídica um refinamento apurado e extremamente racionalizador que ajusta a redução das emoções a uma condicionante de linguagem.

 

            A lei, neste sentido, enquanto um dos discursos do conhecimento não detém como se pretendia nenhuma condição a priori para retratar aqueles fatos humanos que a norma busca jurisdicizar, isto é, significá-la e assim estabelecer novo sentido fenomenológico, quer dizer, transformador da linguagem do fato humano em fato jurídico.

 

            Todavia, nenhum dos elementos constituintes desta (re) apresentação da realidade resulta em uma essencialidade E essa politextualidadede de sentidos é fundamental para a linguagem. Isto por que é a partir desta que o ser cognoscente e o sistema cognitivo concebem as suas inserções nesta dinâmica de fazer/conhecer e dizer/ (re) apresentar as formas neste processo de atuação/produção da linguagem da lei.

 

            Isto é verdadeiro não somente para o sujeito, onde diferentes concepções e representações de símbolos e sentidos estão na base de diferentes formas de organização social e de diferentes dialéticas homem/natureza, como também para o comportamento dos elementos dos sistemas sociais, entre eles a lei.

 

            A experiência cognitiva como uma experiência lingüística é individual, em certa medida é cega ao ato cognitivo do discurso do outro, ainda que obrigado a esse, e que somente acontece enquanto coletivo naqueles discursos justificantes do papel do grupo social, no caso, a linguagem da lei Porém, mesmo aqui, não há certezas, mas (im) possibilidades. E se possibilidades incertas e indefinidas alcançam algum sentido esse é um constante perdimento, condição inclusive de sua existência nesse cenário de desarmamento de conceitos.

 

 

III – Considerações finais: é possível concluir?

 

O que é direito, sempre e somente pode ser decidido pelo próprio sistema jurídico”. (Niklas Luhmann)

 

 

            Se todo conceito é um fato e um indicador, a lei tem sobre si essa condicional, pois se espera dela um norte incontroverso sobre a forma pela qual os sujeitos no imaginário social buscam dar um sentido aos sentidos que já estão desde sempre dados, vez que as origens da linguagem estão perdidas definitivamente, mas a pretensão aos sentidos não.

 

            Ocorre, então, que essa conceitualização deve ser compreendida na medida da linguagem, pois é fundada enquanto um sistema de signos que referem a tantos outros sistemas de objetos significantes ao qual a significação daí decorrente é uma remissão a outros tantos sistemas de objetos. Quer dizer, o signo na e da lei não esgota em seu território simbólico tudo aquilo que pretende afirmar. Em verdade, a lei, a norma jurídica, bem assim os conceitos em geral representam um referencialismo semântico.[15]

 

            Destarte, o sistema jurídico, tanto enquanto texto ou discurso é um espaço de encontro entre uma semântica e uma ontologia que a partir daí busca um (re) apresentar do próprio sentido aos que buscam dar-lhe um sentido.

 

            E nesse contexto a linguagem jurídica e a realidade do mundo não se reduzem uma à outra, mas quando apresentadas a partir do referencialismo semântico podem formar àquela condição de mundividência que idealiza uma palavra, um discurso de lei como referência de alguma verdade, num processo de ascese de uma entidade que se quer esclarecida e que se autodenomina como ‘operador do direito’.

 

            Está na norma um espaço em aberto, não conquistado, e que mesmo na fala ou no texto escapa a toda e qualquer tentativa de significação, pois enquanto linguagem ela é (re) apresentação de uma fenomenologia que não se reduz a uma sincronia de sentidos, mas ao contrário, é polissêmica na medida em que é linguagem que quer ser.

            Dizer fenomenologia é firmar a possibilidade desse discurso inconcluso ser uma (re) apresentação de significados, num movimento espiral em que significados são perdidos ou colhidos a partir dos próprios efeitos da temporalidade em que essa fenomenologia da lei se reconhece como fatos de realidade. Mas buscar a redução é preciso, no caso do texto e da fala da lei, mas sem esquecer que as reduções não detêm a natureza de serem finalizadas, elas são sempre reduções.

 

            Por um lado, a (re) apresentação da lei é um ressurgir de uma imagem de realidade que se quer e que se pode construir, mas ainda é assim mesmo, uma imagem.      Por outro lado, é uma imagem no e do sujeito, num processo que equivale a desvelar a essência dos próprios sujeitos, na medida em que toda a linguagem é uma ação no imaginário que lhes permite uma condição de existência, de evasão de sentidos ao espaço da própria linguagem, enfim, de um eterno perdimento/(re) encontro de si.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BOBBIO, Norberto. Teoria General del Derecho. Madri, Debate, 1996.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL, 1989. 5ª edição.

DANTO, A. Analytical theory of knowledge. Chicago: CUP, 1968.

GEHLEN, Arnold. El hombre su naturaleza y su lugar em el mundo. Salamanca: Sígueme, 1980.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. V1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução: Dulce Mattos. Lisboa: Editora Piaget, 2003. 4ª edição.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP, 1996.

RUIZ, Bartolomé Ruiz. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Editora Unsinos, 2003.

VIRILIO, Paul. Velocidade da Libertação. Tradução: Edmundo Cordeiro. Lisboa: Relógio D’Água, 2000.

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* Graduado em História, Filosofia e Sociologia pela UFRGS, e Direito pela PUCRS, mestre em Ciência Política pela UFRGS e em Direito Público pela UNISINOS. É professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UNIFRA/SM, ESADE, Verbo Jurídico, IDC e CETRA. Advogado



[1] O imaginário não é entendido aqui como a criação de alguma representação ontológica. O imaginário se constitui enquanto representação de si mesmo. Não se pode entendê-lo como junção de sujeitos que reconhecem alguma unidade conceitual, pois se assim fosse, todo o seu sentido estaria dado por quem tem condições de fundá-lo e justificá-lo. Estão no imaginário as condições para a sua auto-reprodução, pois que ele detém em si mesmo as condições para a sua evolução. Neste sentido mantém com o tempo uma relação independente daquela que este mantém com os sujeitos, ainda que como o tempo ele somente aconteça na reflexão destes.

[2] A modernidade não é entendida aqui como aquele corte meramente didático do discurso histórico que a transformou em uma fase da evolução humana. Ela é uma forma de representação da realidade, estabelecida sob certas estratégias discursivas que em muito ainda não foram superadas nem mesmo nas mais mundanas condições de vida. “A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades… O pensamento moderno, desde Marx e Nietzsche, cresceu e se desenvolveu de vários modos; não obstante, nosso pensamento acerca da modernidade parece ter estagnado e regredido”, In: Berman, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.23.

[3] A pretensão do direito vista à luz da dogmática sempre foi buscar contextualizar o universo social naquilo que se entende como mundo da experiência natural, cotidiana do homem, sem possibilidades neste sentido de prever ou anteceder ao fato, a ação. O direito sempre buscou estabelecer um fluxo temporal determinado através do controle do presente, sempre consolidado num olhar reflexivo sobre o passado dos fatos a encontrar aqueles elementos que projetam a observação em direção ao futuro. Tal caminho temporal culmina com a ‘sentença’, ato de natureza decisória que traz sempre um símbolo de pretensa certeza naquilo que o direito entendeu como espaço do indefinido social, isto é, o movimento do sujeito. Mas mesmo esta função ordenadora está colocada frente a situações que hodiernamente o sistema jurídico não consegue explicar.

[4] Estas estratégias discursivas buscam estabelecer para o sistema jurídico uma pretensão a uma linguagem fechada, e fechada por que se acredita ser exata em sua forma e significação. Esta pretensão se constitui numa das mais resistentes mitificações já construídas pelo racionalismo material, uma vez que se quer dotar o direito de uma essencialidade capaz de atravessar o tempo, bem como a qualquer incidência da ideologia, o que por si só já é uma falácia naturalista.

[5] O espaço social tem uma textura maleável e não raro, é tomado por várias estruturas que tem características próprias e que são conhecidas pela expressão de ‘campos’. Esses campos organizam as suas próprias manifestações de linguagem e detém a produção simbólica de seus próprios discursos. Assim, “na realidade, o espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e às suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos direto ao campo de produção econômica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas”. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989, p.153

[6]A crise do ordenamento jurídico não é em si, uma novidade histórica. Ao longo do devir histórico se pode anotar a presença de críticas a capacidade de resolução do ordenamento frente aos problemas que lhe são submetidos. Todavia, o que se tem agora, é uma crise que se intensifica na linguagem jurídica, pois se percebe o esgotamento do sentido em muitos dos seus conceitos. E essa crise conceitual, discursiva, obriga aos ‘operadores do direito’ a se justificarem numa leitura rígida, disciplinada e exegética da lei, sacrificando, muitas vezes, qualquer possibilidade de comunicação com o fato ou mesmo com os sujeitos do fato. Tal situação leva-nos a anotar a estandardização das decisões jurídicas, que na busca de uma solução aparentemente legal, tratam todo e qualquer fato a partir de uma generalização objetificante, a tal ponto que se consolida a figura de um sujeito ideal, desnudado de sua individualidade e particularidades que marcam não somente a personalidade, como o próprio fato. Essa generalização do sujeito e do fato em um objeto ideal, onde se acredita possível enquadrar todo e qualquer sujeito e fato, é, igualmente, uma violência a princípios da Constituição, o que acaba por criar uma circularidade de absurdos que ampliam a crise, pois se o discurso jurídico dominante busca generalizar a lei para uma melhor aplicação, ao fazer isso, ofende os próprios princípios em que a lei se consolida, o que leva a uma crise na capacidade do discurso jurídico se apresentar como legítimo. Está, assim, criada uma oposição entre lei e legitimidade. E essa oposição é percebida pelo espaço social, o que ampliam os espaços de resistência a essa forma de autoridade estatal, e que tem como conseqüência a fragmentação da consolidação da própria figura do Estado Democrático de Direito.

[7] O contrato é a forma mais (re) desenhada dessa condição sinalagmática, vez que está no epicentro desse mercado simbólico em que os sujeitos estruturam a sua condição de sujeitos sociais. Mas, ainda que mitificado enquanto símbolo importante da ordem social e da linguagem da lei, a existência do contrato é uma imagem, uma sombra na qual a idéia de sociedade se (des) encontra.

[8] GEHLEN, Arnold. El hombre su naturaleza y su lugar em el mundo. Salamanca: Sígueme, 1980, p.36.

[9] “Não existe diferença entre representação e realidade, e a imagem tem a mesma entidade que o mundo. O caráter mítico-mágico dota de eficácia os signos instituídos, exercendo uma coação daimonica sobre a consciência, suprimindo sua autonomia pela heteronomia do signo. A consciência mítico-mágica sente-se dirigida pela indistinção entre imagem e o objeto; ambas são indissociáveis e atuam em uníssono. RUIZ, Bartolomé Ruiz. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Editora Unsinos, 2003, p.114.

[10] A dromologia, conforme lembra Paul Virilio, é uma condição da linguagem nesse século, na mesma medida em que em sendo um signo marcado pela velocidade que se desloca, se perde, mas ao se desencontrar com o sentido, é sentido por uma pluralidade de outros sentidos que dão corpo ao significado da comunicação atual.

[11] Como quer Antonio Gramsci, o bloco histórico é aquele espaço no espaço social onde estão as condições de maior capital simbólico, e ao qual o exercício do poder político não pode prescindir de dominar.

[12] Com isto o conhecimento é resgatado do espaço a-físico da torre de marfim objetivista (espaço de um conhecimento universal, sem tempo nem espaço, habitado pelo onisciente demônio de Laplace), para voltar a ser emergência lingüística da matéria viva, profundamente ancorada em sua organização e dinâmica. O conhecimento deixa de estar dissociado, exterior à physis, para voltar a ser a própria physis que se observa e apreende a si mesma.

[13] O sistema normativo permite observar não somente o comportamento conforme o direito, mas também aquele que é não conforme, pois ambos são partes integrantes do todo, isto é, do sistema social e jurídico, da linguagem da lei. Nesse sentido, a diferença entre um comportamento conforme e aquele outro, não conforme, não assinala o limite da linguagem frente ao ambiente, pois tal binômio é entendido como uma diferenciação interna do próprio sistema lingüístico. A disfunção entre conforme e não conforme, e a preferência clara para a conformidade é o resultado de um ponto de vista interno do processo seletivo realizado pelo sistema, pois os sujeitos já não se orientam no comportamento cotidiano frente a alternativa daquele binômio, mas sim dentro da própria alternativa entre conduta conforme e não conforme, e esta última aparece, assim, como uma possibilidade entre outras na adaptação a estrutura dos sistemas social e jurídico.

[14] BOBBIO, Norberto. Teoria General del Derecho. Madri, Debate, 1996, p. 34.

[15] “Sentences which are about the relations between the world and sentences, I shall speak of the world find verbal expressions in semantical sentences. In: DANTO, A. Analytical theory of knowledge, CUP, 1968, p.X.

Como citar e referenciar este artigo:
PACHECO, Antonio Marcelo. Para Uma Aproximação da Lei Enquanto Gramática: Norma e a Linguagem Jurídica Como Sentidos (Re) Apresentados.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/hermeneutica/para-uma-aproximacao-da-lei-enquanto-gramatica-norma-e-a-linguagem-juridica-como-sentidos-re-apresentados/ Acesso em: 03 dez. 2024
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