Filosofia do Direito

Política, vita mea est a mors tua

Nunca a política no Brasil foi tão debatida como atualmente, talvez seja o honroso contraponto do jejum imposto a nossa cidadania, particularmente nos chamados “anos de chumbo” referente ao período que vai de 1964 até 1985.

 

O calor do debate ainda é avivado talvez porque a política é uma questão concreta que muito nos faz refletir sobre o confronto entre autonomia[1] e heteronomia[2]. Por nos assanhar a desejar à independência e o exercício da soberania individual aliado a necessidade física, social e psicológica do reconhecimento do outro e do coletivo.

 

A dimensão da intersubjetividade e a dimensão social são distintas e pertencem à significação da política. Mesmo na mais corriqueira situação cotidiana jaz a imensa questão teórica e real que nos afeta na órbita prática, a delimitação entre público e privado.

 

De qualquer maneira, a política nasce com o cidadão e a cidadania e, é duplamente humana pelo intrinsecamente social da vida, por ser o homem um animal social.

 

E tal sociabilidade esquadrinha o jogo da intersubjetividade; posto que o homem como animal social que é, dotado de individualidade.

As formas de ação são produzidas pelo homem para interagir com a natureza e com o outro ser.[3]Portanto, a política é pois, grande e bela invenção humana, e forçosamente concluímos que não há humanidade sem política.

 

Porém em sua relação intrínseca revela a questão do poder, que designa a capacidade ou possibilidade de agir, produzir efeitos, pode referir-se aos indivíduos e ao coletivo bem como aos objetos ou fenômenos naturais (vide as expressões poder calorífico, poder de absorção, poder eletromagnético, e, etc.).

 

O homem é não só o sujeito mas também o objeto do poder social. Sendo tal poder a capacidade, por exemplo, que tem um pai para orientar seus filos, bem como a capacidade do governo de dar ordens ou orientar seus cidadãos.

 

Por outro lado, não é poder social a capacidade de controle do homem sobre a natureza e nem a utilização que faz dos recursos naturais. Porém, a tecnologia e a ciência são fatores decisivos para o exercício da política e do poder.

 

Obviamente existem relações significativas entre o poder sobre o homem e o poder sobre a natureza e as coisas inanimadas. Por vezes, o primeiro poder é condição do segundo e, vice-versa.

 

Inicialmente, o poder sobre o homem é sempre distinto do poder sobre as coisas, E, este último, é relevante no estudo sobre o poder social, na medida em que pode se converter num recurso para exercer o poder sobre o homem.

 

Não mais aceitável as definições de poder que remonta a Thomas Hobbes e ignoram o caráter relacional e identificam o poder social apenas com a posse de instrumentos aptos à consecução dos fins almejados.

 

A política alude à significação humana onde se encontra a realidade intersubjetiva, reside no poder o que nos remete a uma grande complexidade e imponderabilidade.

 

A palavra “política” tem origem grega e mais especificamente polis que significa cidade. Não na acepção apenas física ou geográfica, mas incluindo o espaço público, espaço de encontro com a vida dos indivíduos.

 

O núcleo de significação da política principalmente na Antiguidade Clássica é onde se encontra o atestado de nascimento ou identidade política, traduzindo a arte política.

 

Apesar de Atenas na Grécia ser reconhecidamente o berço da democracia, convém lembrarmos que as mulheres, estrangeiros e escravos estavam literalmente excluídos da cidadania. E, já existia a instituição lapidar que futuramente se manifestaria no individualismo moderno.

 

É oriundo da Grécia de Homero[4] (século XII ao VIII a. C.) o ideal educacional mais sublime que corresponde ao moldar o homem para que tivesse o mais alto senso de honra, para viver de forma gloriosa e praticasse belas ações. A educação já nesse tempo se preocupava em preparar para a cidadania.

 

Mas tais valorosas virtudes humanas eram apanágio dos nobres e guerreiros. Com o tempo a evolução amoldou novos conceitos e deu feição à política como arte de quem possui alta dignidade, para cuidar da cidade, o que significa dar atenção à humanidade.

 

Com Platão, a política ganhou status definitivo de saber articulado e fundamental e sua principal obra é “A República”, onde define a política como arte de definir e praticar a administração da Justiça e ultrapassa o âmbito da mera opinião.

 

A política pertence ao saber universal, à ordem da perenidade do ser, e é próprio da filosofia. Outro pensador igualmente relevante ao tema foi Aristóteles[5], particularmente em sua obra “A Política”[6], é uma das formas de poder, ao lado do poder paterno, o despótico e o político.

 

Aponta que o poder paterno é exercido no interesse do filho, o poder despótico no interesse do senhor e, o poder político no interesse de quem governa ou de quem é governado.

E pode ainda se dividir em monarquia (poder de um só), oligarquia (poder de poucos) e democracia (poder da maioria).

 

 

Recomendou Aristóteles[7] as formas de governo que misturem os vários tipos existentes, e, ainda, proclamou explicitamente que o homem é, por natureza, um animal social e político.

Sendo também da natureza humana buscar a felicidade e o sumo bem que só poderão ser alcançados na vida da pólis.

 

Durante a Idade Média, a problemática da política incorpora e exprime a luta ou tensão entre a fé e a razão, e então Europa sob feudos produziu a emergência e a hegemonia do Cristianismo cuja produção assenta-se nas relações de vassalagem, onde surgem os senhorios de barões, príncipes[8] e reais.

 

Somados ao poder eclesiástico do prelado composto de bispos, cardeais, papas que entram em conflito com esses titulares do poder temporal.

 

Aí, nasce nova configuração da questão do poder que opõe a cidade de Deus à cidade dos homens. No mesmo sentido, se desenvolve a problemática do conhecimento que se dá pela necessidade de se harmonizar a fé com a razão, subordinando a filosofia à teologia e, no âmbito político outra relevante questão aparece que é saber se a fonte do poder é mundana, profana ou se sua origem é sagrada, espiritual ou bíblica.

 

As reflexões tomistas deram importância crucial à noção do bem comum e, por essa porta, entrou a possibilidade da contestação do poder do governante e, o mesmo direito de sublevação, se esse poder contrariar o bem comum.

 

As lutas e conflitos havidos ente o poder papal e dos reis, senhores e príncipes representou apenas um dos elementos que contribuíram com o movimento da Reforma Protestante e que bem justificou os interesses burgueses de índole individualista.

 

Enfim, o desejo dos camponeses, os interesses dos mercadores e as necessidades dos artesãos propiciaram o surgimento do Estado centralizado e forte que veio a substituir o fragmentado e confuso Estado feudal da Idade Média.

 

De qualquer modo, a evolução do Estado o fez rivalizar com o poder eclesiástico e se tornou um entrave para a burguesia. Então, surgiram homens de ciência, isto é de saberes que propuseram nova configuração para a questão do poder.

 

A primeira referência é a obra de Maquiavel[9] “O Príncipe” com destaque sobre a virtude do governante, ou seja, no sentido dado pelos gregos homéricos, e não o sentido dado pela tradição da teologia cristã.

 

A virtude[10] como atributo próprio do ser, da natureza do ser. Assim, por exemplo, a qualidade própria da água, é sua umidade, ou seja, a capacidade de molhar.

 

Como a qualidade da luz é iluminar. O príncipe, não deve depender da fortuna, mas deve ter força, honra, coragem, virilidade, o que lembra o ideal do guerreiro correspondendo ao belo e o bom da cultura homérica.

 

Já a teologia cristã percebe e imanta a virtude e a aproxima da perfeição do Criador. Não é atributo natural, mas resultado do emprego da reta razão e da vontade bem-conduzida.

 

Traz a reflexão do Maquiavel um campo novo para questão política bem como os cientistas e artistas do Renascimento pois rompem com o rigor formal da escolástica, passando a reflexão sobre o poder permanecer fora do âmbito teológico.

 

Por essa razão que Maquiavel é considerado como fundador da moderna ciência política exatamente porque sua reflexão toma por base a observação de como os homens procedem de fato, e não de como, estes deveriam proceder de direito.

 

Uma das mais conhecidas e debatidas definições de política é a de Carl Schmitt (desenvolvida por Julien Freund) segundo a qual a esfera da política coincide com a relação amigo-inimigo.

 

Portanto, o campo de atuação da política seria o do antagonismo e sua função seria associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos

 

Intensificando a definição, Schmitt compara às definições de moral e arte apontando as oposições fundamentais tais como bom/mau, belo/feio e, etc.

 

A distinção política específica a que é possível referir as ações e os motivos políticos, é a distinção de amigo e inimigo. E quanto maior for a oposição em se desenvolver o sentido da distinção amigo/inimigo, tanto maior esta se tornará político.

É precípuo do Estado suprimir dentro dos limites de sua competência, a divisão dos seus membros ou grupos internos em amigos e inimigos, não tolerando senão as meras rivalidades agonísticas e as lutas dos partidos, e reservando ao governo o direito de indicar o inimigo externo.

 

 

O conflito por excelência conforme explica Schmitt extrapola sua definição de política, é a guerra, cujo conceito compreende tanto a guerra externa quanto a interna. Portanto, a definição de política em termos da relação amigo/inimigo não é incompatível com a definição que se refere ao monopólio da força ou do poder.

 

Pois é justamente na medida em que o poder político se distingue do instrumento de qual se serve para atingir seus próprios fins, a força física, correspondente ao poder a qual se recorre para resolver os conflitos cuja não solução fulminaria o Estado e a ordem internacional. Traduzindo bem o aforismo a vita mea é a mors tua (a vida minha é a morte sua).

 

Referências

FRIEDRICH, C. Introduzione alla filosofia politica (1970) Isedi, Milano 1971.

 

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Ática, 2005.

 

BOBBIO, Norberto. Política. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco (Ed.). Dicionário de política. 2. ed. Brasília: UnB, 1986.



[1] Segundo Kant, capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível.

 

[2] Ainda segundo Kant, sujeição da vontade humana a impulsos passionais, inclinações afetivas ou quaisquer outras determinações que não pertençam ao âmbito da legislação estabelecida pela consciência moral de maneira livre e autônoma.

[3]  Já elegemos o primeiro presidente da República brasileira um operário, sindicalista e, recentemente, a primeira mulher o que representa significativas vitórias para a democracia da América do Sul.

[4] Homero é cronologicamente o primeiro poeta europeu e, também um dos mais importantes.  A linguagem da Ilíada e da Odisséia, de incomparável beleza, além de estar na base da unidade idiomática grega, expressa as virtudes e os desejos mais nobres: a honra, o patriotismo, o heroísmo, o amor, a amizade, a fidelidade e hospitalidade.

[5] O homem é um ‘zoom politikón’”. (Aristóteles)

[6] A “Política” (Politeia) divide-se em oito livros, que tratam: da composição da cidade, da escravidão, da família, das riquezas, bem como de uma crítica às teorias de Platão. Analisa também as constituições de outras cidades, num notável exercício comparativo, descrevendo-lhes os regimes políticos. Aristóteles, por sua vez, não foge da tentação de também idealizar qual o modo de vida mais desejável para as cidades e os indivíduos, mas dedica a isso bem menos tempo do que seu mestre.

[7] O homem, quando perfeito, é o melhor dos animais, mas é também o pior de todos quando afastado da lei e da justiça, pois a injustiça é mais perniciosa quando armada, e o homem nasce dotado de armas para serem bem usadas pela inteligência e pelo talento, mas podem sê-lo em sentido inteiramente oposto. Logo, quando destituído de qualidades morais, o homem é o mais impiedoso e selvagem dos animais, e o pior em relação ao sexo e à gula                                 Aristóteles – “Política”, 1252 b

[8] A ética em Maquiavel se contrapõe à ética cristã herdada por ele da Idade Média. Para a ética cristã, as atitudes dos governantes e os Estados em si estavam subordinados a uma lei superior e a vida humana destinava-se à salvação da alma. Com Maquiavel a finalidade das ações dos governantes passa a ser a manutenção da pátria e o bem geral da comunidade, não o próprio, de forma que uma atitude não pode ser chamada de boa ou má a não ser sob uma perspectiva histórica.

[9] Niccolò di Bernardo dei Machiavelli viveu a juventude sob o esplendor político da República Florentina durante o governo de Lourenço de Médici e entrou para a política aos 29(vinte e nova) anos de idade no cargo de Secretário da Segunda Chancelaria. Nesse cargo, Maquiavel observou o comportamento de grandes nomes da época e, a partir dessa experiência retirou alguns postulados para sua obra. Depois de servir em Florença durante catorze anos foi afastado e escreveu suas principais obras. Conseguiu também algumas missões de pequena importância, mas jamais voltou ao seu antigo posto como desejava.

 

[10] Os conceitos de virtù e fortuna são utilizados várias vezes por Maquiavel em suas obras. Para este, a virtù seria a capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos que levaria à permanência no poder. A virtù seria como uma barragem que deteria os desígnios do destino. Mas segundo o pensador, em geral, os seres humanos tendem a manter a mesma conduta quando esta frutifica e assim acabam perdendo o poder quando a situação muda.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Política, vita mea est a mors tua. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/politica-vita-mea-est-a-mors-tua/ Acesso em: 21 nov. 2024
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