Filosofia do Direito

Direito e Ciência

LAW AND SCIENCE

Resumo: O presente artigo tem como proposta discutir a repercussão do critério de verdade, tratado na obra Ciencia Del Derecho y Analisis del Linguaje, In Contribución a la Teoría del Derecho, de Norberto Bobbio, na concepção positivista de ciência do direito.

A metodologia empregada trabalha com a reflexão zetética e dogmática, baseada na técnica da argumentação, na lógica formal e na discussão filosófica, utilizadas no estudo do direito.

Por fim, como conclusão, refletimos, diante dos argumentos expostos, sobre o modelo positivista de compreender o fenômeno jurídico.

Abstract: The present article has as a proposal to discuss the repercussion of the criterion of truth treated in the work Science of Law and Analysis of the Language, In Contribution to the Theory of the Right, of Norberto Bobbio, in the positivist conception of science of the right.

The methodology used works with the zetética and dogmatic reflection, based on the technique of the argumentation, in the formal logic and the philosophical discussion, used in the study of the right.

Finally, as a conclusion, we reflect, in the light of the above arguments, on the positivist model of understanding the legal phenomenon.

Palavras-chave: Jurisprudência. Ciência. Direito. Linguagem. Rigor. Coerência. Verdade.

Keywords: Jurisprudence. Science. Law. Language. Rigor. Coherence. Truth.

Sumário:

1. Introdução. 2. A Cientificidade do Direito. 3. Racionalismo e Direito. 4. Positivismo e Direito. 5. Neopositivismo e Direito. 6. Crítica à Concepção Científica.

INTRODUÇÃO

Nosso estudo tem como objeto de análise a obra Ciencia Del Derecho y Analisis del Linguaje, In Contribución a la Teoría del Derecho, de Norberto Bobbio. Assim, baseada nessa obra, nossa reflexão buscará realizar uma crítica à concepção científica do direito.

No primeiro capítulo, exporemos, conforme relata Noberto Bobbio, que houve, diante de uma retrospectiva histórica, muita resistência em considerar o direito como uma ciência.

No segundo, apresentaremos a visão jurídica do Racionalismo, revelando qual a visão iluminista da seara jurídica e, qual, era, nessa concepção, o papel do jurista.

Na terceira seção, exporemos como o Positivismo Clássico enxergava epistemologicamente o universo jurídico.

Já na quarta, discutiremos a visão Neopositivista, baseada na Filosofia da Linguagem, sobre o direito.

E ao final, debateremos a não-neutralidade do método de conhecimento científico. Para, assim, investigar se o fenômeno jurídico deve ser enquadrado como ciência. Desse modo, dentro de uma concepção linguística de ciência haveria uma forma de apreensão estritamente descritiva? O ato de conhecer não seria também um atividade de construção de sentido, de criação de significado? O papel exercido pelo cientista não teria em si cargas valorativas que moldariam a sua perspectiva da “realidade”? Enfim, são esses alguns dos questionamentos que nortearam nosso caminho de investigação.

1. A CIENTIFICIDADE DO DIREITO

Norberto Bobbio, no começo de sua análise, irá investigar o tratamento dado ao direito como ciência. Segundo ele, no passado, a jurisprudência não era vista como algo científico.

Havia, dessa maneira, uma confrontação entre os estudos do jurista e os do matemático, do físico, do biólogo, por exemplo. Já que estas investigações possuíam uma longa e consolidada tradição de serem consideradas científicas.

Permanecia, assim, sempre em debate, a questão de a jurisprudência ser ciência ou não. E isso, como afirma Bobbio, não se tratava apenas de um mero jogo de palavras, nem de uma questão de dignidade. Mas, sim, de saber se os resultados obtidos na investigação jurídica poderiam ser considerados tão rigorosos quanto àqueles encontrados na Biologia, por exemplo. Era, portanto, muito problemática a inserção do estudo jurídico dentro da esfera científica.

Nessa linha, segundo ele, por um sentimento de inferioridade do jurista frente às outras áreas do conhecimento, surgiu uma duplicação do saber. Tal duplicidade colocou a jurisprudência como não-científica e todo o resto como ciência, superior àquela. Em suas palavras[1]: “(…) por un lado, una jurisprudencia que no es ciencia y, por otro lado, una ciencia que en sí misma no tiene ya nada que ver con lá jurisprudencia”. Isso levou à construção de uma ciência do direito distinta da jurisprudência.

Após isso, Bobbio trata das concepções (racionalista, do século XVIII e positivista, do século XIX) do direito. Essas duas visões têm como igual resultado a criação de uma ciência jurídica totalmente separada da jurisprudência e alheia ao trabalho efetivo do jurista.

2. RACIONALISMO E DIREITO

A visão racionalista da ciência, século XVIII, também distingue jurisprudência de ciência.

Da perspectiva iluminista, o mundo é um sistema ordenado regido por leis universais e necessárias (racionalismo objetivo ou metafísico). O homem é um ser racional (racionalismo subjetivo e metodológico). A ciência, segundo os iluministas, é a adequação da razão subjetiva do homem à razão objetiva do universo. O papel do cientista, assim, é o descobrimento e formulação de leis necessárias e imutáveis.

Seguindo essa linha, o estudioso do direito difere do cientista, pois o seu objeto de estudo (o direito) é mutável, provisório, limitado espacial e temporalmente, convencional, contingente e sem “universalidade” e “necessidade”.

Segundo o autor[2], nessa época, a legislação não era sistematizada, mas caótica, confusa, oposta ao ordenado mundo natural. Diante disso, a jurisprudência era vista como uma arte prática, incompatível com o universo científico. Nos seus próprios termos[3]: “(…) como reaccionó em consecuencia humillando a la jurisprudência como arte práctica y condenando-la a permanecer perenemente fuera del reino de la ciência[4]”. Consequentemente, há o descarte da jurisprudência “real”, ou seja, aquela praticada nos tribunais, para que uma jurisprudência ideal fosse concebida segundo os critérios vigentes de ciência.

Chega-se, por tal motivo, de acordo com o Racionalismo Científico, conforme uma visão mecanicista de mundo, ao direito natural. Este é a verdadeira ciência jurídica, o saber definitivo das leis humanas. Portanto, está fora dele a jurisprudência.

O direito natural baseia-se, segundo Bobbio, em dois pressupostos:

a) A existência de leis necessárias e universais que regulam a conduta do homem, leis naturais semelhantes a todas as demais leis que regulam o universo;

b) A ciência do direito natural tem a função de descobrir e enunciar as leis tirando-as da própria natureza do homem, com o fim de estabelecer de maneira válida e de uma vez para sempre, definitivamente, as regras imutáveis do comportamento social do homem e os princípios da sociedade ótima[5].

Seu objetivo era descobrir, por meio da razão, as leis necessárias e imutáveis que regulam a conduta humana e os princípios da sociedade ótima.

Desse modo, muitos pensadores, embora tivessem ideologias diferentes, como Hobbes e Leibniz, possuíam a mesma metodologia e dividiam o direito da seguinte forma: o direito natural como conhecimento verdadeiro, mas não-jurídico; e a jurisprudência como conhecimento não-verdadeiro, mas jurídico.

3. POSITIVISMO E DIREITO

Após essa breve exposição do Racionalismo, Bobbio segue para a perspectiva do Positivismo. Dá, assim, um sucinto esboço da ciência positivista.

Agora, os pressupostos do Racionalismo são negados. O mundo não é mais visto como um sistema racional. O homem, o investigador, o cientista, é um ser falho, age de forma irracional frequentemente; a sua razão não é mais o instrumento adequado de alcance da verdade.

A realidade não é mais um depósito de leis universais, mas sim um depósito de fatos. Fatos esses estudados experimentalmente. É, agora, a partir da experiência e não mais da razão que nascem as leis universais. Com base em uma obra de registro e exploração são encontradas as relações constantes ou leis gerais, destinadas, a serem revogadas por novos fatos que as contradigam[6].

Nessa linha, a perspectiva positivista de ciência não se distingue, portanto, da metafísica por um distinto resultado (a lei da natureza), mas, sim, pelo método de obtê-lo. Ardigó ressalta essa diferença[7]: “Mientras el metafísico está condenado a dar vueltas eternamente em um círculo vicioso, el positivista termina por encontrar lo que busca: la verdadeira ley de los hechos observados”.

Dessa forma, como tudo para o positivista precisa ser experimentado, passado pelo crivo da experiência, Bobbio ressalta que a lógica se transforma em Psicologia e a ética em ciência dos comportamentos sociais, Sociologia.

E a jurisprudência, nessa concepção, como não lida com fatos, mas proposições normativas não é ciência. Mas, sim, dogmática.

O autor, nessa linha, questiona, já que as leis do pensamento e a leis morais foram reduzidas a ciências, respectivamente, à Psicologia e à Sociologia, o que impediria de as leis jurídicas serem reduzidas à ciência? Diz ele que nada impediria.

O direito, por isso, segundo o Positivismo, acaba por restringir-se à Psicologia e à Sociologia jurídicas. Também, nesse caso, a jurisprudência não é vista como ciência. Segundo Norberto Bobbio[8]:

Porque, una ciência empírica del Derecho se había hecho posible, sí, com la reducción del Derecho a hecho, pero esta ciência, una vez más, no era ya la jurisprudência, no era ya el estúdio que el jurista realiza a los fines de la sistematizacion doctrinal y la aplicacion pratica de las proposiciones normativas vigentes em um determinado ordinamiento.

Desse modo, antes a jurisprudência era tida como técnica ou arte (racionalistas), agora, como dogmática (positivistas).

4. NEOPOSITIVISMO E DIREITO

Seguindo as linhas desse estudo, Bobbio apresenta a concepção contemporânea de ciência.

Enquanto no passado, o Positivismo Lógico apresentava as proposições científicas como verdadeiras ou falsas, na concepção atual, as proposições científicas são vistas como rigorosas ou não.

Hoje, a preocupação reside no rigor da linguagem. Se o enunciado for coerente com todo o sistema enunciativo, assim, também a linguagem científica será rigorosa. Assim enuncia que o termo rigoroso[9] deve estar de acordo com dois critérios:

a) quando todas as palavras utilizadas nas proposições primárias do   sistema foram estabelecidas, ou seja, quando foram definidas todas as regras de seu uso e estas foram usadas respeitando somente essas regras[10];

b) quando determinadas as regras primárias se depreendem as proposições derivadas e não se usam outras regras fora das estabelecidas[11].

Nisso, rigor significa que os enunciados devem ser claros, sem ambiguidade e devem estar coerentes com o sistema enunciativo.

A ciência é vista como um fenômeno que surge da percepção do sujeito e leva a uma linguagem, um conhecimento intersubjetivo.

Nesse novo modelo neopositivista, a jurisprudência pode ser sim entendida como científica.

O direito tem como objeto as regras de comportamento. Assim, ele difere das ciências formais (Matemática e Lógica) e das empíricas (Física, Biologia, Psicologia e Sociologia). Tem afinidade, portanto, com a Teologia Moral[12].

Nesse sentido, a ciência jurídica pode ser dividida em teoria formal do direito (análise das regras em si) e em jurisprudência (análise do conteúdo das regras).

Nessa nova concepção de ciência, a jurisprudência fica sem os ideais jusnaturalistas e sem a preocupação fática, própria da Sociologia jurídica.

Dessa perspectiva, agora ela é vista como análise de linguagem. O jurista estuda as proposições normativas. Ele não estuda os fatos que deram origem as normas; não é uma ciência empírica. O direito não é nem Sociologia (estudo dos fatos), nem ciência formal (Lógica ou Matemática), mas o estudo do discurso enquanto tal: metalinguagem. Portanto, trabalha com o discurso da lei, da legislação.

Posto que a ciência hoje é tida como análise de linguagem, o direito é visto como um tipo específico dela. E o jurista, intérprete jurídico, interpreta a lei, enfim, faz análise linguística.

Essa nova visão é compartilhada também pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. A ciência do direito[13] é vista como um sistema de conhecimentos sobre a realidade jurídica. Em suas palavras[14]: “A captação da norma na sua situação concreta faz da ciência jurídica uma ciência interpretativa”. Complementa que a ciência do direito além de ser interpretativa é também normativa[15].

A jurisprudência, assim, passa a ser vista como uma análise linguística que tem por objeto as proposições normativas de um determinado ordenamento jurídico.

Bobbio, ao seguir essa linha de pensamento, enumera três[16] fases de desenvolvimento jurisprudencial:

a) a fase de purificação, por ser a linguagem do legislador não tão rigorosa, deve o jurista purificá-la;

b) a de integração. O jurista deve completar a linguagem incompleta do legislador;

c) e a de ordenação, dar ordem, sistematizar a linguagem desordenada do legislador.

Nesse novo entendimento, o termo “conceito” não é mais ou menos verdadeiro segundo a natureza que pretende descrever, mas mais ou menos rigoroso, de acordo com o sistema de regras ao qual pertence. Desse modo, a ciência não é mais uma apreensão de verdades. Agora, é uma sistematização rigorosa de conceitos com fins práticos. Por exemplo, o conceito de propriedade. Será rigorosa sua definição quando respeitar as regras que servem para delimitar o sentido da palavra. O termo “propriedade” deve respeitar a linguagem dentro da qual está inserido. O sentido, assim, será dado dentro desse contexto.

Dessa maneira, a linguagem pode ser entendida como um jogo[17]. Cada qual possui as suas regras, sendo regido pela convencionalidade, ou seja, as regras são estatuídas conforme a vontade acordada dos integrantes.

A segunda etapa, de acordo com Bobbio, é a integração. A linguagem incompleta do legislador deve ser completada, buscando um sentido mais rigoroso.

Diz ele que quando uma linguagem se desenvolve por si mesma, fazendo explícitas as implicações contidas em suas regras constitutivas, constitui-se uma linguagem fechada, como por exemplo, a Matemática.

A linguagem jurídica conforme esse raciocínio pode ser entendida também como um sistema não-aberto. A regra fundamental em que se constituem as demais proposições normativas formam um todo completo. Ela é a norma de clausura (fechamento) do ordenamento jurídico.

As normas que possuem como fundamento a regra fundamental são deduzidas dessa mediante as regras de transformação consentidas (permitidas) pelo próprio legislador.

Como consequência, não são permitidas regras que contrariem a norma fundamental, ou que estejam fora do âmbito das regras de transformação decididas pelo legislador, não fazendo parte dessa linguagem jurídica, portanto. Para fazer parte desse sistema, deve-se, assim, respeitar as regras de formação e de transformação das proposições. São, desse modo, tarefas de integração do jurista:

a) reconduzir uma determinada proposição ao sistema normativo mediante as regras de transformação que o mesmo sistema considera como lícitas;

b) excluir do sistema as proposições que não são dedutíveis.

Entretanto, disso não decorre que o trabalho do jurista seja mecânico ou que sempre suas conclusões sejam suficientes. Isso porque o sistema jurídico não é perfeito. Possui dois tipos de problema: as lacunas e as antinomias.

Assim, o direito mesmo não sendo completo é completável. Para isso, faz-se uso da interpretação extensiva (lógica jurídica – regras implícitas) e das regras de transformação (regra de extensão analógica, ou seja, o semelhante deve ser regulado como o semelhante, conforme a convenção da linguagem jurídica).

O jurista italiano entende que a interpretação extensiva é igual a extensão analógica. Esta é um meio de interpretação extensiva. Nesse sentido, para ele, a analogia não é uma operação criativa, mas uma operação lógica, ou seja, faz parte da análise linguística do direito.

Por fim, a terceira fase diz respeito à ordenação[18]. Nessa etapa, as proposições jurídicas são sistematizadas. Nesse momento, o jurista debruça-se na construção de um sistema coerente e inteligível.

Depois de “purificar” e integrar a linguagem legal, o estudioso passa ao momento de por em ordem o “edifício” jurídico. Da perspectiva hodierna, assim, o modo de expressão científico deve possuir necessariamente uma coerência interna. Nessa linha, ele colocará em relevo o problema das antinomias.

Para o autor, a existência de antinomias jurídicas não mostra[19] falta de cientificidade, ou rigor, mas o contrário. Afirma ele que essa ausência de solução revela que não há no sistema regras que definam uma conclusão. O rigor empregado nas teses expõe a insolubilidade da disputa.

Conclui-se que isso não é um problema exclusivamente jurídico, mas de outras linguagens: como a Matemática e a Lógica. Assim, isso não faz do direito, como as outras linguagens, uma não-ciência. Enfim, termina o autor italiano por aceitar as lacunas e antinomias[20] como parte da ciência jurídica.

5. CRÍTICA À CONCEPÇÃO CIENTÍFICA

Após a exposição do pensamento do Professor Bobbio. Pretendemos fazer uma análise do critério de verdade utilizado segundo o Neopositivismo.

Como já havíamos esclarecido previamente, nossa intenção com base no texto é realizar uma crítica à concepção científica do direito. De nossa perspectiva, não entendemos que o modo adequado de se estudar o fenômeno jurídico seja encaixá-lo dentro de um ramo científico. E dentro da construção de nosso raciocínio a obra Ciencia Del Derecho y Analisis del Linguaje, de Norberto Bobbio é uma ferramenta importante para esse entendimento.

O mestre italiano, ao definir o direito (objeto) como uma espécie de linguagem e sua ciência, o Direito, como uma metalinguagem aponta para um relevante caminho de reflexão.

O Positivismo Linguístico revela-se como um interessante método de estudo do direito, porque oferece instrumentos de análise que podem esclarecer pontos obscuros, como a relação entre fato, sujeito e norma, e a relação internormativa.

No entanto, entendemos que a forma linguística de encarar o direito e sua ciência traz alguns problemas. É disso que pretendemos dar uma breve exposição aqui.

Norberto Bobbio, utiliza, para construir a sua defesa do direito como ciência, o critério de verdade. Ela, prezada por cientistas e filósofos, a partir do instante em que há a consciência de que não há uma realidade exterior ou que o ser humano é incapaz de alcançá-la, deixa de ser um ato de comparação entre o conhecimento obtido e o parâmetro de verdadeiro. Não há mais assim a dicotomia verdadeiro/falso. No lugar dela, dentro da visão linguística como sistema, emprega-se rigor/ não-rigor.

É a partir disso que pretendemos fazer nossa crítica. Ciência do direito vista como uma linguagem rigorosa, definida pelos critérios de rigor e coerência, pode, por essa razão, ser entendida como uma não-ciência. Expliquemos melhor.

Ao retirar do critério de verdade a comparação, ou seja, o conhecimento não tem mais um parâmetro exterior, apenas interno ao sistema, o rigor (no qual está implícita a coerência interna), não faz mais sentido a terminologia “análise científica”.

De acordo, com esse pensamento o cientista ao estudar o seu objeto está analisando-o de um ponto de vista interno e não externo. Em outras palavras, a antiga concepção de verdade indicava um forma de relação entre o sujeito cognoscente, o objeto cognoscível (de onde adviria o conhecimento), e um parâmetro (a realidade, ou a mente do observador). Agora, com o entendimento de que essa forma de conhecer não existe ou não é praticável, o conhecimento viria de um coerência lógica dentro do próprio sistema linguístico. Disso deriva que o observador é interno e não externo.

Dessa forma, no caso do direito, estudá-lo, nessa linha de pensamento, é uma análise linguística, pautada pelo rigor e coerência dos conceitos formulados. Porém, de nosso ponto de vista, ao tratar o fenômeno jurídico como uma esfera fechada sem o parâmetro externo de verdade, o jurista, ao analisá-lo, não o estaria descrevendo, mas o construindo. Em outros termos, o estudo como uma forma linguística não tem como sua principal característica a descrição, mas a criação. Desse modo, o direito não é descrito, mas construído, elaborado, moldado de acordo com as concepções de seu estudioso.

Aprofundemos isso por outro ângulo. Se a “realidade[21]” é uma linguagem, um modo de comunicação, não há nada fora, mas somente dentro dela. Segundo Humberto Maturana: “De tudo isso, segue-se que a realidade em que vivemos depende do caminho explicativo que adotamos e que isso, por sua vez, depende do domínio emocional no qual nos encontramos no momento da explicação”.

Aquele[22] que se propõe a conhecer algo também está dentro do universo linguístico, sua mente é formada por uma rede de pensamentos baseados em uma determinada língua. Por esse motivo, não há como separar a descrição da construção, porque a linguagem é um fenômeno cultural humano.

Por esse motivo, argumentamos que o termo “ciência do direito”, dessa perspectiva, não tem sentido. Não o tem porque não existe, de fato, uma descrição pura, mas uma elaboração-descritiva. Desse modo, podemos encará-la como um jogo. Queremos expressar com isso que há uma relatividade em toda forma de estruturação do significado, no caso, do significado jurídico. Assim, se encararmos a ciência como um jogo, como definiremos as suas regras? Podemos responder isso com o exemplo do famoso jogo de tabuleiro War, nele suas regras estão definidas pela forma com que o seu criador desejou que os jogadores tivessem determinada experiência.

Enxergamos o direito e a sua ciência da mesma maneira. Já que, segundo nosso entender, não há a possibilidade de separação entre o ato de conhecer e o seu objeto; poderíamos entendê-los como parte de uma relação simbiótica, de mútua implicação. Dessa maneira, o estudo do direito não é meramente descritivo, mas criativo. É, nesse sentido, que podemos encará-lo de um maneira mais apropriada como uma técnica de ordenação social, ou seja, as normas são definidas para que um determinado resultado seja alcançado, ou uma determinada forma de sociedade seja constituída. Porém, como definir quais são as suas regras? Não há, ao nosso ver, uma resposta certa para isso. Nessa linha, contudo não só o legislador deve estar consciente dos propósitos da sua criação, mas também todos os aplicadores e pensadores do direito, os juízes, os promotores, os advogados e os estudiosos. Todos eles, de algum modo, constroem o direito, por isso, todos em seus ofícios e em seus estudos possuem responsabilidade social. Não há, assim, um modo certo de ver o direito. No entanto, a visão humanista que busca conhecer profundamente o ser humano pela sua cultura, pelas suas paixões, pelos seus sonhos, pela sua sensibilidade pode construir um direito mais próximo do ideal de justiça, de fraternidade e de igualdade que tanto se busca.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Ciencia Del Derecho y Analisis del Linguaje, In Contribución a la Teoría del Derecho, Madrid: Editorial Debate, 1990, caps. VII, p. 171 a 196.

Direito e Poder. São Paulo: Ed. Unesp, 2008.

Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito. São Paulo: Manole, 2007.

Teoria da Norma Jurídica. 10 ed. Brasília: Ed. Unb., 1999

Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília: Ed. Unb., 1999.

BONILLA, Jesús Zamora Bonilla, Historia y Filosofía de La Ciencia: Una Introducción Bibliográfica, 2001.

CHAUI, Marilena. O que é Ideologia. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 2001.

DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. São Paulo: Ed. Atlas. 2015.

Introdução ao estudo do direito : técnica, decisão, dominação. São Paulo: Ed. Atlas. 2003.

HABERMAS, Jurgen. Técnica e Ciência como “Ideologia”. trad. Felipe Gonçalves da Silva. 1ª ed. São Paulo, Editora UNESP, 2014.

HART, H. L. A. O Conceito de Direito. São Paulo: Ed Martins Fontes, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. trad. Marco Antonio Casanova. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. Joa?o Baptista Machado. 6a ed. Sa?o Paulo, Martins Fontes, 1999.

Teoria Geral do Direito e do Estado. trad. Luís Carlos Borges. 3ª. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 10ª ed. São Paulo, Perspectiva, 2011.

MATURANA, Humberto. A Ontologia da Realidade. org. Cristina Magro e outros. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: Nova Retórica, trad. Virgínia K. Pupi; rev. Maria Ermentina de Almeida Prado Galvão. 2ª. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. trad. Leônidas Hogenberg e Octanny Silveira da Mota. 15ª ed. São Paulo, Cultrix, 2011.

PUGLIESI, Márcio. Por uma Teoria do Direito: Aspectos Microsistêmicos. São Paulo, RCS, Editora, 2005.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo, Saraiva, 2002.

RODRI?GUEZ, Darío; TORRES N., Javier. Autopoiesis, la unidad de una diferencia: Luhmann y Maturana, Sociologias, Porto Alegre, ano 5, no 9, jan/jun 2003, p. 106-140.

VARELA, Francisco J; MATURANA, Humberto R. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo, Palas Athena, 2001.

André Moraes De Nadai

Mestrando em Filosofia do Direito – PUC – SP

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – USP



[1]Cf. BOBBIO, Norberto. Ciência del Derecho y Analisis del Lenguaje, p. 173: “(…) por um lado, uma jurisprudência que não é ciência e, por outro lado, uma ciência que em si mesma não tem nada que ver com a jurisprudência.” (tradução nossa).

[2] Ibid., p. 174.

[3] Ibid., Id. Interessante notarmos que Bobbio usa a palavra “humillando”. E isso levanta a dúvida se de fato o autor enxerga a ciência como superior à arte ou à técnica ou usa essa expressão para marcar uma concepção própria daquela época.

[4] “(…) como reagiu conseqüentemente humilhando à jurisprudência como arte prática e condenando-a a permanecer perenemente fora do reino da ciência.” (tradução nossa).

[5] Ibid., p. 175.

[6] Ibid., p. 176.

[7] Ibid., Id. “Enquanto o metafísico está condenado a perambular para sempre em um círculo vicioso, o positivista acaba encontrando o que procura: a verdadeira lei dos fatos observados.” (tradução nossa).

[8] Ibid., p. 177. “Porque, uma lei empírica do direito se tornou possível, sim, com a redução do direito de agir, mas essa lei, mais uma vez, não era mais a jurisprudência, não era mais o estudo que o jurista realiza para os fins da sistematização doutrinal e aplicação prática de proposições normativas vigentes em uma dada ordenação.” (tradução nossa).

[9] Ibid., p. 180.

[10] Ibid., Id.

[11] Ibid., Id.

[12] Ibid., p. 182. Bobbio cita o exemplo da semelhança com a obra moral De Legibus.

[13] Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação, p.197

[14]Ibid., p. 201.

[15]Ibid., Id.

[16] Cf. BOBBIO, Norberto. Ciencia del Derecho y Analisis del Lenguaje, p.184

[17] Ibid., p. 186.

[18] Ibid., p. 192.

[19] Ibid., Id.

[20] Ibid., p.196.

[21] Cf. MATURANA, Humberto, A Ontologia da Realidade, p. 315.

[22] Ibid., p. 319. Segundo ele, os seres humanos acontecem na linguagem conforme o tipo de sistema vivo ao qual operam.

Como citar e referenciar este artigo:
NADAI, André Moraes de. Direito e Ciência. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/direito-e-ciencia/ Acesso em: 10 jul. 2025
Sair da versão mobile