Filosofia do Direito

A Tolerância como Fundamento do Estado Laico

foto Robson

A intolerância, sobretudo no aspecto religioso, é culpada pelas páginas mais sangrentas nos relatos da historia da humanidade, ela é autoritária, severa, rigorosa, inflexível e destituída de qualquer sentimento fraterno pelo próximo.

Como afirma Hannah Arendt:

“Distinções e diferenciações naturais e onipresentes que, por si mesmas, despertam silencioso ódio, desconfiança e discriminação”. Ainda: “O ‘estranho’ é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade em si, e evoca essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto, uma definida tendência a destruir”. [1]

A intolerância é um problema inerente ao gênero humano e até hoje se busca a combatê-la através da racionalização do homem e da democracia que a cada dia se estende mundo a fora. O tema tolerância pressupõe problemas de convívio entre indivíduos de uma sociedade e até mesmo entre nações, face às ideologias diversas permeadas nos mais diversos aspectos da vida.

Norberto Bobbio afirma que:

“Hoje, o conceito de tolerância é generalizado para o problema de convivência das minorias étnicas, lingüísticas, raciais, para os que são chamados geralmente de ‘diferentes’, como, por exemplo, os homossexuais, os loucos ou os deficientes.” [2]

A tolerância tem por objetivo igualar as pessoas para que vivam harmoniosamente em um mundo isonômico e igualitário, cujo papel principal é promover uma troca justa e pacífica de diferentes ideologias pregadas, resultando no convívio tranquilo entre as nações e entre os homens, tendo como fundamento a ideia de que “se tu me toleras, eu te tolero”.[3]

Sobredita ideia decorre de um princípio moral de que as pessoas devem respeitar as opiniões diversas das suas, de modo que a tolerância seja manifestada no respeito ao próximo independentemente do seu consenso.

Bobbio explica bem sobre isso ao afirmar que:

“Assim como o método da persuasão é estreitamente ligado à forma de governo democrático, também o reconhecimento do direito de todo homem a crer de acordo com sua consciência é estreitamente ligado à afirmação dos direitos de liberdade, antes de mais nada ao direito à liberdade religiosa e, depois, à liberdade de opinião, aos chamados direitos naturais ou invioláveis, que servem como fundamento ao Estado Liberal. De resto, ainda que nem sempre historicamente, pelo menos na teoria o Estado Liberal e o Estado democrático são interdependentes, já que o segundo é o prolongamento necessário do primeiro; nos casos em que lograram se impor, eles ou se mantêm juntos ou caem juntos.”[4]

A escolha de uma crença ou de uma religião que para muitos são as mesmas coisas, é uma necessidade que decorre do gênero humano prolongado desde a antiguidade até os dias atuais e, a defesa da verdade da religião aderida, sempre gerou perseguições e matanças mundo afora, em razão do fanatismo e da intolerância por aqueles que sempre detiveram o poder de imposição.

As verdades reveladas pelas religiões devem ser pregadas por convicção íntima de cada individuo e jamais por imposição. Assim também é para o desejável rebanho, que também deve utilizar os mesmos instrumentos para aderência ou não àquela crença.

A tolerância como virtude moral desempenha um papel fundamental na pacificação social de uma nação pluralista, em que todas as pessoas se toleram independentemente de convicções íntimas de crença, mas pelo dever moral que lhe é imposto em defesa da própria verdade pregada, como bem sustenta Bobbio: “Num multiverso, a tolerância não é apenas um método de convivência, não é apenas um dever moral, mas uma necessidade inerente à própria natureza da verdade.” [5]

São dois os significados de tolerância. A tolerância na ótica positiva tem por objetivo a busca da convivência harmoniosa, pacífica, solidária com o próximo, sobretudo em razão da consideração do livre pensamento alheio. Em sentido contrário, do ponto de vista negativo, “sinônimo da indulgência culposa, da condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor à vida tranquila ou por cegueira diante dos valores” [6]

Sempre na contraposição das ideias haverá uma “zona cinzenta” que demandará uma melhor avaliação para se aferir que uma sociedade é mais tolerante que a outra, na seara da tolerância real, Bobbio assenta que: “não é que a tolerância deva ser limitada. Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis. A tolerância é sempre tolerância em face de alguma coisa e exclusão de outra coisa” [7]

Para Voltaire em “Tratado acerca da tolerância” [8] ele discorre sobre a importância da tolerância como objetivo de se evitar tragédias sociais ocasionadas pela comoção pública e fanatismo religioso, historia essa que foi brilhantemente narrada a partir de seu primeiro capitulo que fala de um homem bom, de nome Jean Calas, de 68 anos, negociante há mais de 40 anos na cidade de Toulousse, fato ocorrido em 09 de março de 1762.

Jean Calas foi sentenciado a expirar ao suplício da roda[9] pela suspeita de ter enforcado seu filho, Marc-Antoine, por ter se convertido ao catolicismo, em processo arbitrário e injusto os magistrados o condenaram tendo como única fundamentação a comoção de uma sociedade intolerante e fanática.

A tolerância religiosa de fato é a espinha dorsal do pensamento laico estatal, que assegura o livre exercício de fé, sem, no entanto, privilegiar nenhuma delas, assegurando-lhes, ainda, o direito de defender a moralidade de suas liturgias e praticas, quando blasfemadas.

Voltaire ainda ensina que qualquer que seja a crença da pessoa, como religião, ela deve ser respeitada. Assim:

todavia por maior que seja o bem que possa fazer ao Estado, igualar-se-á esse bem ao terrível mal que causaram […] temos religião de sobra para odiar e perseguir e poucas para amar e socorrer.” [10]

Apregoa ainda que:

quanto mais seitas houver, tanto menos perigosa cada uma será; a multiplicidade as enfraquece; todas são reprimidas por justas leis que proíbem as assembleias tumultuosas, as injúrias, as sedições e que estão sempre em vigor pela força coativa.” [11]

A pluralidade de religiões induz aos seus súditos mais o exercício da razão do que da emoção, pois todas elas, de certa forma, tentam sobrepor-se umas às liturgias das outras, em verdadeira pretensão de provar um mundo das verdades absolutas, em textos de alto grau de subjetividade, cuja fé é a única forma e instrumento válido de estudo.

O Estado Laico potencializou a diversidade de crenças religiosas, isso acabou resultando numa sociedade mais tolerante pelo uso dos desacordos morais razoáveis [12], sem desconsiderar as exceções, extirpando definitivamente as perseguições fanáticas e sangrentas.

Sobre o assunto Voltaire também se posiciona:

“[…] o direito humano só pode se fundar nesse direito de natureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é em toda a terra: Não faças o que não gostarias que te fizessem. […] o direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro.” [13]

Se o direito natural ou divino[14] é uma virtude intrínseca do homem instituído pelo próprio divino, a tolerância, assim como a necessidade de crença, também deveria aflorar deliberadamente pelos crentes, que não se confunde com os religiosos seguidores de um determinado credo, que utilizam de ideologias com propósitos egoístas e devastadores.

Voltaire afirmava que: “A Escritura nos ensina, portanto, que Deus não somente tolerava todos os outros povos, como tinha por eles um cuidado paterno”. Ainda, no afã da emoção realça: “E nós ousamos ser intolerantes”! [15]

Em análise de toda a escritura bíblica do antigo testamento, sempre havia margem de tolerância para aqueles que não professavam a mesma fé, esse direito decorria do “livre arbítrio”, ou, nos dias atuais, “direito de escolha” originado do pensamento liberal.

Voltaire ainda lança um desafio:

se quisermos examinar mais de perto o judaísmo, ficaremos espantados de encontrar a maior tolerância em meio aos horrores mais bárbaros. É uma contradição, é verdade; mas quase todos os povos foram governados por condições. Feliz aquela que produz costumes suaves quando se tem leis de sangue!” [16]

Pelo parecer de Voltaire percebe-se que ele propõe o seguinte: Se os homens não conseguem viver sem religião em razão da fraqueza de seu gênero, que então deixem de ser fanáticos e passem a fazer uso da razão e do benefício que a religião possa trazer a uma sociedade supersticiosa, que a tolerância possa reger os atos motivados pela fé e que a mesma possa resultar numa paz coletiva.

Mesmo com a garantia do exercício livre da Liberdade Religiosa, é possível perceber até nos dias atuais, que o conceito de tolerância, premissa do pensamento laico e da livre consciência, ainda não atingiu o ápice de suja compreensão pelos membros da sociedade, quantas não são as cenas públicas de religiões blasfemando outras, de ministros religiosos insultando a outros em defesa de suas liturgias e crenças de foro íntimo, condutas flagrantemente intolerantes e, sobre isso, Locke prescreve:

[…] nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qualquer maneira a outrem nos seus bens civis porque professa outra religião ou forma de culto. Todos os direitos que lhe pertencem como indivíduo, ou como cidadão, são invioláveis e devem ser-lhe preservados. Estas não são as funções da religião. Deve-se evitar toda violência e injúria, seja ele cristão ou pagão.” [17]

As defesas sangrentas do direito à Liberdade Religiosa resultaram na positivação do direito de escolher do indivíduo, isso repercutiu grandes efeitos no Estado que agora não possui uma religião oficial, tornando-se neutro e apenas protetor das liberdades instituídas de crença, consciência e de culto.

______________________________________________________

[1] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Cia.Letras,1989. P. 155.

[2] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6 reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Apresentação de Celso Lafer. Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 186-198.

[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 189.

[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 191.

[5] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 192.

[6] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 195.

[7] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 195.

[8] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução Paulo Neves. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[9] Suplício da Roda: Método de tortura da idade média em que Jean Calas, deitado na roda, com braços e pernas quebrados a golpes de barra de ferro, fica lá, com o rosto voltado para o céu, agonizando durante duas horas. Depois é estrangulado e seu corpo queimado.

[10] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 15.

[11] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 29.

[12] “O desacordo moral razoável é aquele que tem lugar diante da ausência de consenso entre posições racionalmente defensáveis” – BARROSO, Luiz Roberto. Gestão de fetos anencefálicos e pesquisas com células tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: Novelino, Marcelo (Org) Leituras complementares de Direito Constitucional e direitos fundamentais. 3. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2008.

[13] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 33 – 34.

[14] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 69.

[15] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 77.

[16] Voltaire. Tratado acerca da tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, p. 81.

[17] LOCKE, John. Carta acerca da Tolerância. p. 6.

Robson de Andrade Neves                      

Possui graduação em Direito pela Universidade Paulista (2011), docente de Direito Público na Universidade Anhanguera de São Paulo, diretor jurídico do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa, presidente da Associação para o Desenvolvimento e Defesa da Democracia, advogado fundador do escritório Souza Cruz & Neves Advogados e Secretário de Planejamento e Estratégias de governo.

Como citar e referenciar este artigo:
NEVES, Robson de Andrade. A Tolerância como Fundamento do Estado Laico. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-tolerancia-como-fundamento-do-estado-laico/ Acesso em: 21 nov. 2024
Sair da versão mobile