Filosofia

Não devemos tolerar os intolerantes

Resumo: Para preservar a tolerância e a democracia faz-se necessário controle e cuidado, sob pena das rédeas do poder serem legadas aos totalitários comandantes e oportunistas de ocasião.

Palavras-Chave: Democracia. Tolerância. Karl Popper. Liberdade. Totalitarismo.

Abstract: To preserve tolerance and democracy, control and care are necessary, under penalty of the reins of power being left to the totalitarian commanders and opportunists of occasion.

Keywords: Democracy. Tolerance. Karl Popper. Freedom. Totalitarianism.

O paradoxo da tolerância foi definido em 1945 pelo filósofo Karl Popper[1], onde concluiu que a tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. De fato, não é desejável que as pessoas com receio de expor suas ideias porque existe castigo e, principalmente, se tais ideias forem notoriamente falsas e infundadas. Afinal, somente através da crítica é que tais ideias podem ser refutadas e alteradas.

Muito provavelmente, o Paradoxo da Tolerância é uma das ideias mais célebres de Karl Popper, de cunho profundamente irônico, e não chega ser surpreendente que o referido conceito venha sendo mal interpretado e, até distorcido, além de utilizado para o exatamente oposto ao que Popper defendeu.

Observar-se que o referido paradoxo de grande disseminação nas redes sociais e, variadas mensagens conforme a motivação da fonte. Aliás, basicamente existem duas versões populares, uma nazista e outra islamista.

O paradoxo da tolerância está presente na obra intitulada “A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, onde o filósofo identificou e criticou extensamente as ideias filosóficas que tanto deram origem, na opinião de Popper, aos movimentos totalitários do século XX. Todo o livro é enfim, uma franca defesa da sociedade aberta e pluralista, da racionalidade e do falibilismo.

Falibilismo (do latim, fallibilis, que pode falhar, errar) é o princípio filosófico de que os seres humanos podem estar errados sobre suas crenças, expectativas ou sua compreensão do mundo e, ainda, assim se justificarem na realização de suas crenças incorretas. No sentido mais comumente utilizado do termo, consiste em estar aberto a novas evidências de que iriam contestar alguma posição ou crença anteriormente detida e no reconhecimento de que “qualquer afirmação justificada hoje pode precisar ser revista ou posta à luz de novas evidências, argumentos e experiências.” Esta posição é tida como certa na ciência[2] natural. Porém, nas ciências sociais, a lógica pode assumir outra tendência.

O debate sobre os paradoxos da liberdade, da tolerância e da democracia (ou paradoxo da maioria) fora realizada no primeiro volume da obra (tradução livre) “O Fascínio de Platão”, quando Popper argumentou que as raízes do autoritarismo e da tirania remontam à Platão[3] que defendeu abertamente a noção de tirano benevolente. Tal ideia também já estava presente em diversos filósofos posteriores, como em Thomas Hobbes.

Há milênios, o filósofo grego Platão havia percebido um caso paradoxal na democracia: através de um processo democrático, a maioria poderia escolher ser governada por um tirano.

Esses paradoxos também foram aludidos no capítulo intitulado “O Princípio da Liderança” onde o filósofo tentou desconstruir a falácia da pergunta: quem deve governar?

Nas respostas encontramos as teorias da soberania e, que apresentou a solução para o problema, através da substituição do questionamento; como podemos organizar instituições políticas de forma a que seja fácil retirar maus governantes do poder sem o uso de violência?

Enfim, ao invocar o paradoxo da liberdade para criticar o sistema democrático, referindo-se a pessoa livre que pode utilizar de sua liberdade absoluta para desafiar a lei, a própria liberdade e, ainda clamar por um tirano no poder.

“O chamado paradoxo da liberdade é o argumento de que a liberdade, no sentido da ausência de qualquer controle restritivo, deve levar à maior restrição, pois torna os violentos livres para escravizarem os fracos”.

Nas notas de rodapé deste capítulo, Popper se referiu ao paradoxo da tolerância, como outra manifestação do mesmo argumento.

Vejamos in litteris:

“Menos bem conhecido é o paradoxo[4] da tolerância: tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. Se estendemos tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender a sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, juntamente com a tolerância. Nesta formulação não pretendo dizer que devamos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las através de discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las seria extremamente insensato. Mas devemos reservar o direito de suprimi-las, mesmo através de força; porque poderá facilmente acontecer que os intolerantes se recusem a ter uma discussão racional, ou pior, renunciarem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são traiçoeiros, e responder a argumentos com punhos e pistolas”.

Devemos, pois, reservar o direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que prega a intolerância está fora da lei, e considerar criminoso o incitamento à intolerância e perseguição, da mesma forma que é criminoso o incitamento ao homicídio, ao rapto ou ao reavivar da escravatura.”

O ponto principal da questão está contido exatamente na seguinte assertiva: “não pretendo dizer que devamos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las seria extremamente insensato”.

Isto é, enquanto possuirmos a liberdade política e a segurança para combater o discurso que entendemos ser abominável com argumentos que toda pessoa pode ouvir, então usar da coerção será errôneo. Talvez se observarmos a descrição de um episódio que Popper viveu, poucos anos antes de escrever sobre o tema, sirva para esclarecer o contexto nascedouro de Popper.

Logo pouco tempo antes do partido nazista subir ao poder em 1933, Karl Popper entabulou conversa com jovem membro do partido e, após breve exposição de ideias, o filósofo lhe perguntou qual era o seu contra-argumento, ao qual o jovem responde “o meu argumento”? Mostrando-lhe a arma de fogo que portava.

Eis um bom exemplo da situação em que o tolerante não pode tolerar o intolerante. Ainda que o Estado o tolere.

Afinal, na teoria política de Popper que enxergou a democracia como sistema que admite retirar um mau governante de poder, sem ser necessário o uso da violência. É o mecanismo que chamamos de “correção de erros”, de falibilismo e de progresso bem aplicado à política.

Pois, enfim, a sua perda é tanto mais desastrosa do que qualquer outra coisa que um governante possa fazer. E, ipso facto, uma situação na qual esse mecanismo está intimamente ameaçado deverá suscitar a resposta coercitiva ou violenta dos tolerantes. Não antes.

Porém, Popper foi além, sublinhando que os paradoxos como esses são comuns em outros casos. Um exemplo seguinte foi o “paradoxo da tolerância”, segundo a qual tolerar os intolerantes levaria à destruição dos tolerantes, e com isso, viria o fim da própria tolerância como princípio-guia da sociedade.

Popper criticou o marxismo, que chamou de ser a versão ingênua do liberalismo, da democracia e do princípio de que a maioria deve governar, ou seja, a liberdade irrestrita acarreta o fim da liberdade, a tolerância irrestrita pode levar ao fim da tolerância.

Existem diversos paradoxos de irrestrita aplicação de princípios básicos como a democracia, a liberdade e a tolerância, com diversas tentativas de solução. Certos princípios tão caros à democracia, liberdade e igualdade, podem se opor entre si em certas situações, conforme bem mostrou Tocqueville, pois levar a igualdade ao extremo pode fazer sucumbir a liberdade individual. Então, a questão passa a ser a de balancear os dois princípios, sem que um ameace o outro.

A fora esses paradoxos, Popper identificou aquele como o da intervenção estatal e o da intervenção estatal mínima. Pois, trata-se de equívoco pensar em liberalismo como mero laissez-faire, como defesa da não intervenção do Estado e, diversos pensadores liberais ressaltaram isso.

É o caso de Locke, por exemplo, que tanto acreditava na liberdade tida como direito natural, porém, também acreditava que a necessidade do Estado aumentava com o progresso da civilização. Faz mal à causa libera a insistência teimosa de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, particularmente, o laissez-faire.

Mesmo o neoliberalismo criado por Alexander Rüstow[5] serviu exatamente para diferenciar da noção de liberalismo então prevalente como mera defesa do Estado Mínimo. Ironicamente, o termo veio adquirir um significado oposto ao pretendido por seu criador. Portanto, Sir Popper, afirmou não apenas que a intervenção estatal não contradiz o liberalismo, e ainda mais, que a liberdade necessita do Estado.

A própria noção de política não intervencionista, de livre mercado, é sem sentido, pois se o Estado não interfere, outros atores e organizações (sindicatos e associações), cartéis, lobbys e, outros irão efetivamente agir, podendo obter papel e importância desproporcional na condução do processo político[6].

Enfim, não podemos ser tolerantes com intolerantes. Que veemente insistem em renegar as liberdades e desrespeitar a democracia, o que inclui o desrespeito aos três poderes da república. Mesmo quando peçam desculpas posteriormente.

Referências

DE FRANCO, Augusto. Comentários a “O Fascínio de Platão” de Karl Popper – Capítulo 10. Disponível em:  http://dagobah.com.br/comentarios-a-o-fascinio-de-platao-de-karl-popper-capitulo-10/ Acesso em 21.2.2021.

POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

SOARES, Alisson Magalhães. Paradoxos da democracia: Popper e a crítica liberal ao liberalismo ingênuo. Disponível em:  https://www.justificando.com/2017/08/18/paradoxos-da-democracia-popper-e-critica-liberal-ao-liberalismo-ingenuo / Acesso em 21.2.2021.



[1] Karl Raymund Popper (1902-1994) foi filósofo e professor austro-britânico. Considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX. É conhecido por sua rejeição de visões indutivistas clássicas sobre o método científico em favor do falsificacionismo. Uma teoria nas ciências empíricas nunca pode ser provada, mas pode ser falsificada, o que significa que pode ser examinada por experimentos decisivos. Igualmente é conhecido por sua oposição à explicação justificacionista clássica do conhecimento, a qual ele substituiu pelo racionalismo crítico, a saber, a primeira filosofia não-justificativa da crítica na história da filosofia. Dentro do discurso político ficou notabilizado por sua vigorosa defesa da democracia liberal e pelos princípios da crítica social que chegou acreditar tornar possível uma florescente sociedade aberta.

[2] Segundo Popper, a ciência progride ao atravessar três etapas: 1ª – a colocação de um “problema”; 2ª – a apresentação de “conjecturas”, propostas como soluções (ainda que provisórias) para o problema em pauta; 3ª – a tentativa honesta de contestar essas conjecturas, ou seja, provar que ela pode ser falsa.

[3] “O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”. Platão de Atenas

[4] Um paradoxo é uma declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum. Em termos simples, um paradoxo é “o oposto do que alguém pensa ser a verdade”. A identificação de um paradoxo baseado em conceitos aparentemente simples e racionais tem, por vezes, auxiliado significativamente o progresso da ciência, filosofia e matemática. Na filosofia moral, o paradoxo tem um papel central nos debates sobre ética. Por exemplo, a admoestação ética para “amar o seu próximo” não apenas contrasta, mas está em contradição com um “próximo” armado tentando ativamente matar você: se ele é bem sucedido, você não será capaz de amá-lo. Mas atacá-lo peremptoriamente ou restringi-lo não é usualmente entendido como algo amoroso. Isso pode ser considerado um dilema ético.

[5] Alexander Rüstow (1885-1963) foi sociólogo e economista alemão. Criador do termo “neoliberalismo” e um dos pais da economia social de mercado que moldou a economia da Alemanha Ocidental no pós-guerra. Um ex-socialista desiludido após a ascensão da União Soviética, Rüstow queria traçar uma “Terceira Via” entre o laissez-faire e o socialismo. Junto a Walter Eucken e Franz Böhm e outros nomes da Escola de Friburgo, Rüstow forneceu ideias econômicas que influenciaram grandemente a Alemanha e Áustria na reconstrução do pós-guerra. Esse enorme período de crescimento econômico ficou conhecido como o Milagre do Reno. Contudo, enquanto Euckene e Böhm estavam mais associadas as ideias do ordoliberalismo, Rüstow ficou mais associado ao que chamou na época de neoliberalismo. Ainda que ambas escolas preconizassem um meio termo entre o Laissez-faire e a Economia planificada, os ordoliberais eram mais pró-mercado enquanto a posição de Rüstow era mais pró-intervenção do Estado na economia.

[6] O conhecimento é uma aventura em aberto. O que significa que aquilo que saberemos amanhã é algo que desconhecemos hoje e, esse algo pode mudar as verdades de ontem.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Não devemos tolerar os intolerantes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofia/nao-devemos-tolerar-os-intolerantes/ Acesso em: 21 nov. 2024
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