Da representação policial por internação provisória, em desfavor do adolescente em conflito com a lei, através da Autoridade Policial
Por Joaquim Leitão Júnior[1]
Diversas leis legitimaram e deram capacidade postulatória (ou de representação policial) ao Delegado de Polícia em buscar junto ao Poder Judiciário, medidas cautelares, por meio de representação policial em face de pessoas maiores e capazes.
O grande questionamento que se põe nessa reflexão é se o Delegado de Polícia poderia manejar representação policial, mirando na internação provisória do adolescente em conflito com a lei?
Não podemos olvidar que, os Autos Apuratórios de Ato Infracional (Sindicância Infracional, Auto de Investigação de Ato Infracional, Autos Infracionais dentre outras terminologias equivalentes) seria equivalente ao Inquérito Policial, porém, com alvos diversos nos polos, em que naquele (Autos Apuratórios de Ato Infracional) o alvo da persecução seria o adolescente em conflito com a lei, e, neste procedimento de inquérito policial, o alvo da persecução seria o adulto maior e capaz.
Apesar de ainda existirem posicionamentos conservadores e classistas da doutrina, é inegável que no atual ordenamento jurídico pátrio se conferiu ao Delegado de Polícia, como presentante da Polícia Judiciária, a sua capacidade postulatória ou capacidade de representação para representar em juízo, favoravelmente a determinadas situações da investigação criminal (e de ato infracional), iniciada em sede policial, inclusive na internação provisória do adolescente em conflito com a lei.
O Delegado de Polícia, agente estatal, deve atuar com imparcialidade e isenção sobre os atos de polícia judiciária no exercício do seu múnus, dentro da atividade de polícia judiciária, inclusive em entendendo pela presença dos requisitos e pressupostos da medida cautelar de internação provisória do adolescente, deve o Delegado se valer de representação em sede flagrancial ou no curso do procedimento pela internação provisória do adolescente em conflito com a lei.
Ademais, o legislador ordinário claramente fez alusão às intervenções do Delegado de Polícia perante o Poder Judiciário, empregando a expressão “representar” (representação), devendo lembrar que não existem palavras inúteis no texto da lei.
Para ilustrar claramente nossas falas, trazemos a baila os textos legais que fazem referências expressas à representação policial deduzida pelo Delegado de Polícia.
O artigo 144, § 1º e § 4º da Constituição Federal preconiza que:
“Art. 144. (…)
[…] § 1º – a polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
[…]
§ 4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”
Este dispositivo constitucional de maneira nítida, evidencia a divisão de tarefas de investigar e o protagonismo do Delegado de Polícia no seio da investigação.
Diga-se de passagem que, este dispositivo joga luz para todo o restante do ordenamento jurídico.
Concatenando as ideias, a Lei 12.830/2013 trouxe importante contemplação legal ao Delegado de Polícia, projetando a seguinte redação:
“Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§ 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.”
Lembremos que o ato infracional corresponde a um crime ou uma contravenção penal (art. 103, do ECA).
Na esteira do que já foi sublinhado no plano constitucional, mas agora sob a ótica infralegal, este dispositivo infraconstitucional de maneira nítida, evidencia a divisão de tarefas de investigar e o protagonismo do Delegado de Polícia no seio da investigação.
Prosseguindo, temos o artigo 149, § 1º, do Código de Processo Penal que disciplina sobre a possibilidade de representação do Delegado de Polícia para que o investigado seja submetido a exame médico-legal quando houver dúvida sobre a integridade mental daquele, “in verbis”:
“Art. 149. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal. § 1o O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente”. (Destaque Nosso)
Por sua vez, caminhando pelo diploma processual penal, deparamos com o artigo 282, caput, § 2º, do Código de Processo Penal, reputado por parcela da doutrina como o dispositivo de maior expressão na legislação ordinária referente à capacidade postulatória ou capacidade de representação do Delegado de Polícia. Vejamos a disposição legal:
“Art. 282 […]
§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
A despeito das discussões e do inteiro teor do dispositivo supralegal, com a superveniência do Pacote Anticrime, nota-se que majoritariamente, a posição tem sido de que o juiz de direito pela letra da lei, não pode mais decretar de ofício medida cautelar, mormente a prisão, revelando mais uma vez a importante de se discutir a capacidade postulatório ou capacidade de representação do Delegado de Polícia.”
Assim, retomando o ponto central da discussão, em que pese à discussão sobre a legitimidade ou não de o Delegado de Polícia ter a permissão para representar ou não por internação provisória, fato é que se a Autoridade Policial pode representar pela prisão preventiva de um adulto (que é o mais e medida bem mais enérgica quando comparada com a internação), pode o menos também, até porque estaria em plena sintonia com o próprio Estatuto Menorista em vigor que é de primar pelo tratamento do adolescente em desenvolvimento com a medida cautelar da internação provisória.
Até por uma analogia em prestígio ao princípio do paralelismo (simetria) das formas com o Código de Processo Penal que é aplicado em sede de ato infracional por força do art. 152 do ECA, reforça e irradia a possibilidade de o Delegado de Polícia representar pela medida de internação provisória.
Em momento alguma o art. 171 e seguintes do Estatuto do Adolescente impede de o Delegado de Polícia representar pela internação provisória ou elege um ator específico da persecução infracional para tanto. Vejamos:
“Seção V
Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente
Art. 171. O adolescente apreendido por força de ordem judicial será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária.
Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial competente.
Parágrafo único. Havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente e em se tratando de ato infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a atribuição da repartição especializada, que, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria.
Art. 173. Em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo único, e 107, deverá:
I – lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o adolescente;
II – apreender o produto e os instrumentos da infração;
III – requisitar os exames ou perícias necessários à comprovação da materialidade e autoria da infração.
Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência circunstanciada.
Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.
Art. 175. Em caso de não liberação, a autoridade policial encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do Ministério Público, juntamente com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.
§ 1º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento, que fará a apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de vinte e quatro horas.
§ 2º Nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial. À falta de repartição policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo referido no parágrafo anterior.
Art. 176. Sendo o adolescente liberado, a autoridade policial encaminhará imediatamente ao representante do Ministério Público cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência.
Art. 177. Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios de participação de adolescente na prática de ato infracional, a autoridade policial encaminhará ao representante do Ministério Público relatório das investigações e demais documentos.
Art. 178. O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade.
Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.
Parágrafo único. Em caso de não apresentação, o representante do Ministério Público notificará os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das polícias civil e militar.
Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá:
I – promover o arquivamento dos autos;
II – conceder a remissão;
III – representar à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa.
Art. 181. Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a remissão pelo representante do Ministério Público, mediante termo fundamentado, que conterá o resumo dos fatos, os autos serão conclusos à autoridade judiciária para homologação.
§ 1º Homologado o arquivamento ou a remissão, a autoridade judiciária determinará, conforme o caso, o cumprimento da medida.
§ 2º Discordando, a autoridade judiciária fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante despacho fundamentado, e este oferecerá representação, designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la, ou ratificará o arquivamento ou a remissão, que só então estará a autoridade judiciária obrigada a homologar.
Art. 182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade judiciária, propondo a instauração de procedimento para aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar a mais adequada.
§ 1º A representação será oferecida por petição, que conterá o breve resumo dos fatos e a classificação do ato infracional e, quando necessário, o rol de testemunhas, podendo ser deduzida oralmente, em sessão diária instalada pela autoridade judiciária.”
A “representação” que o Estatuto da Criança e do Adolescente faz alusão nos dispositivos legais acima, em relação ao Ministério Público, diz respeito a ato equivalente à “denúncia” ofertada em face de uma pessoa (que porém, mira na imposição aqui de uma medida socioeducativa) e não à representação cautelar de internação provisória, via esta (representação por internação provisória) aberta a Autoridade Policial e ao Ministério Público numa leitura sistêmica do Código de Processo Penal. Harmonicamente não há espaço por questão de coerência, pensar diversamente destas soluções.
Não faz sentido alijar o Delegado de Polícia deste importante instrumento que é a representação policial por internação provisória, mormente quando notamos que nossos adolescentes de hoje estão envolvidos em infrações graves análogas como homicídio, roubo, extorsão mediante sequestro, ao tráfico de drogas, organização criminosa, entre outros.
Sendo assim, estabelecida a premissa de que os autos apuratórios de ato infracional é um procedimento investigativo singular presidido pelo Delegado de Polícia, que presenta a Polícia Judiciária, institutos com seus temperamentos devem ser prestigiados, inclusive aqueles previstos no Código de Processo Penal.
Dando seguimento, as regras do Código de Processo Penal são aplicáveis ao Inquérito Policial, procedimento investigativo destinados aos maiores e capazes, via de regra. Da mesma forma, as regras do Código de Processo Penal são aplicadas subsidiariamente aos autos apuratórios de ato infracional que é um procedimento investigativo singular presidido pelo Delegado de Polícia.
Isto resta mais evidente, quando analisamos a inteligência do art. 152, do Estatuto da Criança e do Adolescente:
“ECA – Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990
Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
[…]
Art. 152. Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.”
Com isto, fixado também o entendimento de que as regras do Código de Processo Penal aplicáveis ao Inquérito Policial são aplicadas subsidiariamente nos autos apuratórios de ato infracional, sinalizando com maior claridade a possibilidade de o Delegado de Polícia se valer de medida cautelar de internação provisória do adolescente em conflito com a lei.
Desta leitura, infere-se que o dispositivo acima seria aplicável subsidiariamente, por força do art. 152, do ECA. A aplicação subsidiária tem vez quando o diploma legal é silente e deixa o vácuo (não disciplina) ou insere o dispositivo, cuja redação diz aquém do que deveria, em situação que é necessária uma interpretação sistemática para dar logicidade ao caminhar procedimental.
No tocante à previsão abrigada no § 2º, do art. 282, do CPP, o doutrinador Paulo Rangel, defende a legitimidade da representação do delegado de polícia da seguinte maneira:
“A lei se refere às “partes” e não há partes no inquérito policial e quando ela se refere à investigação criminal somente legitima a autoridade policial, através da representação, e o Ministério Público, através de requerimento” (RANGEL, 2012).
Em tom de reforço a toda argumentação, referente à capacidade postulatória ou capacidade de representação do Delegado de Polícia, existe no seio do Código de Processo Penal, a possibilidade de prisão preventiva, em que o artigo 311 daquele diploma, autoriza a representação do Delegado de Polícia:
“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (Grifo Nosso)”
Há outras legislações extravagantes, para além do Código de Processo Penal, que expressamente legitimaram e deram capacidade ao Delegado de Polícia de buscar o Poder Judiciário, através de medidas cautelares, por meio de representação policial.
Nesse prisma, a Lei nº 7.960/89 disciplina sobre a prisão temporária, fixando no artigo 2º que:
“A prisão temporária será decretada pelo juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 05 (cinco) dias […]” (Grifo Nosso)
Dando sequência, a Lei 9.296/96 que regulamenta a interceptação de comunicações telefônicas, estabeleceu claramente a possibilidade de a representação do Delegado de Polícia buscar o Poder Judiciário para a medida de interceptação, senão vejamos:
“Art. 3º A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I – da autoridade policial, na investigação criminal […].”
Continuando as explanações, a Lei nº 11.340/06 (Maria da Penha), também prevê a possibilidade de representação do Delegado de Polícia ao dispor em seu artigo 20 a possibilidade de representação pela prisão preventiva, “in verbis”:
“Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial”. (Grifo Nosso)
Noutro quadrante, reforçando a possibilidade do delegado de polícia representar, a Lei 11.343/2006 capacitou ao delegado de polícia a possibilidade de representar pela apreensão e outras medidas assecuratórias de bens às infrações penais contidas na legislação em tela. O artigo 60 da lei possui o seguinte texto:
“Art. 60. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o Ministério Público, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias relacionadas aos bens móveis e imóveis ou valores consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma dos artigos 125 a 144 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.” (Grifo Nosso)
Dando continuidade às análises sobre a capacidade postulatória ou capacidade de representação do Delegado de Polícia, a lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro), conferiu a possibilidade de representação da delegado de polícia para decretação de medidas assecuratórias em seu artigo 4º:
“Art. 4o O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)” (Grifo Nosso)
A Lei de Organização Criminosa contempla a possibilidade de representação policial pelo Delegado de Polícia para infiltração de agentes policiais, colaboração premiada (em que outros diplomas também preconizam), captação ambiental, ação controlada, interceptação de fluxos telemáticos, quebra de sigilo financeiro, bancário e fiscal (assim como em outros diplomas) dentre outras medidas.
Sabe-se que a legislação analisada até o momento não encerra todas as previsões da capacidade postulatória ou capacidade de representação do Delegado de Polícia no ordenamento jurídico brasileiro, porém, fica clara a opção do legislador em conferir tal prerrogativa ao Delegado de Polícia.
Em levantamentos realizados ao longo da construção do texto, não se tem notícia de qualquer decisão judicial que tenha apontado inconstitucionalidade dos referidos artigos de lei que preveem o exercício da capacidade postulatória ou capacidade de representação pela Autoridade Policial.
Enquanto o Delegado de Polícia “representa” (mira representação) ao Poder Judiciário, o Promotor de Justiça (ou Procurador da República) vinculado ao Ministério Público “requer” (requerimento) determinadas medidas perante o Poder Judiciário.
Em nosso vernáculo, a expressão “representar” consiste em exibir; levar à cena, encenar, ser a imagem, o símbolo; a reprodução de algo, retratar, refletir, revelar, mostrar; servir para expressar, designar ou denotar (como uma palavra ou símbolo, por exemplo); simbolizar; expressar ou designar usando um termo.
Registramos que, a terminologia “representa” (representação) não foi utilizada inutilmente pelo legislador lá atrás quando da edificação do nosso Código de Processo Penal, porquanto a razão de ser, diz respeito pelo fato de o Delegado de Polícia não ser parte “interessada” na investigação dentro da ótica do direito processual penal, mas presidente da investigação que deve agir imparcialmente e de forma isenta.
Explicaremos melhor sobre o fato de o Delegado de Polícia não ser “parte” na investigação.
Como se sabe, na moderna concepção investigativa, o Delegado de Polícia é o presidente da investigação e não tem interesse em atuar, em prol da parte investigada (suspeito/acusado/investigado/adolescente em conflito com a lei) e nem em prol do Ministério Público (“dominis littis”), mas sim de buscar a verdade possível (antiga verdade real), com seus reflexos.
Deste modo, o requerimento dirigido e apresentado pelas partes em Juízo possui a acepção de pedido, pleito, postulação ou de solicitação. Decorrência lógica desta acepção de pedido, pleito, postulação ou de solicitação é de que nas hipóteses de indeferimento pelo órgão julgador, o interessado poderá interpor o recurso adequado nos termos da lei processual.
De outra banda, a “representação”, por não ter acepção de um pedido, pleito, postulação ou de solicitação, conforme já pontuado, acaba desdobrando numa provocação ou alerta qualificado da Autoridade Policial, pois somente as partes do processo pedem.
À guisa deste raciocínio, a representação policial objetiva uma provocação, recomendação, sugestão, alerta qualificado ou advertência formal perante o Poder Judiciário para determinada medida inerente aos atos investigatórios. Em outras palavras, a “representação” colima em exibir; levar à cena, encenar, ser a imagem, o símbolo; a reprodução de algo, retratar, refletir, revelar, mostrar; servir para expressar, designar ou denotar (como uma palavra ou símbolo, por exemplo); simbolizar; expressar ou designar uma situação em Juízo.
Ao representar em juízo, o Delegado de Polícia apresenta faticamente e juridicamente a situação deduzida em juízo, procurando evidenciar a necessidade da decretação de uma medida cautelar, assecuratória ou a adoção de outra medida de polícia judiciária indispensável ao caso investigado, a fim de obter um provimento jurisdicional, sob a cláusula de reserva de jurisdição.
Nesta direção, o delegado de polícia, Francisco Sannini, alerta sobre a capacidade postulatória imprópria conferida ao Delegado e Polícia, legitimatio propter officium, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo Delegado de Polícia, nos seguintes dizeres:
“Em outras palavras, a representação caracteriza-se como um meio de provocação do Juiz, tirando-o da sua inércia e obrigando-o a se manifestar sobre alguma questão sujeita à reserva de jurisdição. Desse modo, levando-se em consideração que o Poder Judiciário não pode agir de ofício, a representação serve de instrumento à preservação do próprio sistema acusatório. Trata-se, portanto, de um ato jurídico-administrativo de atribuição exclusiva do Delegado de Polícia e que pode ser traduzido como verdadeira capacidade postulatória imprópria.Advertimos, todavia, que, para a maioria da doutrina, a Autoridade Policial não dispõe de capacidade postulatória, uma vez que não teria legitimidade para recorrer no caso de indeferimento da medida representada (CUNHA; PINTO, 2014. Pp. 55-56). Com a “devida vênia”, discordamos frontalmente desse raciocínio. Ora, o fato de o Delegado de Polícia não ter legitimidade para recorrer apenas demonstra que ele não é parte no processo. Mas daí a negar a sua capacidade de provocar o Poder Judiciário nos parece haver uma certa distância.Isto, pois, conforme exposto, trata-se de uma capacidade postulatória imprópria, uma verdadeira legitimatio propter officium, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo Delegado de Polícia. A regra, de fato, é a de que as medidas cautelares sejam postuladas pelas partes. Contudo, nada impede que o legislador, do alto da sua soberania, confira uma legitimação extraordinária a uma autoridade que não seja parte no processo” (SANNINI NETO, 2015, p. 1, online).
Ainda sobre a capacidade postulatória conferida ao Delegado de Polícia, lecionam os delegados de polícia, Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Jaime Pimentel Jr.:
“Vale recordar que a capacidade postulatória do Delegado de Polícia é exercida via ‘representação’ e não simples ‘requerimento’, precisamente porque a Autoridade Policial não figura como parte na relação processual, funcionando como presidente imparcial da atividade de polícia judiciária” (MORAES; PIMENTEL JR, 2018, p. 38-39).
Não podemos descurar de um movimento institucional ministerial, que procurou a todo custo esvaziar algo que o próprio legislador positivou, em prol da sociedade e dos bens juridicamente tutelados (que foi outorgar ao Delegado de Polícia a prerrogativa de representar por medidas em juízo), tentando condicionar o agir da representação policial à aquiescência ministerial – o que se abraçada a tese, subverteria o sistema e equivaleria a deixar a sociedade, vítima e os bens jurídicos totalmente desguarnecidos.
Aliás, registramos respeitosamente que há uma divisão clara de tarefas fixadas constitucionalmente e, também, deve ser desvinculada qualquer relação principal-acessória defendida pela tese ministerial, a fim de querer condicionar o conhecimento e deferimento de representação do Delegado de Polícia, a aquiescência daquele “dominis littis”.
Verdadeiramente, não faz qualquer sentido no curso do inquérito policial retirar da esfera do Delegado de Polícia o entendimento de qual a medida a ser instrumentalizada para melhor aclarar a investigação, inclusive para a judicialização de medida cautelar de interceptação telefônica, captação ambiental, de busca e apreensão, quebra de sigilo bancário, dentre outras. Isso evidencia com clareza solar o acautelamento do próprio inquérito policial, com o acervo informativo e o acervo da prova produzida no seu âmago. Portanto, competirá ao Delegado de Polícia, por intermédio da representação policial, o ônus de demonstrar a necessidade e utilidade da medida judicializada mitigadora dos direitos do investigado/indiciado para que a mesma seja abraçada pelo juízo competente.
O delegado da polícia federal Marcio Alberto Gomes Silva aduz que
“[…] diz o arcabouço legislativo pátrio é que o MP ofertará parecer no bojo das medidas cautelares quando estas forem representadas pelo delegado de polícia, mas este não vincula a autoridade judiciária, que poderá deferir o pleito, mesmo diante de parecer contrário do do[sic] autoridade ministerial” (na linha do quanto decidido pelo STF no bojo da ADIN 5508). (SILVA, 2021, p. 473-475).
Todo este arrazoado demonstra que a representação policial do Delegado de Polícia, além de extrema importância na persecução penal e persecução infracional, não está vinculada e nem condicionada respeitosamente à aquiescência ministerial.
Logo, o raciocínio forçoso e lógico diante da leitura sistemática, conjugada com os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente com o Código de Processo Penal (aplicável subsidiariamente por força do art. 152, do ECA), é concluirmos pela possibilidade da Autoridade Policial representar por internação provisória do adolescente em conflito com a lei, e isso é reforçado quando voltamos os olhos para a lógica do Estatuto da Criança e do Adolescente com o Código de Processo Penal.
Das considerações finais
Por fim, por todo o arrazoado, independente da natureza jurídica – se estaríamos perante “capacidade postulatória imprópria” conferida ao Delegado e Polícia, “legitimatio propter officium”, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo Delegado de Polícia ou se estaríamos perante a “capacidade de representação” do Delegado de Polícia – a se atribuir a representação policial por internação provisória do adolescente em conflito com a lei viabilizada pelo Delegado de Polícia, fato é que a mesma tem o condão de provocar o Poder Judiciário a emanar determinado provimento judicial, frente a uma investigação em sede de ato infracional.
Em que pese à discussão sobre a legitimidade ou não de o Delegado de Polícia ter a permissão para representar ou não por internação provisória, fato é que se a Autoridade Policial pode representar pela prisão preventiva de um adulto pelo Código de Processo Penal (que é o mais e medida bem mais enérgica quando comparada com a internação), pode o menos também, até porque estaria em plena sintonia com o próprio Estatuto Menorista em vigor que é de primar pelo tratamento adequado ao adolescente em desenvolvimento com a medida cautelar da internação provisória, se presentes os requisitas e pressupostos autorizadores da medida.
Até por uma analogia em prestígio ao princípio do paralelismo (simetria) das formas com o Código de Processo Penal que é aplicado em sede de ato infracional por força do art. 152 do ECA, reforça e irradia a possibilidade de o Delegado de Polícia representar pela medida de internação provisória.
Por derradeiro, em momento alguma o art. 171 e seguintes do Estatuto do Adolescente impede de o Delegado de Polícia representar pela internação provisória ou elege um ator específico e exclusivo da persecução infracional para tanto (representar pela internação provisória do adolescente em conflito com a lei).
Referências bibliográficas:
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente Doutrina e Jurisprudência. 16ª Edição atualizada. São Paulo-SP: Editora Atlas S.A, 2015.
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR, Jaime. Polícia Judiciária e a Atuação da Defesa na investigação criminal. 2ª edição revista, ampliada e atualizada. Editora Juspodvim, Salvador: 2018.
SANNINI, Francisco. Qual a natureza jurídica da representação do Delegado de Polícia? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4238, 7 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33925. Acesso em: 27 out. 2022.
SILVA, Márcio Alberto Gomes. Pode o Delegado de Polícia representar diretamente medidas cautelares ao Judiciário, no curso do inquérito policial?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3396, 18 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22829. Acesso em: 27 out. 2022.
[1] Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas e autor de artigos jurídicos. Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso e lotado no GAECO da unidade desconcentrada de Barra do Garças-MT.