Direito Empresarial

Dos Atos Praticados oela Pessoa Jurídica com Excesso de Poderes e sua Oponibilidade A Terceiros

Dos Atos Praticados oela Pessoa Jurídica com Excesso de Poderes e sua Oponibilidade A Terceiros: Um necessário cotejo entre a teoria ultra vires e a teoria da aparência

 

 

Denis Donoso*

 

 

                        Pretendo, com este breve ensaio, tratar do polêmico e relevante assunto da validade dos atos praticados pela pessoa jurídica com excesso de poderes e sua validade em relação a terceiros.

 

                        Para tanto, traçarei resumidamente as posições existentes sobre o tema, propondo uma solução. Antes, contudo, falo das duas teorias existentes sobre o tema (ultra vires e aparência), porque concluirei pela mitigação de ambas.

 

                        De acordo com a chamada teoria ultra vires, construção doutrinária bem antiga, qualquer ato praticado em nome da pessoa jurídica, por seus sócios ou administradores, que ultrapassasse seus poderes, é nulo. Ao terceiro, caberia apenas mover ação contra aquele que extrapolou os limites sociais.

 

                        Em contraposição à teoria ultra vires, surgiu a teoria da aparência, mais modernamente, com caráter mais protetivo ao terceiro de boa-fé que contrata com a sociedade. Se o terceiro de boa-fé – tido por aquele que justificadamente desconhecia as limitações do objeto da sociedade ou de quem a “represente” – contrata com a sociedade, tem o direito de exigir o cumprimento da avença, ensejando à sociedade ação regressiva contra quem praticou o ato. Isto porque aparentemente, aos olhos do terceiro de boa-fé, não há vícios no ato.

 

                        Como se vê, para a teoria ultra vires, o ato praticado fora dos poderes delimitados é nulo. Para a teoria da aparência, ao contrário, é válido e obriga a pessoa jurídica.

 

                        Qual teoria foi acolhida pelo ordenamento civil vigente? Para alguns, adotou-se a teoria ultra vires; para outros, permanece a teoria da aparência; por fim, há quem veja um sistema misto.

 

                        Esta resposta decorre, a meu ver, da análise sistemática de dois dispositivos: os arts. 47 e 1.015 do Código Civil. Resume-se em saber se eventual cláusula de limitação imposta ao administrador nos atos constitutivos da sociedade tem eficácia erga omnes ou limitada à relação da sociedade com o administrador.

 

                        Para a primeira parcela de entendimento, a interpretação do art. 47, a contrario sensu, pode revelar que o atual diploma civil adotou a teoria ultra vires, ao contrário do que se entendia quando vigorava o antigo Código Civil[1]. Daí dizer-se que quando o administrador exceder de suas prerrogativas, a pessoa jurídica isentar-se-á das conseqüências do ato de seu administrador que, nesses termos, responderá pessoalmente pelos atos praticados[2].

 

                        Destarte, para esta primeira vertente, a cláusula limitativa de poderes teria eficácia erga omnes (desde que cumpridas as devidas formalidades, é dizer, o devido registro do ato).

 

                        Em segundo lugar, há quem entenda a manutenção da teoria da aparência – conforme posição consagrada na vigência do antigo diploma civil – de modo que as limitações estatutárias dos poderes de gerência não produzem efeitos externos, protegendo terceiros que contratem com a sociedade. Seus efeitos se restringem tão só entre a sociedade e seus representantes.

 

                        Esta segunda posição é adotada pelos direitos alemão e suíço. Entre nós, é defendida por NELSON ABRÃO[3], que assim se manifesta: Pelo exposto, verifica-se que prevalece hoje na doutrina o princípio da inoponibilidade a terceiros da cláusula restritiva dos poderes do gerente, sem prejuízo da responsabilidade deste pela infração dessas limitações, que possuem eficácia nas relações do gerente com os demais sócios. Ineliminável cláusula restritiva, cuja função se projeta no seio societário, mas que de forma alguma tem o condão de espalhar sua efetividade no tocante a terceiros. Não representa vulnerabilidade da empresa, ou desrespeito ao ato limitativo de seu exercício, mas simples modelo que os usos e costumes, na dinâmica dos negócios, consagram.

 

                        Finalmente – e esta é a posição que assumo – há a noção de que, embora realmente tenha havido um retrocesso em relação à teoria da aparência, não se pode afirmar que foi integralmente acolhida a teoria ultra vires.

 

                        A conclusão pode ser reforçada pelo que dispõe o art. 1.015, com o tempero de que no silêncio do contrato os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade, certo que o excesso por parte dos administradores só pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

 

I – a limitação estiver inscrita ou averbada no registro da sociedade;

 

II – provar-se que a limitação era conhecida do terceiro;

 

III – tratar-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

 

                        Da interpretação sistemática de ambos dispositivos legais (arts. 47 e 1.015), pode-se concluir que há liberdade para a prática de todos os atos pertinentes à gestão da sociedade. O terceiro, todavia, deve ter o cuidado de buscar no órgão específico (Junta Comercial) os atos constitutivos da empresa para se certificar da existência de alguma limitação (inciso I do art. 1.015).

 

                        Até aqui, parece mesmo que houve acolhida da teoria ultra vires. É de se ter em conta, contudo, que o inciso II do art. 1.015, ao que me parece, dá ensejo à aplicação da teoria da aparência (provar-se que a limitação era conhecida do terceiro), isto é, não havendo limitações expressas, vale a regra do caput (os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade), invertendo-se à empresa o ônus da prova da ciência da limitação pelo terceiro.

 

                        Por fim, o inciso III é regra extremamente conveniente, porque a prática operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade revela a má-fé dos contratantes, ao que se impõe ao terceiro o ônus da prova da regularidade do negócio.

 

                        Há que se ressaltar também, ainda no art. 1.015, a ressalva quanto à oneração ou venda de bens imóveis. Se tais atos (oneração e venda) não constituírem objeto social da empresa, sua prática depende do que a maioria dos sócios decidir.

 

                        Adicione-se, ainda, que o vício resultante da prática de ato que transcende poderes sociais pode se qualificar, atualmente, como anulável, é não nulo. Segue, pois, o regime jurídico daqueles vícios, inclusive quanto à possibilidade de ratificação do ato pela sociedade.

 

                        De ver-se, assim, que a teoria ultra vires veio consagrada pelo novo diploma civilista, mas não de forma absoluta.

 

                        A conclusão apresentada pode ser sintetizada pelo Enunciado 219, criado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal[4]: NCC, art. 1.015: Está positivada a Teoria Ultra Vires no Direito brasileiro, com as seguintes ressalvas: (a) o ato ultra vires não produz efeitos apenas em relação à sociedade; (b) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (c) o Código Civil amenizou o rigor da Teoria Ultra Vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade; (…)

 

                        A proposta apresentada consagra todos os valores que envolvem as atividades empresariais, tais como a dinâmica das relações, a segurança das relações jurídicas e a proteção equilibrada ao terceiro de boa-fé, tudo a conduzir a empresa ao desempenho de sua função social.

 

 

* Mestrando e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil no curso de graduação da Faculdade de Direito de Itu. Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil em cursos preparatórios para Magistratura e Ministério Público no Curso Robortella, em São Paulo. Membro do corpo docente da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor convidado no curso de pós-graduação “lato sensu” da Escola Paulista de Direito Social (EPDS). Professor de Direito Civil em diversos cursos preparatórios para o exame da OAB. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros na área jurídica. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

 

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[1] Neste sentido, embora com ressalvas: SILVA, Miguel Roberto da. A teoria ‘ ultra vires’ no Novo Código Civil. in Carta Forense, n.º 61, junho de 2008, p. 20.

[2] TALAVERA, Glauber Moreno. Comentários ao Código Civil. São Paulo: RT, 2006, p. 130.

[3] ABRÃO, Nelson. Sociedades Limitadas. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 160 e ss. (obra atualizada por CARLOS HENRIQUE ABRÃO).

[4] Extraído do texto de MIGUEL ROBERTO DA SILVA, op cit.

Como citar e referenciar este artigo:
DONOSO, Denis. Dos Atos Praticados oela Pessoa Jurídica com Excesso de Poderes e sua Oponibilidade A Terceiros. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/empresarial/dos-atos-praticados-oela-pessoa-juridica-com-excesso-de-poderes-e-sua-oponibilidade-a-terceiros/ Acesso em: 28 dez. 2024
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