Direito Empresarial

Caso Boi Gordo: Vergonha Nacional

Caso Boi Gordo: Vergonha Nacional

 

 

 

 

J. A. Almeida Paiva(1)

 

 

 

Tendo em mente a Constituição da República, vem-nos à lembrança o seu art. 133, que norma que: “O Advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

 

     No mesmo diapasão, o art. 2º e seus §§ do EOAB (L. 8.906/94) não deixa a menor dúvida quanto ao fato questionado: “O advogado é indispensável à administração da Justiça. No seu ministério, o advogado presta serviço público e exerce função social, constituindo um múnus público, sendo inviolável por seus atos”, princípio também renovado no art. 2º do Código de Ética, onde está consagrado que “O Advogado , indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da Advocacia, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce”.

 

     O grande e saudoso RUY DE AZEVEDO SODRÉ escreveu: “O Advogado exerce função social, pois ele atende a uma exigência da sociedade. Basta que se considere o seguinte: sem liberdade, não há advocacia. Sem a intervenção do Advogado, não há justiça, sem justiça não há ordenamento jurídico e sem este não há condições de vida para a pessoa humana.

 

     Aliás, do outro lado do mundo lemos o regulamento do Advogado japonês: “A missão do Advogado é proteger os direitos fundamentais humanos e realizar a justiça social”.

 

     Muito bem; sob a beca que nos transmitiu confiança em nossa atuação em prol da defesa social, orientada pelos ensinamentos e exemplos de São Luiz de França, São Tomás de Aquino, São Agostinho, Des Cressonières, Piero Calamandrei, Gneist, Henri Robert (o grande bâtonnier de França), Couture, Edgard de Moura Bittencourt, Mário Guimarães de Souza, Ruy de Azevedo Sodré, Rui Barbosa e uma infinidade de outros honrados e memoráveis nomes que ditaram a nossa conduta profissional, temos coragem de enfrentar o trato das relações humanas no palco do teatro Republicano.

 

     Os poderes da República são 3 (três), segundo o art. 2º da Carta Magna: Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

     Sem Justiça não há República, não há Democracia; vive-se num Estado anárquico, sem segurança, sem certeza, sem rumo.

 

     Quando a FRBG no dia 15-10-2001 requereu Concordata preventiva na longínqua Comodoro-MT, divisa da Bolívia, já sentindo no ar a possibilidade de um golpe que viesse prejudicar os mais de 30 mil investidores espalhados por todo o Pais e Exterior, não titubiamos um só momento; deslocamos para o Estado de Mato Grosso onde impetramos o Mandado de Segurança nº 2.607 junto ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso, objetivando trazer o processo para a Capital de São Paulo, o que efetivamente conseguimos após 10 (dez) meses de intensa luta nas batalhas judiciárias travadas não só no TJMT, como no STJ e no STF em Brasília.

 

     Sofremos pressões, ameaças (inclusive de morte); tentaram nos calar, impedir que advogássemos, que usássemos dos recursos que Deus nos deu para defender, como o fizemos com muito prazer, em defesa de milhares e milhares de vítimas do rombo da “Boi Gordo”; mas não conseguiram!…

 

     Na nossa luta contra a FRBG, em número de votos em todas as instâncias do Judiciário ganhamos de 60 a “zero”, o que prova que nossa tese estava correta. A Concordta veio para a Capital de São Paulo e aqui foi decretada a Falência da FRBG.

 

     Na Capital de São Paulo, pedimos a decretação da falência da FRBG e de suas coligadas; pedimos a publicação da listagem dos investidores no DOE, como imperativo da lei – fato que o Juiz de Comodoro-MT não deixou acontecer; entregamos à Justiça diversas contas que a falida mantinha no exterior, fornecendo-lhe comprovantes, com nome, nº, Banco, Agência etc…. mas na Capital de São Paulo o processo não andou com a mesma velocidade que estava tramitando na ilegítima, indevida e incompetente (juridicamente falando) Comarca de Comodoro-SP

 

     Já se vão 4 (quatro) longos anos e o processo propriamente dito, hoje tem cerca de 90 (noventa) volumes ou quase 20 (vinte) mil páginas, centenas de apensos e cerca de possivelmente 10, ou 15 mil Impugnações e Habilitações de Créditos (protocoladas ou a protocolar); permanece na MM. 1ª Vara Cível da Capital de São Paulo sem qualquer perspectiva de solução nos próximos 10 (dez) anos, haja vista que sequer foi publicado no DOE a lista dos credores como manda a lei e a sentença de quebra (abril/2004)…..

 

     A Vara está sem o seu Juiz titular, pois ele está convocado, prestando serviço no Tribunal; atuam na Vara Juizes Auxiliares, (em um ano passaram 6 ou 7) que ficam na Vara cerca de 3 (três) ou 4 (quatro) meses no máximo e são substituídos por outros, segundo determinação do Tribunal de Justiça (promoção, remoção ou pura substituição de rotina)…

 

     Se considerarmos que nas Varas cíveis da Capital de São Paulo, existem em cada uma, em média, uns 7.000 (sete mil) autos em andamento, (na 1ª Vara, onde está a Falência da FRBG tramitam 8.729 processos), processos de toda ordem (ordinária, despejo, cautelares em geral, petitória, possessória, falência, concordata, dissolução de sociedade, execução, mandado de segurança, procedimentos especiais etc) a Falência da FRBG e as das demais empresas do Grupo (quando um dia forem decretadas), representam um entrave, um problema que ninguém quer enfrentar e nem os MM. Juízes Auxiliares, (por mais boa vontade que tenham), conseguem examiná-la, pois para tanto teriam de parar sua atividade judicante para examinar, ler, entender e decidir o andamento de um procedimento falimentar da magnitude do “Caso Boi Gordo”, ao que consta a maior Falência do Pais; como fazê-lo se têm mais de 7 mil outros processos para despachar, instruir, decidir?!…..

 

     Trata-se de um processo de elevado impacto social, pois se considerarmos que a falida ao requerer sua concordata apresentou uma relação de 31.423 nomes de investidores, temos que destes, somente 84 (oitenta e quatro) ou seja, 0,2% têm créditos acima de 500 mil reais; 95,4% dos investidores, ou seja, 30.006 têm créditos abaixo de 200 mil reais; 89,6% (28.165 investidores) têm créditos abaixo de 50 mil reais.

 

     Trata-se de uma Falência de pequenos poupadores: de pessoas que aplicaram ou investiram nos CICs, (Certificados de Investimento coletivos), dinheiro que receberam de indenizações, de alienações de propriedades, de herança, de venda de carros, de pensões, de 13º salário, das mais variadas origens justas e legítimas, procurando auferir um rendimento pouco maior do que o da poupança, levados por propaganda que no fim se mostrou enganosa, servindo a falida até mesmo da grande audiência da Rede Globo, onde insinuou e estimulou, através da novela “Rei do Gado”, os investidores à compra do denominado “Boi de papel”.

 

     Os investidores foram enganados pelo próprio órgão controlador, a CVM, que deveria ter fiscalizado e exigido da FRBG a garantia hipotecária de bens imóveis, mas contentou-se com uma simples “Escritura de Promessa de hipoteca” apresentada por ela, sem nenhum valor jurídico…..; depois da casa arrombada vem ela dizer que cumpriu o seu papel. Como, quando?!…

 

     Fizemos mais ainda; entramos em contato com o ilustre ex-Governador de São Paulo, hoje Deputado Luiz Antônio Fleury (candidato à Presidência da Câmara dos Deputados), que abraçou a causa dos “Investidores da Boi Gordo”; foi à Tribuna da Câmara Federal em Brasília e denunciou ao Brasil o que denominou de “Golpe aos pequenos investidores”, com o desaparecimento de mais de um milhão de cabeças de boi… chegou a propor a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que por falta de interesse político certamente nunca será instaurada: está na fila!…

 

     Tudo isto já passou e o investidor, descrente, tem hoje no Judiciário sua última esperança.

 

     Mas parece que a Justiça, com os olhos vendados, não consegue enxergar o sofrimento de milhares de investidores que perderam tudo o que tinham; a maior parte nem mais esperanças tem!….

 

     Depois de 10 (dez) anos de tramitação no Congresso veio a lume a denominada “Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas” (L. 11.101 de 9/2/2005), que era a esperança para muitos; mas ela, expressamente, em seu artigo 192 excluiu de sua aplicação as falências ajuizadas e em tramitação antes de 09/6/2005, dentre elas a da FRBG que continuou normada pela lei antiga, o DL 7661/45, olvidando o legislador do princípio: lex prospicit, non respicit.

 

     Critério de formação de leis que fere normas constitucionais, que discrimina cidadãos brasileiros não são leis JUSTAS que devem ser aceitas; deve haver uma razoabilidade na sua interpretação!…

 

     Se falta sensibilidade ao legislador e ao executivo que a sancionou, não pode passar em brancas nuvens no Judiciário, ainda que sua função não seja legislar…

 

     Seguindo a toada da Lei 11.101/2005 o Tribunal de Justiça de São Paulo editou a Resolução 200/2005, remanejando 3 (três) Varas que passaram a ser especializadas só em Falências e Recuperação de Empresas; instaurou-se apenas duas delas, mas cometeu-se o erro e a injustiça de impedir que para estas novas Varas Especializadas, fossem os processos normados pela antiga Lei 7.661/45, como é o caso da Falência da “Boi Gordo” e de outros grandes processos que abarrotam as prateleiras dos Cartórios na Capital de São Paulo, sem nenhuma perspectiva de solução a curto ou médio prazo..

 

     Segundo fonte IEGV/ACSP divulgada na Gazeta Mercantil de São Paulo, edição de 23/8/05, com a chegada da Nova Lei 11.101/2005 o número de pedidos de falência caiu assustadoramente; em janeiro foram ajuizados 186 pedidos; em fevereiro, 284; em março, 334; em abril, 302; em maio. 328, em junho 339 e em julho (depois da entrada em vigor da Lei 11.101), apenas 68.

 

     Isto quer dizer que sendo apenas (2) duas as Varas especializadas, o número de processos que por lá irão tramitar será irrisório; em cada uma delas tem um Juiz especializado em Falências que se inscreveu para ser Titular e foi aceito; ele entende de Falência e só vai cuidar desta modalidade de procedimento, completamente diferente dos MM. Juizes Auxiliares que passam pela MM. 1ª Vara Cível da Capital (e demais Varas Cíveis), que não têm tempo para se dedicar exclusivamente à Falência, pois têm pelo menos mais 7.000 (sete mil) processos de toda natureza para processar e julgar.

 

     Tributa-se ao Tribunal de Justiça de São Paulo a responsabilidade por esta situação caótica, pois tem poderes e competência para solucionar a questão: é só fazer uso do disposto no art. 40 da Lei Complementar nº 762, de 30/9/1994 e resolver o problema que prejudica milhares e milhares de pequenos poupadores e atravanca o Judiciário Paulista.

 

     Não é possível tanta insensibilidade; alguma solução tem de ter, pois quando se trata de fazer Justiça, não se mitiga, não se pede, exige-se, pois sem JUSTIÇA pronta e eficiente, a República fica coxa de uma de suas pernas de sustentação, talvez a mais importante, o Judiciário; e sem Justiça, não há democracia; entra-se no caos, na desordem.

 

     O Judiciário tem o dever de estabelecer a paz, a harmonia, a tranqüilidade e a ordem social.

 

     Não foi inútil que COUTURE afirmou que o juiz é uma partícula da substância humana que vive e se move dentro do processo. E se essa partícula de substância humana tem dignidade e hierarquia espiritual, o direito terá dignidade e hierarquia espiritual. Mas, se o juiz, como homem, cede ante suas debilidades, o direito cederá em sua última e definitiva revelação; da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um pais e em momento histórico determinados, o que valham os juizes como homens. O dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.(2) .

 

     Se para VIRGÍLIO (3) “audaces fortuna juvent” devemos pensar com os franceses que “a quelque chose malheur est bom”; nem tanto ao formalismo iusnaturalista de STAMMLER, nem tanto ao formalismo moral de KANT.

 

     Mas, para que se tenha JUSTIÇA preferimos invocar LUIS RECANSENS SICHES, para quem “los conflictos concretos de interesses y las situaciones sociales em que tales antagonismos surgem, dependem de las necesidades o los deseos que las gentes sientan; dependen de la maior o menor abundancia de médios naturales o técnicos para la satisfacción de esos deseos o necesidades; dependem de las creencias o convicciones sociales vigentes sobre lo que es justo, sobre lo que es decente y sobre lo que es honesto; dependen de las aspiraciones colectivas que vayan prendiendo en el ánimo de la mayor parte de las gentes”.(4)

 

     VICENTE RÁO, lembrando IHERING, em sua Luta pelo Direito, recorda que “a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo; na verdade, esta luta há-de durar enquanto o mundo dure, porque o direito sempre terá de se precaver contra os ataques da injustiça. A luta não é, pois, de modo algum, estranha ao direito, mas é, antes, uma parte integrante de sua natureza, uma condição de sua idéia, Todo direito, no mundo, pela luta se adquiriu.”(5)

 

     Ao contrário do que pregou NORBERTO BOBBIO ao afirmar que “lo stato moderno liberale e democratico à nato della reazione contro la Stato assoluto” (6) o que vemos hoje em dia é que no Estado Democrático Moderno, há tanto absolutismo, de idéias e de ações, que chega a comprometer a síntese da teoria política do ideal democrático que os homens livres sonharam.

 

     Assim é o “Caso Boi Gordo” na Capital de São Paulo, com reflexos em todo o território nacional e no exterior, onde têm investidores!…

 

     Se as pessoas responsáveis pela distribuição da JUSTIÇA e solução dos conflitos e interesses sociais não tiverem este ânimo e esta aspiração de manter o equilíbrio sócio-econômico entre os jurisdicionados, a paz social, dando a cada um o que é seu, sem medo e sem destemor, sem demora e sem postergar soluções, um processo judicial que leva 10 (dez), 20 (vinte) ou mais anos para ter solução, como acontece na Capital de São Paulo, com todo respeito aos responsáveis pela criação e aplicação das leis, será sempre uma vergonha nacional.

 

São Paulo, 25 de setembro de 2005.

 

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(1) J. A. Almeida Paiva, Advogado em São Paulo, Professor de Processo Civil, com Mestrado na PUC/SP.

 

(2) EDUARDO J. COUTURE: Las garantias constitucionales Del processo civil.

 

(3) VIGÍLIO, Eneida, X, 284.

 

(4).LUIS RECANSENS SICHES, “Tratado General de Filosofia del Derecho, Ed. Purrua, Mexico, 1975, p. 227.

 

(5) – VICENTE RÁO, “O Direito e A Vida Dos Direitos”, 2º vol., 2ª Tiragem, Ed. Max Limonad, São Pulo, pág. 411.

 

(6) -NORBERTO BOBBIO, “Diritto e Stato nel Pensiero di Emanuele Kant”, G. Giappichelli – Editore – Torino, 1969, p.14.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
PAIVA, J. A. Almeida. Caso Boi Gordo: Vergonha Nacional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/empresarial/caso-boi-gordo-vergonha-nacional/ Acesso em: 08 out. 2024
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