Insigne inteligência da Contabilidade européia, o doutor Armandino Rocha, da Universidade do Minho, escreveu que o perigo das normas é o de embotar o raciocínio (matéria inserida na obra História da Contabilidade em Portugal, do mestre Joaquim Fernando da Cunha Guimarães); em assim afirmando o doutor Armandino estava a endossar o que Einstein igualmente tanto criticou quanto aos caminhos da cultura normativa nos Estados Unidos no início da década de 20 (na obra Como Vejo o Mundo).
De fato, na afoiteza de regulamentar muito erro é possível cometer, requerendo o assunto o comedimento que com adequação a diretora de normas do Banco Central Silvia Marques referiu em relação ao movimento normativo nacional; a mencionada dirigente ao alegar que um estudo profundo será requerido e por isso não se estava ainda impondo as IRFS no Banco Central do Brasil (matéria difundida pelo Valor Econômico, de 25/09/2009) pronunciou-se com sabedoria; há plena coerência nisso com o que está a ocorrer em outras nações, tal como a imprensa internacional não comprometida tem difundido.
Segundo a afirmação referida infere-se que a falta de prudência e a sobra de uma avalanche normativa pode resultar em sérias imperfeições; o que vem ocorrendo desde as marchas e contra marchas derivadas da lei 11.638/07, afoitamente votada no apagar das luzes de um ano, já dá mostras de falhas em matéria tecnológica; a quase totalidade dos colegas com os quais tenho tratado sobre o assunto é unânime em queixar-se da precipitação e má redação do normatizado.
Como o entender de texto pode gerar questionamento e análise ácida, causa deveras apreensão o que a Comissão de Valores Mobiliários fez publicar em dezembro de 2008 relativo a tema de rara transcendência; para nós contadores a questão é deveras preocupante porque pode vir a ferir o que por dever ético somos obrigados a cumprir quanto a informação destinada a terceiros.
O artigo1º, da Instrução CVM Nº 475, de 17 de dezembro de 2008 literalmente assim se acha expresso: “As companhias abertas devem divulgar, em nota explicativa específica, informações qualitativas e quantitativas sobre todos os seus instrumentos financeiros, reconhecidos ou não como ativo ou passivo em seu balanço patrimonial.”
Como entender: “reconhecido ou não como ativo ou passivo no balanço patrimonial”? É possível não reconhecer fatos patrimoniais e adotar nota explicativa?
Aparentemente o texto parece evocativo de um rigor para informação, mas, tecnicamente é questionável por aceitar perigosa alternativa.
Isso porque transfere para “notas explicativas” o que deveria estar inserido no regime contábil, posto que informações qualitativas e quantitativas, em sentido genérico como se acha no texto, pode ensejar interpretação de que se possa não colocar em contas o que se substituiria por uma “nota explicativa”.
A simples probabilidade de acontecimento patrimonial, positivo ou negativo, ainda que não concreto, deve merecer registro em conta de probabilidade e que é a de compensação.
Ademais, a expressão “instrumentos financeiros” não deixa dúvida de que se refere a fatos patrimoniais, logo, obrigatoriamente registráveis por processo contábil; nota explicativa não é conta e nem a substitui.
A CVM expressa ostensivamente na Instrução referida que adota o conceito do CPC que define: “Instrumento financeiro é qualquer contrato que origine um ativo financeiro para uma entidade e um passivo financeiro ou título patrimonial para outra entidade”.
Embora a definição acolhida seja suscetível de alguma critica o fato de referir-se a algo que origine ativo para um e passivo para outro ente, que ligue um patrimônio a outro ou o condicione, obriga registro em conta, segundo os procedimentos da tecnologia contábil.
Há, pois, no caso, uma abertura injustificável, ligada ao processo que se está copiando, sob a alegação de “convergência”, como se não bastasse o mal que as normas já fizeram, cooperando para criar problemas no mercado e a crise atual, não impedindo pudessem ocorrer informações de ativos podres, resultados fantasiosos e manipulações de ajustes.
Um fato como o referido deve obrigatoriamente, ainda que o ativo não se tenha formado, mas exista probabilidade de ocorrência, ser registrado em contas de compensação; isso é inequívoco.
Se substituir registro em conta por nota explicativa é uma “nova Contabilidade” como dizem estar existindo, que apelemos para a “velha”, mas, que não permitamos possa nosso País ser fonte de fatos que a tantos outros vitimou e continuará a fazê-lo, enquanto não se criar um regime deveras eficaz contabilmente.
Mesmo aplicando poucos neurônios, sem ter cultura altamente refinada, é possível concluir que se houve crise financeira é porque o falseamento de informes permitiu e se esse se deriva de regulamentações normativas são estas responsáveis por esse estado indesejável; ingênuo ou falso é admitir que alguém possa investir em uma empresa que possua ativos podres e resultados fictícios.
Como a matéria tecnicamente está ligada aos elementos patrimoniais que provocaram a grande crise mundial (derivativos, hedges e afins) tudo que aqui foi referido poderá ensejar riscos provenientes de falhas técnicas de natureza contábil.
* Antônio Lopes de Sá, Nível Superior Máximo: Doutor em Letras, honoris causa, pela Samuel Benjamin Thomas University, de Londres , Inglaterra, 1999. Doutor em Ciências Contábeis pela Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, 1964.