Uma leitura vitimológica do caso TIM LOPES: retrato do abandono das vítimas criminais no Brasil
Lélio Braga Calhau*
Na data de 07 de agosto de 2002, a TV Globo divulgou o resultado das investigações do caso do assassinato do jornalista “Tim Lopes”. As conclusões da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro apontando culpa, também, por parte da vítima espelham a triste realidade das vítimas criminais no Brasil.
Estamos num país em que o criminoso pode quase tudo. Vivemos uma realidade onde as polícias são mal remuneradas e não se entendem. As agências estatais de controle da criminalidade não conseguem atingir nem 1% dos crimes ocorridos e estão, na maioria dos casos, brigando entre si e mais preocupadas com a forma do que com seus principais objetivos. Nessa realidade já tanto escrita e reescrita, uma verdade não pode se calar. É a que trata do destino da vítima criminal no Brasil. Aqui no Brasil, o descaso do Estado com a vítima já começa com a desconfiança que a polícia tem na vítima. Aliás, o primeiro suspeito de um crime acaba sendo a própria vítima. Se teve um carro furtado, a pergunta era por que deixou o carro ali, por que não tinha seguro; se sua casa foi furtada, por que não tinha vigia, por que você viajou; se um trombadinha assalta uma mulher, por que você andava com bolsa?
Vítimas afirmam que inúmeras vezes foram mais maltratadas por policiais de que pelos criminosos, aliando-se a isso uma constante indiferença: por que não colocou um ferrolho na porta? (E o arrombamento foi pela janela); como pode ir veranear sem deixar um vigilante tomando conta da casa? Por que não guardou uma relação de suas jóias e pertences ? Você não foi o único assaltado; temos uma quantidade enorme de queixas a apurar etc (1).
Urge uma reflexão imediata por parte das autoridades quanto ao tratamento prestado à vítima nas delegacias de polícia, secretarias criminais e nas promotorias de justiça. Vítima não é testemunha. As vítimas não devem continuar a serem tratadas como objetos de direito, e sim, sujeitos de direito. Sem embargo do tratamento humano e digno para a pessoa, o mau atendimento à vítima, não poucas vezes, leva ao fracasso da investigação e repressão à delinqüência, já que a informação preliminar pode derivar duma obtenção por forma errônea, precipitada ou decorrente da situação na qual a vítima foi colocada que a inibe ou impede de direcionar fatores relevantes para a persecução penal. Aliás, isso é muito comum hoje em dia, em vista da total ineficiência estatal para a securidade social, levando ainda, em número considerável, pessoas a não comparecerem sequer para comunicarem os fatos dos quais foram vítimas (02).
A vítima é incentivada no Brasil a não procurar a Polícia, por conta do próprio tratamento que recebe quando procura ajuda do Estado. É um mal exclusivo da Polícia ? Claro que não. Procure um promotor, ele te manda na Polícia; procure um juiz, ele te manda no promotor; procure o policial militar; ele te manda no delegado; procure o delegado e você será encaminhado ao promotor etc.. Além do “empurra-empurra”que o Estado faz com a vítima criminal no Brasil, você ainda encontra a desconfiança da Polícia na vítima, o que só serve para acarretar mais impunidade em nosso país. Esse sofrimento causado pelo descaso do Estado é chamado de vitimização secundária.
A sociedade civil deve buscar participar de forma imediata no problema das vítimas. O Estado deve fomentar, através de subsídios, a criação de organizações não governamentais que dêem assistências às vítimas criminais. Vários países, entre eles, Estados Unidos, Nova Zelândia, Inglaterra e Portugal, possuem organizações que prestam grande assistência às vítimas, inclusive em nível jurídico, psicológico e social. A sociedade para atingir o valor básico de dignidade da pessoa humana, também deve zelar pelos direitos das vítimas. Isso pode ser feito promovendo a criação de entidades, tais como as associações de proteção às vítimas existentes nos Estados Unidos, subsidiando-as com fundos provenientes das multas aplicadas no sistema criminal brasileiro.
descaso para com a vítima passa não só pelo fato de que os crimes, em sua grande maioria, têm como sujeito ativo pessoas de parcos recursos materiais, impossibilitando efetiva reparação, mas também porque a própria vítima desconhece a importância da reparação como fator de prevenção criminógena e não raro dispensa essa reparação (03). Recentemente tivemos o advento da Lei Federal 9.807/99 que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (04). Muito tímida no trato da questão das vítimas, a referida lei vem sendo mais aplicada na proteção das testemunhas.
O assassinato de Tim Lopes e seu tratamento pelo Estado retrata a realidade das vítimas criminais em nosso país. Não foi só com “Tim Lopes”. Acontece todo dia, em todos os Estados e com nossos amigos, colegas, conhecidos, desconhecidos, próximos ou não, etc… Por fim, é de se registrar que tive a oportunidade de publicar recentemente uma pesquisa dobre o tema pela Editora Mandamentos de Belo Horizonte (MG), com o título Vítima e Direito Penal, sendo que os interessados em conhecer melhor a situação da vítima criminal em nosso país poderão naquela obra encontrar subsídios para uma melhor compreensão da matéria.
Referências Bibliográficas:
(01) Essas expressões demonstram que a vítima é interrogada ou inquirida indiferentemente ou sem qualquer contemplação como se fosse culpada pela violência sofrida. Responsabilizar a vítima pelo que sofreu amplia enormemente a agonia psíquica, como se fosse uma nova agressão. LEÃO, Nilzardo Carneiro. Violência, Vítima e Polícia. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 11, Brasília, Ministério da Justiça, janeiro-junho de 1998, p. 89.
02) PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. O impedimento a vitimização secundária pela polícia e justiça. Disponível na Internet: http://www.direitopenal.adv.br.
(03) FELIPETO, Rogério. Reparação do dano causado por crime. Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 143.
(04) Sobre essa lei ver: MIGUEL, Alexandre; PEQUENO, Sandra Maria Nascimento de Souza. Comentários à Lei de proteção das vítimas, testemunhas e réus colaboradores, São Paulo, RT 773, 2000, p. 425-443.
* Criminólogo. Professor de Direito Penal da UNIVALE – Universidade do Vale do Rio Doce. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ).
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