O Recurso em Sentido Estrito e a Decisão de Desclassificação.
Jayme Walmer de Freitas *
Introdução:
Ao término da fase do sumário da culpa, compete ao Juiz Sumariante julgar o fato doloso contra a vida exarando uma decisão de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação.
Dessas decisões, havendo interesse processual aliado à sucumbência e observando-se as formalidades legais, poderá a parte legitimada interpor recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, incs. IV e VI), no efeito meramente devolutivo.
Silenciou-se, contudo, o legislador pátrio, acerca do recurso cabível contra a decisão desclassificatória, em crimes de competência do Júri.
Contudo, após muitos debates, a doutrina e a jurisprudência firmaram posicionamento quase que único, de que o recurso cabível, identicamente aos demais decisórios, seria o recurso em sentido estrito.
Considerando que o Código de Processo Penal adotou o Princípio da Irrecorribilidade das decisões interlocutórias, as previsões do art. 581 são tidas como exceção a essa regra. De tal sorte que o dispositivo traz um rol taxativo, inadmitindo ampliação.
Vem se admitindo, porém, a interpretação extensiva para se inserir novas hipóteses, cuja situação esteja implícita na previsão legal. Ou seja, desde que verse situação equivalente.
Lecionam os mestres que ocorrerá interpretação extensiva, onde observada uma imprecisão ou insuficiência legal, corrige-se a expressão verbal da norma por reconhecer que a regra já previa a situação, mas não foi clara na redação. Consiste em por em realce regras e princípios não expressos, porém contidos implicitamente nas palavras do Código[1].
Partindo-se dessa premissa, a doutrina e a jurisprudência passaram a considerar, v.g., como abrangida pelo art. 581, inc. I, a decisão que rejeita o aditamento da denúncia ou queixa, bem como o despacho que recebe a denúncia com capitulação diversa daquela indicada pelo MP ou querelante, por equivalerem a uma rejeição da inicial.
Este princípio foi aplicado à decisão desclassificatória de crimes dolosos contra a vida.
A questão do inciso cabível e suas repercussões.
Existindo uma sintonia generalizada acerca do recurso cabível, divergem os doutrinadores e a jurisprudência, fundamentalmente, sobre a motivação recursal.
Alguns doutrinadores entendem que o recurso deve se fundar no inc. II, porque a decisão monocrática é meramente processual[2], outros defendem que o correto é o inc. IV, porque a decisão assemelha-se à impronúncia[3].
Embora o primeiro posicionamento tenha mais adeptos na Doutrina, o segundo, permissa venia, é o mais ajustado à voluntas legis, conforme passamos a expor.
A decisão de desclassificação, embora de natureza interlocutória, não é dotada de cunho estritamente processual. Ao desclassificar um crime, o Juiz processante fá-lo após findada a instrução processual, não ex officio como nas situações abarcadas pelo inc. II. Observado, plenamente, o princípio do contraditório e aferida, por completo, a inexistência do animus necandi (na ótica daquele Magistrado), é afastada a ocorrência do crime contra a vida. O Juiz debruça sobre o Mérito da pretensão. No inc. II, a decisão judicial de incompetência do Juízo, é meramente perfunctória caso comparada com a decorrente do judicium accusationis, pois não há avaliação probatória, sendo decidida de ofício, sem provocação das partes.
Mas não é só. Um segundo fator e, a nosso ver, o preponderante, em termos de definição legal sobre o inciso aplicável, reside na instrumentalização do recurso. Por exigência legal, caso adotado o inc. II, o recurso subirá por instrumento; se adotado o inc. IV, subirá nos próprios autos, à similitude da impronúncia (CPP, art. 583, inc. II).
Analisando-se o art. 583, e seu inc. II, tem-se que as decisões de pronúncia, impronúncia e absolvição sumária, sobem nos próprios autos. Será vontade da lei que a decisão desclassificatória suba por traslado? A resposta é negativa, pois mostra-se clara, no contexto, a intenção da lei em tratar semelhantemente as questões relativas aos crimes contra a vida.
A interpretação extensiva e a teleológica mostram direção oposta.
Se o recurso em sentido estrito das decisões proferidas ao término da primeira fase, nos crimes contra a vida, sempre sobem nos próprios autos e por interpretação extensiva[4], em face da omissão legislativa quanto à decisão desclassificatória, não se pode adotar procedimento diverso. Assim, conquanto a desclassificação tenha também cunho processual, a decisão judicial apreciou o mérito, e, por extensão, aplicável o inciso II do art. 583, devendo o recurso subir nos próprios autos[5].
Leciona Damásio que a interpretação lógica ou teleológica consiste na indagação da vontade ou intenção objetivada na lei. Ao analisar os elementos da interpretação faz menção ao elemento sistemático e à ratio legis. Pelo método sistemático, ensina, deve o intérprete cotejar o preceito interpretado com os de outras normas que regulam o mesmo instituto, ou com o conjunto da legislação e mesmo com os princípios gerais do direito. Pela ratio legis busca-se o escopo prático da norma, a sua razão finalística, que é alcançada pela consideração do bem ou interesse jurídico que visa proteger[6].
Subindo o recurso nos próprios autos tem-se sintonia com a teleologia adotada para o procedimento recursal e para com os crimes contra a vida. Como na fase processual inicial dos crimes contra a vida, denominada de formação da culpa, vige o princípio in dubio pro societate, e os recursos das decisões proferidas nos procedimentos do Júri (excetuada a desclassificação, por lacuna da lei) sobem nos próprios autos (art. 583, II), justamente para se evitar o prosseguimento da persecução penal no juízo a quo, sem confirmação superior, posto que se discute o mais valioso bem jurídico, a vida, depreende-se que o intuito do legislador foi idêntico, isto é, que o recurso suba nos próprios autos, sem efeito suspensivo.
Adotando-se posição diversa (inc. II) pode-se chegar a decisões conflitantes entre o juízo de primeiro grau que processa o feito desclassificado e o Tribunal que decide o recurso, que subiu por traslado, e gerar prejuízos gravíssimos ao réu ou mesmo à acusação. Afigure-se o exemplo do Juiz de primeiro grau que recebe o feito desclassificado e exara sentença condenatória (lesão corporal grave ou gravíssima, por exemplo), determinando a clausura do réu, antes do acórdão do Tribunal, sobre recurso interposto contra a sentença desclassificatória, que acaba por impronunciar o acusado. Nesta situação o dano ao réu é irreparável, posto que atingiu o jus libertatis do cidadão. De outra parte, pode sobrevir ofensa aos interesses da Acusação, na medida que o Tribunal pronuncie o réu. A causação de lesão desta ordem ofende aos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório. Representa uma quebra da harmonia alvitrada pela voluntas legis, repito.
Como o recurso não tem efeito suspensivo, o Juiz que recebe o feito desclassificado não tem motivos legais para aguardar o julgamento de recurso interposto. Subindo nos próprios autos, aparam-se injustiças técnicas e de ordem prática que afligem a acusação ou a defesa, sem a menor espécie de dano ou lesão às partes e, por conseguinte, aos preceitos constitucionais de igualdade das partes.
Conclusão
Do exposto, conclui-se que o recurso em sentido estrito da decisão de desclassificação, em processos de competência do Júri, levando-se em conta as interpretações extensiva e lógica, é aquele previsto no inc. IV, por se assemelhar à impronúncia, devendo subir nos próprios autos.
* JAYME WALMER DE FREITAS é juiz criminal em Sorocaba/SP, mestre e doutorando pela PUC/SP. Professor de Direito Penal, Processo Penal e de Leis Especiais. Autor de artigos e dos livros Prisão Temporária e OAB – 2ª Fase – Área Penal, ambos pela Editora Saraiva. Coordenador da Coleção OAB – 2ª Fase, pela mesma Editora. Palestrante. Professor da Escola Paulista da Magistratura e de Leis Especiais da Rede LFG. Coordenador do curso de atualização e capacitação profissional da Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI). Foi coordenador pedagógico do Curso Triumphus – preparatório para Carreiras Jurídicas e Exame de Ordem, por 14 anos.
[1] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Apicação do Direito, 8ª Ed., Livraria Freitas Bastos, 1965, p. 211.
[2] Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal Comentado, Saraiva, 2ª ed., 1997, p. 581; E. Magalhães Noronha, Curso de Direito Processual Penal, Saraiva18ª ed., 1987, p. 351; Hermínio Marques Porto, Júri, Malheiros, 1994, p. 78; Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, Recursos no Processo Penal, 1996, RT, p. 175; Adriano Marrey, Alberto Silva Franco e Rui Stoco, Teoria e Prática do Júri, Revista dos Tribunais, 1994, p. 174; e outros. Tourinho discute a semelhança com a impronúncia pois nesta há decisão terminativa, só podendo ser instaurado outro processo com novas provas, enquanto, na desclassificação, há decisão sobre competência, tendo o processo continuidade no juízo comum (ob. cit., p. 173).
[3] Paulo Lúcio Nogueira, Curso Completo de Processo Penal, Saraiva, 10ª ed., 1996, p. 436; Júlio Fabbrini Mirabete, Processo Penal, Atlas, 1994, p. 596.
[4] Carlos Maximiliano, em sua magnífica obra Hermenêutica e Aplicação do Direito, Freitas Bastos, 1965, bem analisa a questão ao dizer que a interpretação extensiva “completa a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito explícito, embora não se compreenda na letra deste….. busca o sentido amplo de um preceito estabelecido… a própria regra se dilata. Em resumo: a interpretação revela o que a regra legal exprime, o que da mesma decorre diretamente, se a examinam com inteligência e espírito liberal” (p. 227).
[5] RT 540/298, in verbis: “A decisão que, nos crimes contra a vida, opera a desclassificação do delito, equivale à de impronúncia, de vez que tanto uma como outra envolvem a subtração da causa à apreciação do Júri”.
[6] Damásio E. de Jesus, Direito Penal, Saraiva, 16ª ed., 1992, p. 32.