1 No direito penal pré-moderno
Os primeiros discursos legitimadores do direito penal surgiram durante a Idade Antiga com Protágoras e Platão. Platão foi o primeiro a desenvolver a idéia de que “o infrator é inferior devido à sua incapacidade de acender ao mundo das idéias puras e, quando esta incapacidade é irreversível, ele deve ser eliminado”.
A teoria legitimadora do tratamento diferenciado para o inimigo baseava-se em emergências, ou seja, ameaças a sobrevivência da sociedade. A guerra se faz necessária para neutralizar a emergência. O direito penal se reduz a medidas administrativas de coerção direta. Isso significa que toda infração é uma agressão real e por isso, o poder punitivo age como se estivesse em legítima defesa.
As emergências começaram a ser teorizadas na Idade Média, pelos demonologistas, criminólogos medievais. Essas emergências forma compiladas em uma espécie de manual de diagnóstico de bruxas, chamado Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas). Esse manual é considerado como a primeira extensa teorização da criminologia etiológica.
Na Idade Média, com as inquisições, o discurso legitimador do direito penal recebe um caráter teocrático/biológico. Teocrático por considerar que o inimigo era uma ameaça por ser seguidor do Satã; biológico por considerar a mulher como inferior e mais vulnerável à tentação maligna. No processo penal medieval, os inquisidores tinham, ao mesmo tempo, a função de defensor, acusador e juiz.
A função do poder punitivo medieval era manter a autoridade da Igreja Católica. No início, os inimigos eram os dissidentes. Com a quase extinção dos dissidentes, o inimigo passou a ser as mulheres consideradas bruxas. Depois, com a Contra-Reforma, o inimigo passou a ser os hereges luteranos. Surge aí a seletividade.
A seletividade era legitimada com o discurso de que a pena tinha como função a prevenção geral positiva, discurso encontrado nas obras de Jean Bodin e Thomas Hobbes. Segundo Bodin, nem todos os crimes precisavam ser punidos, pois se apenas um a cada dez recebesse punição, a pena já estaria exercendo sua função preventiva, uma vez que as execuções serviriam de exemplo.
2 No direito penal Moderno
Na Idade Moderna, o caráter teocrático/biológico é retirado do discurso, retornando ao idealismo platônico. Teorizado por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o discurso penal passa a se basear na auto-consciência, uma vez que para ele, “toda relação jurídica pressupõe uma liberdade da vontade”.
Segundo Hegel, um indivíduo só possui livre-arbítrio quando atua no complicado contexto social da propriedade privada e relações, contratos, compromissos morais, vida familiar, economia, sistema legal, etc. A partir do momento que o indivíduo não participa desses aspectos da vida do Estado, ele não tem relevância jurídica, não podendo assim, cometer delitos, sendo considerado apenas alguém perigoso, “como um animal que escapou do zoológico”.
No século XIX, após alcançar a hegemonia, a burguesia abandona o discurso penal elaborado por juristas e filósofos e retorna ao positivismo criminológico. O direito penal é novamente reduzido às medidas administrativas de coerção direta e o inimigo volta a ser tratado como biologicamente inferior, assim como no caso das bruxas, mas agora o inimigo passa a ser o indivíduo pertencente a uma etnia não suficientemente evoluída em relação ao europeu. Para o positivismo, o inimigo não é selecionado pelo sistema, mas sim pela natureza devido à sua inferioridade, que por ser imutável, deixava como única alternativa a eliminação do inimigo.
Surge a periculosidade, teorizada por Rafael Garofalo, que afirmava que a sociedade deveria executar uma espécie de seleção “natural” eliminando o inimigo, pois para ele, “mediante uma matança no campo de batalha a nação se defende de seus inimigos externos; mediante uma execução capital, de seus inimigos internos”.
Franz von Liszt dizia ser inviável a matança em massa dos incorrigíveis e por isso defendia a pena privativa de liberdade. “A sociedade deve proterge-se dos irrecuperáveis, e como não podemos decapitar nem enforcar, e como não nos é facultado deportar, não nos resta outra saída senão a privação de liberdade por toda a vida”.
Entretanto, o inimigo não era apenas o criminoso grave, mas também o criminoso indesejável, como os pequenos ladrões, prostitutas, homossexuais, bêbados e outros que mais tarde foram classificados como praticantes da má vida.
Surgem as medidas de segurança, criadas por Carl Stooss, discípulo de Hegel. O indivíduo não era julgado por sua conduta, mas sim por seu estado de periculosidade, ou seja, por ter a tal má vida. As medidas de segurança eram penas sem os limites e as garantias das penas.
O direito penal passou a ter um caráter duplo, uma vez que a pena era aplicada aos iguais e a medida de segurança ao inimigo.
3 No Direito Penal pós-moderno
A teoria de Stooss foi aplicada no código penal fascista de 1930, conhecido como Código Rocco, significando a extensão das penas por tempo ilimitado. O Código Rocco influenciou o código penal brasileiro de 1940 e as medidas administrativas foram usadas como justificativa para ignorar os limites penais da Constituição, que proibia penas privativas de liberdade acima de 30 anos. Afirmava-se que o código não violava os limites, uma vez não se tratavam de penas, mas sim de medidas.
Com Edmund Mezger e Franz Exner, surge a teoria de que o inimigo deveria ser eliminado em campos de concentração. Com o advento do nacional-socialismo alemão, essa teoria foi aplicada com a adição do anti-semitismo.
O discurso legitimador de Mezger era o de que “uma atitude que não está de acordo com a sã instituição do povo em relação ao que é justo e ao que é injusto, de modo que, em condições normais, ela não deva motivar desculpas, mas, pelo contrário, configurar o fundamento da punição”. O inimigo volta a ser o indesejável praticante da má vida.
Surge então o princípio defensivista, criado a partir das idéias do catedrático Filippo Grispigni. Ele dizia que o nazismo nada mais fez do que consagrar a escola positivista, eliminando seus inimigos em defesa do povo alemão.