No ultimo dia 21 de maio, segundo foi amplamente noticiado pela imprensa, uma adolescente de 16 anos foi estuprada por cerca de trinta homens. A notícia e os detalhes do fato são bem tristes (aquela de ser lida e estes de serem conhecidos), pois nada pode ser tão brutal do ponto de vista do próprio sentido de humanidade. Esse fato não fere somente a mulher (no sentido de gênero), mas a própria razão de ser da existência humana. Fere a “alma humana” ou, como diriam alguns, a natureza humana (?). A vítima poderia ter sido uma pessoa do sexo masculino: travesti, transexual, homossexual, heterossexual. Não importa: em qualquer caso teria havido uma barbárie.
Creio que uma das violências mais cruéis contra alguém (se assim é possível falar), trata-se de forçar outrem a fazer aquilo que há de tão sublime e belo na existência humana: propiciar a alguém o prazer sexual (que é só um dos prazeres da vida, óbvio). Aliás, a vida pode ser vivida sem se ter nenhum prazer, nem assim deixa de ser vivida e de ser vida. Por isso que, para muitos, a vida é uma merda, como dizia Oscar Niemayer.
Mas, para além de outros adjetivos (tais como, “criminosos”, “bandidos”, “miseráveis”, “desgraçados”, “psicopatas”) e soluções reducionistas (“castração”, “empalamento”, “decapitação”, “tortura”, dentre outras bobagens), acho que deveríamos refletir um pouco mais, ao menos nós que estamos inseridos no sistema jurídico.
Não há dúvidas que o discurso punitivista de endurecimento das normas penais e processuais penais virá logo (tanto da direita como de parte da esquerda – Maria Lúcia Karam já alerta há algum tempo). Certamente teremos em breve uma pletora de projetos de lei para recrudescer as leis penais relativas a tais crimes, pois, como se sabe, aqui no Brasil, o Direito Penal é a panaceia para todos os males. Devem propor aumento das penas para o estupro, formas qualificadas (apesar de já termos causas de aumento de pena), etc. A primeira solução é sempre apelar-se para o sistema jurídico e, consequentemente, para a Justiça Criminal com as suas normas repressivas e de caráter vingativo/retributivo.
O estupro, por exemplo, é crime hediondo desde o ano de 1990 e a prática de tais delitos só aumentaram desde então no Brasil. Em 2009 também endureceu-se o tratamento jurídico-penal em relação a tais crimes e, empiricamente, nada indica que a sua incidência diminuiu. E não vai mesmo!
Lembro aqui da parábola do açougueiro, contada por Eugenio Raul Zaffaroni, em uma Conferência no XIII Congresso Latinoamericano, V Iberoamericano e 1º. do Mercosul de Direito Penal e Criminologia, realizada no Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001:
“El carnicero es un señor que está en una carnicería, con la carne, con un cuchillo y todas esas cosas. Si alguien le hiciera una broma al carnicero y robase carteles de otros comercios que dijeran: “Banco de Brasil”, “Agencia de viajes”, “Médico”, “Farmacia”, y los pegara junto a la puerta de la carnicería; el carnicero comenzaría a ser visitado por los feligreses, quienes le pedirían pasajes a Nueva Zelanda, intentarían dejar dinero en una cuenta, le consultarían: “tengo dolor de estómago, ¿qué puede hacer?”. Y el carnicero sensatamente respondería: “no sé, yo soy carnicero. Tiene que ir a otro comercio, a otro lugar, consultar a otras personas”. Y los feligreses se enojarían: “Cómo puede ser que usted está ofreciendo un servicio, tiene carteles que ofrecen algo, y después de no presta el servicio que dice”. Entonces tendríamos que pensar que el carnicero se iría volviendo loco, y empezaría a pensar que él tiene condiciones para vender pasajes a Nueva Zelanda, hacer el trabajo de un banco, resolver los problemas de dolor de estómago. Y puede pasar que se vuelva totalmente loco y comience a tratar de hacer todas esas cosas que no puede hacer, y el cliente termine con el estómago agujereado, el otro pierda el dinero, etc. Pero si los feligreses también se volvieran locos y volvieran a repetir las mismas cosas, volvieran al carnicero; el carnicero se vería confirmado en ese rol de incumbencia totalitaria de resolver todo. Bueno, yo creo que eso pasó y sigue pasando con el penalista. Tenemos incumbencia en todo. Tenemos que actuar como lo haría el carnicero responsable.” (“La función reductora del derecho penal ante un estado de derecho amenazado – o la lógica del carnicero responsable”).
O estupro, para além de um fato relevante do ponto de vista penal, não é um fenômeno brasileiro, tampouco, como se costuma dizer, latino. Recorde-se, por exemplo, que na Índia, no dia 16 dezembro de 2012, uma jovem de 23 anos foi estuprada por vários homens dentro de um ônibus. Ela morreu, inclusive, em decorrência da violência sexual. Nos dois anos seguintes ao caso, as queixas de estupro saltaram de cerca de 25 mil por ano para mais de 36 mil (em 2014). O estupro é um crime bastante comum naquele País. As vítimas são adolescentes, quase sempre.
Em alguns países islâmicos também é enorme o número de estupros de mulheres. É fato. Leiam. (A propósito, eu apoio a luta dos islâmicos contra o imperialismo ocidental. Um verdadeiro genocídio praticado pelos americanos e por alguns Países europeus. E sou solidário com o sofrimento daquele povo, agora, se não bastasse, impedido de fugir das atrocidades das guerras, pois todos suspeitos de serem terroristas. Portanto, não me venham com patrulhamento).
Também ao final da II Guerra Mundial, e esse é um fato não muito conhecido, ocorreram estupros em massa cometidos por soldados soviéticos contra mulheres alemãs. Existem registros de que os soldados de Stálin atacaram um número bastante alto de mulheres na Alemanha e, em particular, na capital alemã.[1] Já na Alemanha nazista houve um campo de concentração apenas para mulheres judias que, dentre outras crueldades, eram submetidas à violência sexual. Também é fato histórico.[2]
E o que dizer dos Estados Unidos da América, suposto berço da Democracia e das liberdades públicas. Lá, mais de 18% das estudantes de uma universidade relataram incidentes de estupro ou tentativa de estupro durante seu primeiro ano na instituição. A violência sexual nos campi norte-americanos chegou a níveis epidêmicos.[3] Neste País, os crimes sexuais, não coincidentemente, crescem em 41% em dia de jogos de futebol americano universitário. Os jogos de futebol americano podem estar ligados a 770 estupros na rede universitária por ano.[4] E vejam que os Estados Unidos têm a maior população carcerária do planeta, a maioria de afro-americanos e latinos, seletivamente escolhidos para servirem como matéria prima para a empresas que exploram o lucrativo negócio das prisões privadas.
Então, voltemos ao ponto. O que dizer desses homens que se acharam no direito de fazer sexo com a adolescente sem que ela assim o desejasse e, pior, continuaram a fazê-lo mesmo depois de desacordada, machucada e bastante ferida. Será que apenas eles seriam os culpados? Eles ou todos nós homens que, de uma forma ou de outra, sempre (ou quase sempre) colocamo-nos em uma posição de superioridade em relação às mulheres, inclusive quando fazemos sexo e conversamos com os amigos em rodas de bares e em conversas de whatsapp?
A propósito, Foucault escreveu que “os atos sexuais devem, portanto, ser submetidos a um regime extremamente cauteloso. Mas esse regime é bem diferente daquilo que poderia ser um sistema prescritivo que procurasse definir uma forma ´natural`, legítima e aceitável das práticas. É notável que quase nada é dito nesses regimes sobre o tipo de atos sexuais que se pode cometer, e sobre aqueles que a natureza aconselha.”[5]
O homem, seja individualmente ou em grupo, parece supor ter algum poder sobre o corpo da mulher. É possível, inclusive, que o seu inconsciente até então reprimido (daí porque eles não conseguiram impedir os seus atos, pois o inconsciente é muito mais forte, como explicou Freud), eleve-se de onde estava mergulhado e lhe convença que a vítima (porque uma mulher) está, na verdade, tendo prazer em ser submetida àquela violência. Ele, portanto, o faz, porque, inconscientemente, acha que está sendo prazeroso para ela, afinal de contas ela é uma mulher e ele um homem. Ele está cumprindo uma sua obrigação natural, de macho.
Não é uma questão do homem brasileiro, tampouco cultural (“cultura do estupro”). Se o fosse, não seria universal. É algo mais. É um sentimento de dominação e de superioridade masculina.[6] A mulher é, sobretudo, vista como objeto de prazer masculino e, portanto, o homem deve desfrutar desse objeto. Tem esse direito, quase natural. Aliás, tem o dever de possuí-la, o que explica, por vezes, tantos insucessos masculinos e tantas agressões às mulheres.
Uma outra inquietação: se o fato ocorrido no Rio de Janeiro tivesse sido praticado contra um adolescente (homem), de classe média alta, será que nós, machos, não teríamos sentido mais indignação e repugnância? A pergunta surge primeiro pelo fato da hipotética vítima não ter sido uma adolescente “suburbana” e, segundo, porque teria sido o crime praticado contra um de nós, um macho. Outra hipótese: e se a jovem fosse uma adolescente filha de um grande banqueiro, que tivesse acabado de sair de um restaurante em Copacabana, será que a nossa indignação não teria sido bem maior? Será que este hipotético delito seria tão cedo esquecido pela imprensa como este, que efetivamente ocorreu, será em breve?
Concluindo: o mais importante agora seria cuidar dessa adolescente em todos os sentidos, não somente do seu corpo físico, mas, especialmente, sob o aspecto psicológico. Mas, evidentemente, que a imprensa não está preocupada com isso. Nem o Estado, nem a Justiça Criminal, nem o Direito. Especialmente a imprensa (parte dela, claro) quer colher da vítima apenas os detalhes do fato, quantos foram exatamente os autores do crime, o que ela sentiu quando da violência, os momentos subsequentes, qual o sentimento dela em relação a eles, e outras perguntas cretinas. Afinal de contas, é preciso vender a noticia, faturar em cima da audiência, ainda que em cima do sofrimento de uma garota. Para eles, o futuro dessa adolescente não importa. Os estragos feitos em seu corpo e em sua alma são absolutamente desimportantes, mesmo porque, até o próximo fato jornalístico, tudo será esquecido, menos por ela.
NOTAS:
[1]http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/05/150508_estupro_berlim_segunda_guerra_fn
[2]http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150126_campo_concentracao_mulheres_cc.shtml
[3]http://noticias.terra.com.br/mundo/estados-unidos/estupros-em-universidades-dos-eua-alcancaram-niveis-epidemicos-diz-estudo,c26161e08716eb6be329650bad7b9f78fcdfRCRD.html
[4]http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/estupros-disparam-nos-eua-por-cultura-do-futebol-americano
[5] FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade 3 – O Cuidado de Si, São Paulo/Rio de Janeiro, Paz & Terra, 2014, p. 154.
[6] Óbvio que há sociedades matriarcais, como algumas aldeias no Vietnã, na China, Nova Guiné, na Indonésia, etc.
Autor: Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.