O assassinato de João Roberto Amorim Soares: Da possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional diante do dano moral incontroverso e da responsabilidade objetiva do estado
Vitor Vilela Guglinski*
A morte trágica do menino João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, no dia 07/07/2008, no Rio de Janeiro, infelizmente foi apenas mais um episódio da calamitosa situação pela qual passa a Polícia Militar daquele Estado. Assistimos diariamente nos telejornais a incompetência da PM fluminense, sendo que, mais trágica ainda é a insegurança vivida pela população, a qual inegavelmente não pode confiar na instituição criada para lhe servir e garantir a segurança pública.
Em reportagem exibida no Jornal Nacional do dia 08/07/2008, o governador Sérgio Cabral, em reunião na Sede da Secretaria de Segurança Pública, chamou de desastrosa a atuação dos policiais envolvidos no episódio, dizendo: “Eu não consegui dormir esta noite com a imagem do pai em desespero na minha cabeça. Como governador, eu avalio a ação policial como um erro fatal e incompleta capacidade de discernimento no momento de tensão”. Disse ainda que os policiais militares envolvidos no ocorrido serão expulsos da corporação, asseverando: “Não tem conversa. Tem que expulsar. São dois assassinos”. Com suas palavras, então, assumiu expressamente a culpa do Estado pelo lamentável episódio.
Feito este breve intróito, passo a discorrer acerca da responsabilidade civil do Estado, bem como a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, diante da ocorrência de dano moral incontroverso, exaurido na morte da vítima. Por óbvio, devido à extensão que comporta o tema, discorrerei apenas sobre alguns aspectos interessantes a orientar o raciocínio do leitor, registre-se.
Não obstante a incessante busca da verdade dos fatos pelo direito, na medida em que se almeja sempre a solução justa ao caso concreto, ao analisar as questões jurídicas envolvendo o acontecimento, é possível depararmo-nos com uma hipótese instigante no que diz respeito à viabilidade de provimento jurisdicional initio litis em função do incontestável dano experimentado pelos familiares do menino João Roberto.
Significa dizer, à luz do que prevê o ordenamento jurídico brasileiro, que existe a possibilidade plena da concessão dos efeitos antecipatórios da tutela, pelo juízo que vier a apreciar uma eventual ação envolvendo pedido de indenização por ato ilícito decorrente da violação dos deveres jurídicos não observados no caso em tela, uma vez que estamos diante de um fenômeno regido responsabilidade civil objetiva, consoante dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(omissis)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Da análise dos fatos, cremos seja possível chegar a uma conclusão primária, juridicamente lógica e incontroversa: a perda da vida do garoto João Roberto, indubitavelmente acarretou, de imediato, um dano aos respectivos familiares, sendo que destacaremos como suficiente à consecução e compreensão do presente trabalho o de natureza moral.
Para que o leitor disponha de condições a vislumbrar de maneira mais clara a dimensão desse dano, a própria veiculação das notícias envolvendo o ocorrido permite a qualquer ser humano médio vislumbrar o desespero dos familiares da vítima. A morte de um ente querido, da maneira cruel como ocorreu, é algo que indubitavelmente traz conseqüências psíquicas que vão além daqueles verificadas em casos de morte natural. No momento em que a família passa a conviver com um novo membro, passa a agregar valores à sua existência, além de fortalecer dia-a-dia a unidade familiar.
Nem é preciso dizer que, moralmente, e como medida de cristalina justiça, caberia ao Estado, diante da culpa expressamente assumida pelo chefe do Poder Executivo, oferecer espontaneamente uma indenização à família de João Roberto. Mas…
Passamos, então, a discorrer sobre a postura do Judiciário diante da situação fática ao apreciar um eventual pedido de tutela antecipada para a composição dos danos experimentados.
O Código de Processo Civil brasileiro regra a tutela antecipada no art. 273, e demais disposições subseqüentes, consignando ser lícito ao juiz, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação, bem como haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação e fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
De pronto, é possível notar que a existência de prova inequívoca a permitir tal provimento está pintada em cores vivas, expressa na morte do garoto João Roberto, como fato notório, o que até mesmo dispensaria a parte autora de sua prova, a teor do que dispõe o art. 334, I do diploma legal acima citado. Por sua vez, como é de curial saber, a injustificada demora no provimento jurisdicional final fundamentaria a decisão sumária, se for levado em conta que o julgamento ao final importaria em mais alguns anos dos familiares da vítima na fila dos famigerados precatórios. Quanto ao abuso de direito de defesa ou o manifesto caráter protelatório do réu, basta reportarmo-nos à supremacia da qual goza a Administração Pública em relação aos particulares. Na seara processual, por exemplo, se vale de prerrogativas processuais com prazos para contestar e recorrer mais dilatados evidenciando, assim, a possibilidade da adoção, pelo réu, das condutas descritas no inciso II do art. 273 do CPC, visto que nossa sistemática processual prevê um número demasiadamente grande de recursos até que o processo chegue ao fim e haja a efetiva entrega da tutela ao jurisdicionado.
Nada obstante, impende registrar que estamos diante de uma relação regida pela responsabilidade civil objetiva, assim consagrada pelo ordenamento constitucional justamente para se evitar possíveis abusos do Estado em relação aos direitos e garantias expressos na Constituição Federal, fazendo com que toda e qualquer consideração, neste particular, seja objeto de analise à luz das disposições da Carta Maior, justificando, assim, o tratamento jurídico diferenciado que lhe confere, pelo menos em tese, condições materiais e processuais a litigar com o Estado.
Dentro da sistemática abraçada pela CF 88, a responsabilidade civil recebeu tratamento diverso do que lhe é tradicionalmente atribuído, pois veio a consagrar a responsabilidade objetiva do Estado, fundada no risco administrativo, e traduzida no dever jurídico sucessivo (responsabilidade) de reparar os danos advindos do descumprimento de um dever jurídico originário (obrigação), independentemente de culpa, sendo que o dever jurídico originário, aqui, está expresso na garantia da segurança pública ao cidadão. Uma vez violado tal dever jurídico, como aconteceu no caso sob exame, ficou demonstrado o inadimplemento do Estado em relação à prestação que lhe é juridicamente imputada, nascendo, assim, um dever jurídico secundário, que é a responsabilidade pela reparação do dano.
O interesse maior é então a garantia da concretização das medidas protetivas do cidadão. Assim, transporta-se a discussão acerca da culpa para um plano secundário, em homenagem à eficácia que deve revestir o provimento jurisdicional pleiteado.
O evento morte, à luz dos fundamentos alinhados, por si só já é capaz de autorizar a concessão dos efeitos antecipatórios da tutela, para determinar, incontinenti, o pagamento de indenização a quem de direito, em razão de o juiz, através da cognição sumária, já saber ser a mesma devida. É, portanto, prova forte e imodificável!
No que tange ao perigo de irreversibilidade do provimento, podemos afirmar com segurança que tal inexiste, pois o direito está cabalmente demonstrado. Com a morte da vítima, o dano moral se consumou, ou seja, já fez nascer nos parentes da vítima o direito à correspondente compensação, já que a morte não é passível de reparação, isto é, não existe possibilidade de restituição ao status quo ante, registre-se. Nesse especial cabe registrar a magistral lição de Luiz Fux: “Sob o ângulo civil, o direito evidente é aquele que se projeta no âmbito do sujeito de direito que postula. Sob o prisma processual, é evidente o direito cuja prova dos fatos sobre os quais incide revela-os incontestáveis ou ao menos impassíveis de contestação séria.”
Como já apontado precedentemente, a morte do menino João Roberto é fato, e, segundo a dicção do brocardo jurídico, “contra fatos não há argumentos”! Seria, no mínimo, em observação à construção feita pelo eminente Ministro, insensato não se considerar tal fato incontestável ou impassível de contestação séria!
Provável discussão poder-se-ia levantar, então, em relação à individuação do quantum a indenizar, tendo em vista que o juiz, no exercício de seu mister, tem de considerar uma série de requisitos objetivos e subjetivos para a fixação do respectivo valor. Porém, em se tratando do dano moral sob exame, não há, nesse particular, que se cogitar tal hipótese, se considerarmos pura e simplesmente o fato de o Estado, através da atuação dos policiais militares que efetuaram os disparos contra o carro onde a vítima se encontrava, ter causado a morte de João Roberto. O direito à reparação se faz presente em face do evento morte, o que lhe reveste de liquidez e certeza, pelo que o magistrado, diante dessa característica, e a fim de resguardar o direito da parte, poderá fixar um mínimo a ser indenizado, já que o dano sumariamente observado é o que vai orientar a atividade do magistrado, sendo que outros fatos em especial que por ventura vierem a importar no aumento do quantum debeatur poderão, sem prejuízo, ser objeto de apreciação no decorrer da instrução processual, em harmonia com o devido processo legal.
Outra consideração que se faz imperiosa, e ainda toca na questão da irreversibilidade da decisão, diz respeito aos direitos constitucionalmente envolvidos no litígio. Se por um lado a antecipação dos efeitos da tutela pode importar em prejuízo econômico irreversível em relação ao réu, caso remota e futuramente fique provado que a indenização não era devida nos moldes em que foi fixada, lado outro a sua não concessão importa em prejuízos irreversíveis atinentes aos direitos à honra subjetiva, à intimidade, à vida privada, os quais estão intimamente ligados à dignidade da pessoa humana, sendo que estes revelam-se prementes em virtude do dano presente, e são hierarquicamente superiores àqueles de interesse estatal, nos termos da Magna Carta.
Não é demais recordarmos que o juiz deve sempre orientar seu desígnio no sentido de que a lei existe pra servir à sociedade, e não o contrário, sob pena de se privilegiar a disposição literal do texto legal em detrimento do seu real espírito. Novamente recorremo-nos ao magistério de Luiz Fux, ao citar Miguel Reale, assinalando que “a tutela de evidência é regra in procedendo para o aplicador do direito que não está tão atrelado assim à ‘lógica formal’ mas antes à percepção dos fatores lógicos, axiológicos e éticos que antecedem essa operação de aplicação jurisdicional do direito”. Somado a isto, como sempre faço questão de repetir em meus textos, há que se atentar para a regra contida no art. 5º da LICC, o qual orienta o julgador a observar os fins sociais a que a lei se dirige, e o regramento a ser observado nos fatos trazidos à baila é o contido na Constituição Federal, que garante o direito à reparação pelos danos de natureza moral, nos termos do art. 5º, inciso X. Assim sendo, o direito reclama uma tutela plenamente capaz de satisfazer os anseios do corpo social quando da ocorrência de fatos como este que examinamos, onde vidas são diariamente perdidas, em razão da incompetência daqueles que agem em nome do Estado. Nada justifica a extremada cautela do magistrado a evitar possíveis danos de natureza econômica atinentes à pessoa do réu no processo quando o direito da parte ex adversa se revela cristalino, líquido e certo.
Em sede conclusiva, fica demonstrado, assim, o direito dos familiares do menino João Roberto Amorim Soares em haver a respectiva indenização pelos danos morais experimentados, de forma sumária, diante do dano inconteste, bem como da falha expressamente e publicamente assumida pelo Estado, sendo até mesmo dever do magistrado conceder a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, uma vez presentes seus pressupostos. É direito da parte, anote-se. Tudo isso se reveste de legitimidade em razão de estarmos diante de fatos cujas conseqüências são amparadas pela teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado, sendo que os direitos e garantias fundamentais foram consagrados pelo ordenamento constitucional como forma de garantir efetiva proteção aos respectivos titulares, in casu os familiares de João Roberto, que fazem jus, pois, à indenização devida, diante da possibilidade de cognição sumária do juiz em relação à prova inequívoca do dano sofrido.
* Assessor de Juiz em Juiz de Fora, especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá de Juiz de Fora.
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