Direito Penal

Nova Lei Antidrogas: Principais inovações da Lei nº. 11.343/2006 – Parte II

4.2 Da eliminação da pena de prisão ao usuário

 

Com a entrada em vigor da Lei n°. 11.343/2006, todo indivíduo que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal” qualquer droga considerada ilícita e não autorizada estará sujeito às penalidades capituladas nos artigos 28 e 45 a 47 da novel legislação. Estes indivíduos são os usuários, sejam estes eventuais ou dependentes.

 

Deve ser ressaltado, em primeiro lugar, que não houve descriminalização do consumo de drogas. A intenção da Lei n°. 11.343/2006 não é de fundamentar movimentos de legalização do uso de substâncias ilícitas, nem de retirar o caráter de ilícito, mas sim de tratar o usuário e o dependente como vítimas de seu próprio vício, na tentativa de resgatar o ser humano das drogas e reinseri-lo na sociedade.

 

Sobre a polêmica da descriminalização, Rogério Greco[1] reitera com singular brilhantismo que:

o que houve, na verdade, foi uma despenalização, melhor dizendo, uma medida tão somente descarcerizadora, haja vista que o novo tipo penal não prevê qualquer pena que importe em privação de liberdade do usuário.

 

Referido autor afirma, ainda, que o Direito Penal não pode atuar nas situações em que um bem de terceiro não for efetivamente lesado (princípio da lesividade), logo, aquilo que for da esfera própria do agente, como a ingestão de drogas, deve ser tolerado pela sociedade, desde que a conduta não exceda o âmbito do próprio autor[2].

 

Portanto, o consumo pessoal de drogas, representado no tipo penal pela aquisição, guarda ou transporte, não implica mais em penas privativas de Direito, como nas legislações anteriores (por exemplo, o art. 16 da Lei n.º 6.368/76), e sim em penas restritivas de direitos, a saber:

 

·      Advertência sobre os efeitos da droga (inciso I do art.28);

·      Prestação de serviços à comunidade (inciso II);

·      Medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (inciso III).

 

Crime, como sabemos, nos termos do art.1º do Decreto-lei n°. 3914/91 (Lei de Introdução ao Código Penal), é toda infração penal punida com reclusão ou detenção, de forma isolada, cumulada ou alternativa com pena de multa, ou seja, penas privativas de liberdade.

 

À época da edição desse Decreto-lei, é importante frisar que o legislador ainda não aplicava em nosso ordenamento jurídico as penas restritivas de direitos, logo, estas não estão presentes na Lei de Introdução do Código Penal na qualidade de determinantes de crimes, tal como as penas privativas de liberdade.

 

Porém, as infrações sujeitas à sua cominação também configuram espécie de crime, pois recebem, sim, penalidade pela sua realização.

 

Logo, mais uma vez resta comprovado que não ocorreu a descriminalização do uso de drogas, representado pelas vertentes do artigo 28, e sim o abrandamento da penalidade a que está sujeito.

 

Luís Flávio Gomes esclarece, ainda, que após a edição da Lei n°. 11.343/2006, o usuário não pode sequer ser chamado de criminoso[3], pois o consumo propriamente dito não representa mais um crime, e tampouco pode ser considerado como contravenção, pois isto implicaria penalidades de multa e prisão simples, nos termos do artigo 5° do Decreto-lei n°. 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais).

 

Assim, atualmente, o consumo de drogas, é entendido como infração penal sui generis, haja vista não ter perdido seu caráter de ilícito, mas também não pode ser considerado efetivamente crime; continua proibido, mas ocorreu o abrandamento das penalidades anteriormente previstas[4]. Portanto, diferente do que parte da doutrina prega, entendo, no presente trabalho, não ter ocorrido abolitio criminis.

 

Deve ser ainda destacado o que representa consumo pessoal, a fim de se entender o alcance da norma ora em debate.

 

O §2° do artigo 28 reza, in verbis:

 

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o Juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

 

A análise sobre a natureza da droga é importante para determinar sua potencialidade. Sobre a quantidade, é fundamental para precisar se aquele quantum, de fato, é para consumo do indivíduo, de um grupo, ou voltado para o tráfico. O local é fator preponderante para definir a intenção do pretenso mero usuário, pois a apreensão nas proximidades de uma escola, por exemplo, retira o caráter de uso próprio[5].

 

Sobre as circunstâncias sociais e pessoais, o relacionamento próximo com pessoas ligadas ao tráfico, por exemplo, são fatores desfavoráveis à análise do contexto.

 

Ricardo Rodrigues Gama lembra, ainda, que ao ser detido, o indivíduo deve portar a droga ou parte dela, pois, se já tiver feito uso da substância, a conduta será atípica. Ele utilizou a droga, está apresentando todos os efeitos do uso indevido, e por isto não pode ser detido, pois “não faz parte do tipo penal o fato de a pessoa ‘usar a droga’, mas as condutas periféricas ao consumo, como adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo” .[6].

 

Ao se falar sobre a eliminação de prisão para o usuário e dependente de drogas, devemos obrigatoriamente falar também sobre o procedimento penal pertinente a cada caso.

 

Para os crimes previstos no artigo 28, já amplamente debatido, a nova lei estabelece que o rito a ser seguido seja o rito sumário dos Juizados Especiais Criminais, previsto na Lei n°. 9.099/1995, havendo a possibilidade, inclusive, de transação penal e suspensão condicional do processo [7].

 

E, de acordo com o artigo 48, caput, da Lei n°. 11.343/2006, além de ser observado o procedimento da Lei n°. 9.099/1995, deve-se aplicar também, subsidiariamente, o Código de Processo Penal e a Lei de Execuções Penais.

 

O individuo flagrado na prática de qualquer um dos núcleos verbais do artigo 28 da nova Lei será processado de acordo com o § 1º do artigo 48[8], exceto na hipótese de concurso com os demais crimes previstos na nova Lei Antidrogas, pois estes definirão o tratamento penal a ser recebido.

 

E o §1°. do artigo 28 ainda prevê que as mesmas medidas restritivas de direitos serão aplicadas ao que, para seu próprio consumo, “semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica” (grifo nosso).

 

O § 2º do artigo 48[9] trata efetivamente sobre a eliminação de prisão ao usuário e dependente, ressaltando que está expressamente proibida a prisão em flagrante para os infratores do artigo 28 da nova Lei.

 

Portanto, o usuário ou dependente incurso no mencionado artigo deve ser encaminhado para a autoridade competente, ou, na falta do mesmo, deve prestar o compromisso de comparecer à mesma autoridade (§3º do art. 48).

 

Será lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e não mais Boletim de Ocorrência (BO), bem como serão requisitados os exames e perícias pertinentes (§4° do art. 48).

 

Sobre o assunto, FREITAS JUNIOR[10] ressalta:

 

A vedação da prisão em flagrante é absoluta, não estando condicionada a aceitação do agente em cooperar com a justiça. Não será possível a prisão em flagrante, assim nem mesmo se houver recusa do agente em comparecer em juízo. Óbvio, contudo, que caso o agente pratique o crime previsto no artigo 28, em concurso com qualquer conduta dentre aquelas previstas nos arts. 33 a 37, caberá a sua prisão em flagrante, prosseguindo-se o feito nos termos do disposto no art. 50 e seguintes da nova lei.

 

Fica clara, então, a diferenciação realizada pelo legislador entre o usuário ou dependente e os autores dos crimes de tráfico e subseqüentes.

 

Assim, a Lei determina em seu artigo 48, §1° in verbis:

 

O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei n° 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.

 

A preocupação do legislador em excluir a pena privativa de liberdade para os usuários ou dependentes é louvável, não só por evitar a exposição destes indivíduos aos criminosos de maior periculosidade, mas principalmente porque esta conduta não é compatível com a nova política da Lei, que busca a re-socialização do usuário e dependente, livrando-o do vício de consumo.

 

Portanto, as condutas descritas no artigo 28 tratam-se de crimes em abstrato (pois não é necessária a prova do efeito perigo à saúde pública); comuns (sujeito ativo não possui nenhuma qualidade ou característica peculiar); permanentes (salvo a modalidade “adquirir”, que admite tentativa); e, por se tratar de legislação mais benéfica, retroage para alcançar fatos anteriores à sua vigência (novatio legis in mellius) [11].

 

 

4.3 Do aumento do rigor punitivo contra traficantes e financiadores do tráfico

 

No Título II, Capítulo II da Lei n°. 11.343/2006 (artigos 33 a 39), são descritos os crimes previstos por esta legislação:

 

·      Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 33);

·      Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 34);

·      Associação de duas ou mais pessoas para a prática dos crimes previstos nos artigos anteriores (art. 35);

·      Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos anteriores (art. 36);

·      Colaborar como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos anteriores (art. 37);

·      Prescrever ou ministrar drogas, culposamente, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas, ou, ainda, em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 38);

·      Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem (art. 39).

 

No entanto, a presente análise se concentra tão somente nos crimes arrolados em seus artigos 33, 34 e 36, relacionados diretamente ao tráfico de drogas, uma vez que representam significativo aumento no rigor punitivo contra os indivíduos envolvidos intrinsecamente com a produção, tráfico e financiamento de drogas.

 

 

4.3.1 Do tráfico de drogas

 

Segundo o Dicionário Michaelis[12], por “tráfico” entende-se:

 

sm (ital tráfico) 1 Comércio, mercancia, trato mercantil. 2 Ato de comerciar. 3 Negócio. 4 Troca de mercadorias que os navios de comércio faziam na costa da África. 5 Negócio fraudulento, indecoroso: O tráfico da escravatura.(grifo do autor).

 

Para além do sentido mercantil, a moderna conotação de tráfico encontra-se associada à idéia de comércio ilícito: tráfico de mulheres, tráfico de drogas, tráfico de órgãos.

 

Guilherme Nucci[13] acrescenta ainda que:

 

Tráfico significa tanto comércio quanto tráfego ou fluxo de coisas e mercadorias, valendo dizer que, em tese, o comerciante de drogas, que visa ao lucro, mas também o simples passador podem ser denominados de traficantes, pois fazem a substância circular de mão em mão.(grifo do autor).

 

A nova Lei Antidrogas arrolou diversos núcleos verbais que se relacionam ao tráfico ilícito de drogas, ampliando o conceito de tráfico para além da simples venda, in verbis:

 

Art. 33: Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

 

§1.º Nas mesmas penas incorre quem:

I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

 

§2.º Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga:

Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.

 

§3.º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa; sem prejuízo das penas previstas no artigo 28.

 

§4.º Nos delitos definidos no caput e no §1.º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

 

Para Thums e Pacheco, porém, o legislador cometeu algumas impropriedades ao arrolar, entre os núcleos verbais deste capítulo, um crime culposo (artigo 38 – prescrever ou ministrar culposamente) e um crime alheio ao tráfico (artigo 39 – pilotagem de aeronave ou embarcação sob o efeito de drogas) [14].

 

Nucci cita como outro erro legislativo a equiparação realizada pela novel legislação do rigor punitivo do negociante de drogas com o “passador” da substância proibida: o primeiro enriquece ilicitamente, mas o segundo não; no entanto, são tratados de igual forma. Para ele, o correto seria distinguir as finalidades específicas de cada conduta: com ou sem interesse de lucro, afim de aprimorar a descrição[15].

 

O artigo 33, portanto, especifica as condutas delituosas típicas do crime de tráfico de drogas, e, com relação aos núcleos verbais colacionados, diz Rogério Sanches Cunha[16]:

 

Os dezoito verbos contemplados no art. 12 da Lei 6.368/76, foram mantidos (sem acréscimo). São eles: importar (trazer de fora), exportar (enviar para fora), remeter (expedir, mandar), preparar (por em condições adequadas para o uso), produzir (dar origem, gerar), fabricar (produzir a partir de matérias primas, manufaturar), adquirir (entrar na posse), vender (negociar em troca de valor), expor à venda (exibir para venda), oferecer (tornar disponível), ter em depósito (posse protegida), transportar (levar, conduzir), trazer consigo (trazer consigo, junto ao corpo), guardar (tomar conta, zelar para terceiro), prescrever (receitar), ministrar (aplicar), entregar (ceder) a consumo ou fornecer (abastecer) drogas, ainda que gratuitamente (amostra grátis). (grifo do autor).

 

No §1° do artigo 33 são elencados outros núcleos verbais a título de equiparação, que tratam do comércio e produção de matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, como, por exemplo, éter, acetona, clorofórmio e permanganato de potássio[17], além de tipificar a utilização de bens ou locais de posse ou propriedade do agente para o tráfico ilícito.

 

Freitas Junior ressalta que a planta apreendida com o agente sequer precisa possuir efeito farmacológico, bastando para que seja matéria-prima da produção de drogas para configurar o tipo penal do §1° [18].

 

Ressalta, ainda, quanto à cessão de bens móveis e imóveis, que se o local for utilizado por terceiro somente para o consumo de drogas, e não para atividade de tráfico em si, o agente que promoveu o empréstimo responde meramente por auxílio ao uso indevido de drogas (§2° do artigo 33) [19].

 

Outrossim, deve ser esclarecido que somente a falta de autorização para a prática destes atos ou o seu desacordo com determinação legal ou regulamentar é que constituem o elemento normativo jurídico do tipo, pois se um indivíduo adquire acetona para revender a lojas, por óbvio não incorrerá no delito previsto no §1°, porém, se adquirir este mesmo acetona para revender a produtores de drogas, ciente de que aquela matéria-prima será utilizada para produção de substâncias ilícitas, sua conduta adequa-se ao tipo penal ali elencado[20].

 

O que se percebe é que o intuito do legislador ao definir estes tipos penais é o de proteger objetivamente o bem jurídico da saúde pública, ou seja, a saúde das pessoas como um bem geral e não apenas de um indivíduo especificamente[21].

 

Rogério Sanches Cunha destaca, porém, que a saúde pública (tutela imediata) é um bem jurídico supra-individual que deve sempre ter como referência última os bens jurídicos pessoais (tutela mediata)[22].

 

Os crimes acima mencionados são classificados em crimes comuns (exceto no núcleo prescrever, que implica profissional de saúde, tratando-se, então, de crime especial); de perigo abstrato e presumido (é desnecessária a prova do efetivo risco à saúde pública) e, tendo em vista a pluralidade de condutas típicas, é praticamente inadmissível a tentativa, pois muitos dos atos de execução que poderiam caracterizar tentativa são, por si só, condutas puníveis[23].

 

São crimes comissivos (os verbos indicam ações), podendo ser instantâneos (nas formas importar, exportar, produzir, remeter, fabricar, adquirir, vender e fornecer) ou permanentes (nas formas ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar); e unissubjetivos (podem ser cometidos por um só agente) [24].

 

São também classificados como crimes de ação múltipla, ou seja, o agente que praticou mais de um núcleo previsto no mencionado artigo, na mesma situação fática e consecutivamente (ex: importa determinada droga e a vende no país), responde por um único crime, de tráfico ilícito, por força do princípio da alternatividade e a fim de se evitar a ocorrência de bis in idem[25].

 

Por outro lado, não ocorrendo a mesma situação fática entre os núcleos do artigo 33 (ex: vende no país um tipo de droga e exporta tipo diverso), então este agente incorre em concurso de crimes.

 

O artigo 33 apresenta uma pequena inovação em seu §3° (oferecer drogas), cujo núcleo não era previsto nas legislações anteriores.

 

Ricardo Gama ressalta que, para alcançar o sentido dessa norma, “a droga é oferecida de forma eventual e gratuitamente, tentando viciar pessoa  oferecida de forma eventual e gratuitamente, tentando viciar pessoas ou manter os seus vícios” [26].

 

Nesse sentido, deve ser diferenciado o fornecimento gratuito de drogas a terceiros desconhecidos, para consumo em conjunto (hipótese do caput do artigo 33 – fornecer droga, ainda que gratuitamente), da situação em que um grupo de amigos decide fazer uso simultâneo de drogas, ficando a cargo de apenas um deles a compra e repasse aos demais (hipótese do §3° do artigo 33 – oferecer a conhecidos para uso conjunto)[27].

 

O §3º do artigo 33, como se percebe, trata de tipo de menor potencial ofensivo, cujas penalidades ali previstas não prejudicarão a aplicação das penas dispostas também no artigo 28.

 

O §4°, por seu turno, faz menção à possibilidade de redução de pena, de um sexto a dois terços, desde que o agente preencha os requisitos elencados: ser réu primário; possuir bons antecedentes; não se dedicar ao crime e tampouco participar de organização criminosa, ressaltando referido parágrafo que é proibido a substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

 

Flávio Oliveira Lucas destaca, ainda, que estes requisitos são cumulativos[28].

 

Portanto, após a análise dos núcleos verbais que tipificam os crimes de tráfico ilícito de drogas, cumpre agora demonstrar em que termos ocorreu o chamado aumento do rigor punitivo.

 

A Lei n°. 6.368/76 previa pena mínima de 03 (três) e máxima de 15 (cinco) anos, além de multa de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

 

A Lei n°. 11.343/06, por sua vez, majorou a pena mínima para 05 (cinco) anos e a multa para 500 (quinhentos) a 1.500 (hum mil e quinhentos) dias-multa.

 

Para Thums e Pacheco[29], a nova lei nivelou no mesmo tipo o traficante cuja conduta lesa toda a coletividade, com agentes que cometem pequenas condutas, às vezes até insignificantes, sem o mesmo poder de lesividade.

 

Para estes autores, existe um exagero punitivo para condutas que não representam traficância, ou que representam tráfico sem repercussão social. Citam o exemplo de agente (não usuário e não traficante) que leva uma pequena quantidade de drogas para um companheiro que está preso, e que fará uso pessoal da substância[30].

 

Neste caso, a lei prevê pena mínima de 05 (cinco) anos de reclusão, somada à majorante de 1/6 a 2/3, por se enquadrar no inciso II do artigo 40 (infração cometida em estabelecimento prisional).

 

Se o agente levasse a droga para consumo em conjunto, incidiria na pena do artigo 33, §3° (pena máxima de 01 ano); se fosse flagrada transportando 02 (duas) toneladas da droga, incidiria na mesma pena do artigo 33, porém teria pena menor porque não se sujeitaria a nenhuma majorante[31].

 

Como podemos perceber, o legislador igualou todas as condutas do artigo 33 como tráfico simples de droga, majorando a pena mínima prevista e prevendo ainda outras hipóteses de majoração da pena, de 1/6 até 2/3 (artigo 40), se, por exemplo, a infração for cometida aproveitando-se de função pública, em caráter de transnacionalidade, em estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, ou ainda se sua prática envolver ou atingir criança ou adolescente.

 

Porém, devem ser ressaltadas as modalidades de tráfico privilegiado, referentes à conduta de oferecer drogas (§3° do artigo 33), que, para sua caracterização, necessitam de 04 (quatro) exigências legais[32]:

 

a)  Oferecimento eventual (o agente não realiza a distribuição de drogas de forma habitual nem continuada);

b)  Oferecimento sem objetivo de lucro (seja de natureza pecuniária ou não);

c)  Oferecimento a pessoa de seu relacionamento, seja pessoal, afetivo ou de ambiente de estudo ou trabalho (caso contrário, será responsabilizado por tráfico simples);

d)  Oferecimento para consumo em conjunto (o que reforça o caráter de não traficância).

 

 

4.3.2 Dos objetos para produção de drogas

 

O artigo 34 da nova Lei Antidrogas trata acerca da conduta criminosa em relação a objetos que possam ser destinados à produção ou tráfico de substâncias ilícitas, in verbis:

 

Art. 34.  Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.

 

É necessário ressaltar que este artigo aplica-se a maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer outro objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, mesmo se estes objetos não tenham sido criados especificamente para a prática destas finalidades ilícitas[33].

 

Guilherme de Souza Nucci[34] resume os tipos penais ali elencados em:

 

· Fabricar (produzir em grande escala, valendo-se de equipamentos e máquinas próprias);

· Adquirir (comprar, obter, mediante certo preço);

· Utilizar (fazer uso de algo);

· Transportar (levar de um lugar ao outro);

· Oferecer (ofertar como presente);

· Vender (alienar por determinado preço);

· Distribuir (entregar a diferentes partes);

· Entregar a qualquer título (passar algo a posse de outrem, sem qualquer restrição);

· Possuir (ter algo em seu poder para usufruir);

· Guardar (tomar conta de algo, proteger);

· Fornecer (abastecer).

 

A consumação desses núcleos é imediata, e para comprovar a real destinação dos equipamentos, é necessária a realização de perícia para atestar se, de fato, o maquinário era utilizado para o tráfico de drogas[35].

O delito do mencionado artigo é classificado como crime comum (pode ser cometido por qualquer sujeito); formal (não exige resultado naturalístico); de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio); comissivo (os verbos indicam ações); instantâneo (nas formas fabricar, adquirir, vender, oferecer, distribuir, entregar e fornecer) ou permanente (nas formas transportar, possuir e guardar); de perigo abstrato (não depende de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado) e unissubjetivo (depende de apenas um agente para ser cometido) [36].

 

Deve ser ressaltado também que a ilicitude destes tipos verbais está ligada à idéia de que são cometidos sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pois estes são os reais elementos incriminadores[37]. Se a substância produzida ou transportada ou fornecida através daquela máquina ou instrumento for devidamente autorizada pela repartição pública competente, não existe tipo penal na espécie.

 

 

4.3.3 Do financiamento do tráfico ilícito

 

A previsão de financiamento como tipo penal é inovação do legislador. O artigo 36 da Lei 11.343/2006 prevê, in verbis:

 

Art. 36.  Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1°, e 34 desta Lei:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.

 

Antes desta lei, o indivíduo que financiasse o tráfico de drogas ou de maquinários respondia pelo mesmo crime do traficante, muitas vezes na condição de partícipe, tendo sua pena agravada pela circunstância prevista no artigo 62, inciso I, do Código Penal (“promover ou organizar a cooperação no crime ou dirigir a atividade dos demais agentes”)[38].

 

Ricardo Rodrigues Gama leciona que a previsão deste novo tipo resulta da realidade do tráfico de drogas no Brasil, no qual se percebe uma grande ligação entre o tráfico e o crime organizado[39].

 

As condutas previstas no artigo 36 são as de financiamento (custeamento dos gastos) ou custeio (prover despesa, abastecer do que for necessário) de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º, e 34 da mesma lei[40], com o diferencial de que o agente que financia não tem envolvimento direto com a droga, fazendo isto à distância.

 

Thums e Pacheco[41] oferecem uma maior diferenciação entre os dois núcleos verbais, lecionando que:

 

Entendemos que financiar é diretamente relacionado aos valores financeiros, ao dinheiro aplicado ao tráfico, v.g. na compra, importação ou exportação da droga, enquanto custear pode ser também em relação a coisas ou bens que auxiliem no tráfico, como emprestar carros, caminhões, motocicletas, embarcações, aeronaves para uso na distribuição da droga ou, até mesmo, o pagamento de aluguel de determinado imóvel para guardar ou depositar o produto do ilícito.

 

Para os referidos autores, os financiadores são verdadeiros banqueiros do tráfico, que não se envolvem diretamente com a droga e sua distribuição, mas possuem participação decisiva no delito, buscando altos lucros em relação ao valor investido[42].

 

A respeito da intenção do agente em dispor de seu dinheiro para esta finalidade, Flávio Oliveira Lucas[43] ensina que:

 

Entretanto, acreditamos que a mens legis impõe que o tipo alcance somente aquelas pessoas que financiam o tráfico com alguma intenção de obter vantagem com essa prática, ainda que não econômica, eleitoral, por exemplo.

 

Roberto Bacila[44] complementa, ainda, que o emprego dos verbos financiar e custear, cominado com a elevada pena prevista, permite pressupor que se trata de pagamento decisivo de despesas do tráfico, pois uma contribuição irrelevante ou mero auxílio financeiro caracteriza apenas simples participação por cumplicidade do agente (artigo 33, caput ou artigo 34).

 

Interessante citar o pensamento de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, que acredita que o legislador cominou as penalidades deste tipo penal como as mais gravosas dentre todos os crimes previstos na Lei, posto que determinou pena de reclusão de 8 a 20 anos e pena de multa de 1500 a 4000 dias-multa[45].

 

Para o referido autor, ao se analisar este fato sob uma perspectiva causal, pode-se dizer que o legislador entendeu que as condutas de financiamento e custeio representam não causas, mas sim condições sem as quais, por exemplo, o resultado tráfico não se produziria, daí serem estabelecidas sanções mais elevadas do que as previstas na lei de um modo geral (tanto no que diz respeito à pena privativa de liberdade, quanto à multa)[46].

 

No entanto, acredita este autor que isto representa violação ao princípio da proporcionalidade,

 

eis que, por exemplo, a conduta de fabricar aparato destinado à preparação de drogas sem autorização, prevista no art. 34 da Lei, também representa condição sem a qual o resultado tráfico não se produziria.

 

Portanto, acredita que se o fundamento da gravidade da pena para o crime de financiamento e custeio do tráfico advém do pensamento de que são atividades intimamente relacionadas à existência do mesmo, outras condutas intimamente relacionadas à produção e distribuição das drogas também deveriam ser punidas com o mesmo rigor.

 

Outro aspecto que merece ser ressaltado é sobre a importância de evitar a confusão entre o agente que financia ou custeia o tráfico ilícito de drogas sem envolvimento direto (incurso artigo 36) com o agente que, sendo traficante, aproveita o lucro do tráfico para investir na sua atividade, ou para financiar a atividade de agentes com menos condições (incurso no artigo 33, caput ou 34 majorado pelo inciso VII do artigo 40) [47].

 

 

4.4 Da arrecadação dos bens provenientes do tráfico

 

O Código de Processo Penal trata, em seus artigos 125 a 144, sobre as medidas assecuratórias relativas a bens móveis, imóveis e até mesmo valores frutos de infrações (proveniência ilícita).

 

A Lei n.º 11.343/2006, em seu artigo 60, trata das mesmas medidas assecuratórias, possibilitando ao Juiz decretar, cautelarmente, a apreensão, arresto e seqüestro dos bens móveis e imóveis, assim como dos valores que constituam produtos ou proveitos dos crimes previstos nessa lei[48], determinando, in verbis:

 

Art. 60.  O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o Ministério Público, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias relacionadas aos bens móveis e imóveis ou valores consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

 

§ 1o  Decretadas quaisquer das medidas previstas neste artigo, o juiz facultará ao acusado que, no prazo de 5 (cinco) dias, apresente ou requeira a produção de provas acerca da origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão.

 

§ 2o  Provada a origem lícita do produto, bem ou valor, o juiz decidirá pela sua liberação.

 

§ 3o  Nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores.

 

§ 4o  A ordem de apreensão ou seqüestro de bens, direitos ou valores poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o Ministério Público, quando a sua execução imediata possa comprometer as investigações.

 

Medidas assecuratórias, como relembra Marcello Granado, são medidas cautelares que visam garantir a indenização do dano ex delicto, o confisco e o pagamento das penas pecuniárias e das despesas processuais[49].

 

Como se depreende da leitura do artigo acima transcrito, tais medidas podem ser decretadas de ofício pelo juiz; através de requerimento formulado pelo Ministério Público; e a partir de uma representação da autoridade policial.

 

Em qualquer destes casos, por se constituírem instrumentos cautelares que incidem sobre direitos fundamentais (posse/propriedade), devem obedecer a requisitos autorizadores para sua concessão: a efetiva presença de indício de fato ilícito; e presença de circunstâncias que indiquem prática de narcotráfico. Caso contrário, não haverá pressuposto material para deferimento da medida[50].

 

Guilherme de Souza Nucci tece uma sutil diferença entre a apreensão dos produtos visivelmente oriundos dos crimes previstos na Lei e os bens disfarçados de lícitos.

 

Para este autor, apreende-se o produto do crime quando este é visível (como a droga ilícita encontrada em poder do agente), e neste caso a polícia não necessita de mandado judicial, bastando ser lavrado o auto de apreensão[51].

 

No entanto, existem os bens oriundos do proveito dos crimes, ou seja, produtos mascarados de licitude, mas que foram adquiridos com o dinheiro da venda de drogas.

Nesse caso, a polícia judiciária não pode simplesmente apreender estes bens, porque estão protegidos pelo direito constitucional à propriedade. Deve o Judiciário, através de ordem judicial fundamentada, tornar o bem indisponível, até que se decida seu destino[52].

 

Após a decretação da medida, é oferecido ao agente o prazo de 05 (cinco) dias para comprovar a origem lícita dos bens. Conforme esclarece Ricardo Rodrigues Gama, esta concessão visa preservar as bases do princípio do contraditório e da ampla defesa[53].

A Lei n.º 10.409/2002 não previa esta abertura de contraditório, mas haviam as medidas incidentais cabíveis. Se não fossem opostos incidentes, somente no momento da sentença final é que o magistrado decidia sobre o perdimento dos bens apreendidos, o que, em caso positivo, significava a condenação do acusado[54].

 

Portanto, pelo procedimento da nova lei, feito o respectivo laudo pericial, se não forem os objetos sujeitos a confisco, e não havendo dúvidas quanto ao direito do reclamado, as coisas apreendidas poderão ser restituídas[55].

 

Por outro lado, se não restar demonstrado o bom direito de propriedade, nem a origem lícita do produto, e ainda se interessando a apreensão do mesmo para o processo, deve ser a decisão assecuratória mantida[56].

 

O parágrafo 3° torna o comparecimento pessoal do agente um requisito para conhecimento do pedido de restituição. Para Ricardo Rodrigues Gama, esta medida visa permitir ao magistrado avaliar o envolvimento do agente com os bens pleiteados[57].

 

De acordo com o §4°, porém, será determinada a suspensão do arresto ou seqüestro dos bens ou valores, caso o Ministério Público entenda que estas medidas atrapalham as investigações.

 

O artigo 61 prevê a possibilidade do uso dos bens apreendidos em caso de interesse público ou social, in verbis:

Art. 61.  Não havendo prejuízo para a produção da prova dos fatos e comprovado o interesse público ou social, ressalvado o disposto no art. 62 desta Lei, mediante autorização do juízo competente, ouvido o Ministério Público e cientificada a Senad, os bens apreendidos poderão ser utilizados pelos órgãos ou pelas entidades que atuam na prevenção do uso indevido, na atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e na repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, exclusivamente no interesse dessas atividades.

 

Parágrafo único.  Recaindo a autorização sobre veículos, embarcações ou aeronaves, o juiz ordenará à autoridade de trânsito ou ao equivalente órgão de registro e controle a expedição de certificado provisório de registro e licenciamento, em favor da instituição à qual tenha deferido o uso, ficando esta livre do pagamento de multas, encargos e tributos anteriores, até o trânsito em julgado da decisão que decretar o seu perdimento em favor da União.

 

Portanto, negada a liberação dos bens ou valores, estes ficarão em custódia do Poder Público. Havendo comprovado interesse público ou social, poderão ainda ser utilizados pelos órgãos ou entidades que atuem na prevenção ao uso indevido, reintegração e reinserção social de usuários e dependentes, e também na repressão ao tráfico, mediante autorização do juiz, após oitiva do Parquet, e desde que não cause prejuízos à produção processual[58].

 

Guilherme Nucci oferece os seguintes exemplos sobre a matéria[59]:

 

[…] pode a polícia ou outro órgão estatal valer-se, por exemplo, de um maquinário sofisticado, tomado de traficante, para a utilização em serviço de perícias ou equivalente. Tudo se faz sob a tutela e acompanhamento judicial. Abriu-se, ainda, a viabilidade de uma entidade assistencial de recuperação de dependentes de drogas fazer uso de algum bem útil a sua finalidade.

 

O caráter cautelar da nova Lei está claro para Luis Flávio Gomes, que leciona que “a nova Lei de drogas buscou facilitar ao máximo a possibilidade de utilização dos bens apreendidos pelo Estado na luta contra as drogas e na proteção ao usuário” [60].

 

O artigo 62, nas palavras de Marcello Granado, representa providência digna de homenagens, pois pacificou o procedimento quanto à regularização do uso de veículos apreendidos[61].

 

A partir da nova lei, se for autorizado o uso, o juiz ordenará à autoridade de trânsito ou equivalente que expeça certificado provisório de registro e licenciamento em favor da autoridade policial ou órgão diverso a quem tenha sido deferido o uso[62].

 

O caput do artigo 62 trata da apreensão dos meios em transporte em geral e dos bens móveis, encontrados no local onde foi praticado qualquer dos delitos da Lei n°. 11.343/2008, os quais devem ficar sob a guarda da Polícia Judiciária (o delegado estadual ou federal).

 

A utilização dos veículos apreendidos pelos órgãos policiais deve ocorrer somente para o combate ao tráfico de drogas (§1°), e se a apreensão recair sobre valores com finalidade de ordem de pagamento, deve a autoridade policial requerer vista ao Ministério Público, a quem compete requerer ao juízo de forma cautelar a conversão em moeda nacional e o depósito em conta judicial (§3°).

 

Por fim, comprovada a relação entre os objetos que foram apreendidos e o crime praticado da Lei Antidrogas, poderá o Juiz determinar Hasta Pública para a devida alienação, mas somente para os bens que perecem de depreciação econômica em curto prazo (§7°). E, assim que forem convertidos os bens em dinheiro, este será depositado em conta judicial (§9°).

 

 

5 CONCLUSÃO

 

O presente trabalho científico se dispôs a analisar de forma crítica as principais inovações instituídas pela Lei n°. 11.343/2006, a nova lei Antidrogas.

 

Sem dúvida a principal inovação diz respeito à mudança do tratamento penal dispensado ao usuário e ao dependente de drogas. Estes passam a ser considerados indivíduos doentes, que necessitam de cuidados médicos, e não mais como criminosos tratados com todos os rigores legais.

 

A partir dessa mudança, foi dada maior ênfase às medidas de prevenção do uso, atenção e reinserção social do usuário e dependente, equilibrando-se a importância dessas políticas à mesma importância costumeiramente conferida às políticas de repressão ao uso e tráfico ilícito.

 

Acredito que a nova posição jurídica, mais complacente com o mero usuário e dependente, configura-se mais acertada e mais proveitosa ao combate às drogas. Retirando a aplicação de penas privativas de liberdade, o legislador buscou evitar que o consumidor de drogas, lançado nas prisões, fosse cooptado para o tráfico como forma de manter seu vício, o que implicava no aumento da cadeia desse comércio.

 

A retirada da pena de prisão, no entanto, não significa a ocorrência de abolitio criminis sobre essa conduta. Pelo contrário, a conduta permanece ilícita e continua sendo penalizada, porém, com penas restritivas de direitos. Só poderia falar-se em abolitio criminis se a conduta não mais provocasse resposta penal.

 

Por outro lado, a novel legislação aumentou o rigor punitivo dos crimes relacionados ao tráfico, desde os tipos penais referentes à produção quanto ao comércio e, como uma das maiores inovações, as condutas referentes ao financiamento e custeio do tráfico. Desta forma, busca-se reprimir os agentes que verdadeiramente são responsáveis pela disseminação das drogas na sociedade.

 

A nova Lei, no entanto, não pode ser considerada perfeita. Antes mesmo de sua promulgação, teve algum de seus artigos vetados sob a alegação de inconstitucionalidade, como os artigos 6° e 8°, tratando sobre o SISNAD.

 

Da mesma forma, sofreu críticas quanto ao excessivo rigor de tratamento para diferentes condutas relacionadas ao tráfico, pois equiparou ao traficante, por exemplo, o indivíduo que dirige ou pilota sob o efeito de drogas, conduta esta que, a meu ver, não merece a mesma resposta penal conferida ao agente que transporta drogas, auxiliando o comércio ilícito.

 

Outra crítica que impende ser ressaltada é quanto à previsão de redução da pena para o agente incurso no crime de tráfico mais que se enquadra nas hipóteses do §4° do artigo 33 (réu primário, com bons antecedentes, sem dedicação a atividades criminosas nem relação com organização criminosa).

 

Uma vez que o crime de tráfico de drogas foi elevado a crime hediondo pela Lei n°. 8.072/1990 logo se tornou insuscetível de anistia, graça, indulto e fiança, a previsão da Lei n°. 11.343/2006 de minorantes da pena representa verdadeiro contrasenso face as disposições da citada Lei de Crimes Hediondos. O referido parágrafo da nova Lei Antidrogas autoriza a redução da pena um sexto a dois terços para os crimes previstos no artigo 33, contrariando o rigor previsto pela Lei de Crimes Hediondos e própria nova Lei Antidrogas, na construção do seu capítulo II.

 

O que se percebe, portanto, é que a Lei. n°. 11.343/2006, apesar de representar um grande avanço para a legislação penal, quanto às posições jurídicas sobre usuários e traficantes, ainda necessita de aperfeiçoamento, particularmente quanto os tópicos ora apontados.

 

Apesar disso, a nova Lei tem se mostrado instrumento válido para o objetivo maior de combate às drogas, tratando com os devidos cuidados e rigores todas as partes envolvidas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

ALCÂNTARA, Gustavo Kenner. A Nova Lei de Tóxicos e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. Elaborado em 25/09/2006. Direitonet. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/ 29/04/2904/p.shtml>. Acesso em: 20 abr. 2008.

 

 

BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Comentários penais e processuais penais à nova lei de drogas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

 

 

BRASIL, Mensagem de veto nº. 724 de 23 de Agosto de 2006. da Presidência da Republica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Msg/Vep/VEP-724-06.htm.

 

 

CONVENÇÕES Internacionais sobre drogas. São Paulo. Disponível em: <http://www.imesc.sp.gov.br/infodrogas/convenc.htm>. Acesso em: 16 mai. 2008.

 

 

FERRARINI, Edson. O que devem saber pais, professores e jovens sobre tóxicos e alcoolismo. 8ª edição. São Paulo: DAG Gráfica e Editorial LTDA, 1998.

 

 

FRANCO, Alberto Silva. Leis Penais Especiais e sua Interpretação jurisdicional. Editora Revista dos Tribunais, vol. 2.

 

 

FRANCO, Paulo Alves. Tóxico: Tráfico e Porte. São Paulo: Lemos & Cruz, 2003.

 

 

FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Drogas: comentários à Lei n. 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2006.

 

 

GAMA, Ricardo Rodrigues. Nova lei sobre drogas – Lei 11.343/2006: comentada. 1.ª ed. Campinas: Russel Editores, 2006.

 

 

GOMES, Abel Fernandes [et al]. Nova lei antidrogas: Teoria, crítica e comentários à lei nº 11.343/06. Coordenação de Marcello Granado. Niterói: Impetus, 2006.

 

 

GOMES, Luiz Flávio [et al]. Lei de Drogas comentada artigo por artigo : Lei 11.343/2006, de 23.08.2006. Coordenação de Luiz Flávio Gomes – 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

 

GRADASCHI, Mariluze. Aplicação da justiça terapêutica aos dependentes de substâncias entorpecentes. Universidade de Passo Fundo. Campos Soledade, 2003. Disponível em: <http://www.anjt.org. br/index.php?id=99&n=99>. Acesso em: 13 mai. 2008.

 

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Vol. I. 10ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

 

 

GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos. Ed. São Paulo, 1990.

 

 

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Tóxicos: comentários, jurisprudência e prática (à luz da Lei 10.409/2002). Curitiba: Juruá, 2002.

 

 

JESUS, Damásio E. Direito Penal, Parte Geral, vol. I. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

 

 

MICHAELIS Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Melhoramentos, 2007. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/ moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=tráfico>. Acesso em: 17 mai. 2008.

 

 

NETTO, Sérgio de Oliveira. Não houve descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1155, 30 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=8864>. Acesso em: 26 abr. 2008.

 

 

NOVO relatório do UNODC: Mercado mundial de drogas mostra sinais de contenção. Distrito Federal, 2007. Disponível em: <http://www. unodc.org/brazil/pt/pressrelease_20072506.html>. Acesso em: 28 abr. 2008.

 

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas. 2 ed. ver. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

 

PROGRAMA de Prevenção ao Uso de Substâncias Psicoativas Licitas e Ilícitas. Campinas, 2003. Disponível em: <http://www.prdu.unicamp. br/vivamais/drogas.html>. Acesso em: 18 abri. 2008.

 

 

RELATÓRIO Mundial de Drogas 2007. Distrito Federal, 2007. Disponível em:  <http://www.unodc.org/pdf/brazil/ O%20Brasil%20no%20Relat%F3rio.doc>. Acesso em: 28 abri. 2008.

 

 

ROCHA, Silva M. Fundamentos da Farmacologia. Ed. Edaut Editora, 1973. In: VIEIRA, João. O magistrado e a lei antitóxicos. 2.ed.revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

 

RODRIGUES, Joaquim. Virtualidades e insuficiências do sistema de controlo das drogas.  Janus, 2002. Disponível em: <http://janusonline.pt.> Acesso em: 13 mai. 2008.

 

 

SCHILLING, Voltaire. A Revolução chinesa: da agressão ocidental ao maoísmo. Portal Terra: História por Voltaire Schilling. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/china_12.htm>. Acesso em: 20 mar. 2008.

 

 

SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Financiamento ou custeio para o tráfico e violação ao princípio “ne bis in idem”. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1788, 24 mai. 2008. Disponível em: <http://jus2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11303>. Acesso em: 26 mai. 2008.

 

 

THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.

 

 

VIEIRA, João. O magistrado e a lei antitóxicos. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

 



[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. vol.I. 10ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 54.

[2] Ibid, p. 54-5.

[3] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op. cit.  p. 122.

[4] Ibid.

[5] GAMA, Ricardo Rodrigues. Op. cit. p. 48.

[6] Ibid. p. 50.

[7] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op cit. p.40

[8] § 1o  O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.

[9] § 2o  Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

[10] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 101-2.

[11] Ibid. p.41-2.

[12] MICHAELIS Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Melhoramentos, 2007. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua= portugues-portugues&palavra=tráfico>. Acesso em: 17 Mai. 2008.

[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 317.

[14] THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 64.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 318.

[16] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op. cit. p.180.

[17] Ibid. p. 85.

[18] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 62.

[19] Ibid. p. 63.

[20] BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Comentários penais e processuais penais à nova lei de drogas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p. 112.

[21] Ibid. p. 84.

[22] GOMES, Luiz Flávio. Op. cit. p. 199.

[23] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 55-6.

[24] NUCCI, Guilherme de Sousa. p. 326.

[25] BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 85.

[26] GAMA, Ricardo Rodrigues. Op. cit. p. 57.

[27] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. Cit. p. 55.

[28] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op.cit. p. 91.

[29] THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Op. cit. p. 65.

[30] Ibid. p. 66.

[31] Ibid. p. 67.

[32] Ibid. p. 85.

[33] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op. cit. p. 201.

[34] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 331-2.

[35] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 71.

[36] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 332.

[37] Ibid. P.326.

[38] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op. cit. p. 208.

[39] GAMA, Ricardo Rodrigues. Op. cit. p. 208.

[40] GOMES, Luiz Flávio [et al]. Op. cit. p. 209.

[41] THUMS, Gilberto; PACHECO, Gilmar. Op. cit. p. 97.

[42] Ibid. p. 98.

[43] GOMES, Abel Fernandes [et al]. Op. cit. p. 101.

[44] BACILA, Carlos Roberto; RANGEL, Paulo. Op. cit. p. 138.

[45] SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Financiamento ou custeio para o tráfico e violação ao princípio “ne bis in idem”. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1788, 24 maio 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11303>. Acesso em: 26 Mai. 2008.

[46] Ibid.

[47] THUMS, Gilberto; PACHECO, Gilmar. Op. cit. p 100.

[48] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 113.

[49] GOMES, Abel Fernandes [et al]. Op. cit. p. 210.

[50] GOMES, Luiz Flavio [et al]. Op. cit. p. 285.

[51] NUCCI, Guilherme de Souza, Op. Cit. p. 366.

[52] Ibid.

[53] GAMA, Ricardo Rodrigues. Op. cit. p. 75.

[54] GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Tóxicos: comentários, jurisprudência e prática (à luz da Lei 10.409/2002). Curitiba: Juruá, 2002, p. 249.

[55] GOMES, Abel Fernandes [et al]. Op. cit. p. 216.

[56] GAMA, Ricardo Rodrigues. Op. cit. p. 75.

[57] Ibid.

[58] FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Op. cit. p. 114.

[59] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 367.

[60] GOMES, Luiz Flávio. Op. cit. p. 297.

[61] GOMES, Abel Fernandes [et al]. Op. cit. p. 220.

[62] Ibid.

Como citar e referenciar este artigo:
MORAES, Ricardo Ubaldo Moreira e. Nova Lei Antidrogas: Principais inovações da Lei nº. 11.343/2006 – Parte II. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/nova-lei-antidrogas-principais-inovacoes-da-lei-no-113432006-parte-ii/ Acesso em: 21 nov. 2024
Sair da versão mobile