A Lei 13.330/16 altera o Código Penal Brasileiro para acrescentar no crime de furto (artigo 155, CP) um § 6º., prevendo uma nova qualificadora quando o objeto material do ilícito for “semovente domesticável de produção”. O mesmo diploma cria, também no bojo do Código Penal Brasileiro, uma nova modalidade de “Receptação” com o “nomen juris” de “Receptação de animal”, novamente tendo como objeto “semovente domesticável de produção”.
Claramente ambas as alterações se dirigem ao recrudescimento da reação penal estatal contra os furtos e receptações de gado, conhecidos na doutrina como “abigeato”, modalidade criminal que tem crescido bastante e causado grandes prejuízos à atividade pecuária lícita.
No furto a nova qualificadora prevê pena de “reclusão de 2 a 5 anos” e, a exemplo do § 5º. do mesmo artigo (que qualifica o furto de veículos automotores que venham a ser transportados para outro Estado ou para o exterior), olvida a cumulação da pena pecuniária, o que, a nosso ver é uma falha terrível, em se tratando de crime patrimonial. O objeto material dessa nova qualificadora do furto é o “semovente domesticável de produção”. O semovente é aquela coisa que se move por si mesma, conforme ocorre com os animais em geral. Mas, no caso específico não se trata do furto de qualquer animal. Somente aqueles domesticáveis (ou seja, que podem ser domesticados) e de produção (aqueles que são criados com a finalidade de extração de produtos, exploração em trabalho, esporte etc. ou corte para fins comerciais e/ou industriais. Em suma, trata-se do gado de qualquer espécie (bovino, suíno, equino, caprino, ovino). Ademais, é possível dizer que também outros animais, desde que utilizados para produção podem ser objeto material, tais como cães, gatos, galinhas etc. criados para fins comerciais e não como animais de pura estimação. Esclarece o dispositivo que não importa para a aplicação da qualificadora se a subtração do semovente se dá com o gado “em pé”, ou seja, por inteiro, vivo ou “abatido ou divido em partes”, ainda que “no local da subtração”. Agiu bem o legislador ao fazer essa ressalva, tendo em vista que muitas vezes o “modus operandi” dos ladrões de gado consiste no abate e corte no próprio local, sendo fato que se a lei não especificasse essa conduta poderia haver divergência quanto ao alcance ou não da qualificadora nessas circunstâncias. Da forma como a lei foi redigida não há o que discutir; a qualificadora incidirá, sendo o gado subtraído vivo e inteiro, abatido ou mesmo abatido e seccionado, ainda que tudo isso feito no próprio local do furto.
Quanto a ser o animal “domesticável”, em alguns casos pode surgir discussão. Por exemplo, em casos de criadouros de espécimes silvestres devidamente autorizados.
Frise-se que com a tipificação da qualificadora do § 6º., mesmo que haja incidência de qualificadora dos § 4º., estas não poderão ser aplicadas, pois se tratam de figuras diversas que não se comunicam. É claro que a qualificadora do § 4º., por exemplo, num caso de concurso de agentes ou de rompimento de obstáculo, poderá e deverá ser avaliada pelo Juiz no momento de dosimetria da pena – base, nos estritos termos do artigo 59, CP (Circunstâncias Judiciais).
Na “Receptação” o legislador achou por bem criar um crime autônomo (artigo 180 – A, CP) com “nomen juris” próprio de “Receptação de Animal”. Novamente não se trata de qualquer animal, mas de “semovente domesticável de produção”, conforme acima já exposto.
Seguindo a tradição da “Receptação”, trata-se de um crime de ação múltipla, conteúdo variado ou tipo misto alternativo, ou seja, dotado de vários núcleos verbais, a saber: “adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender”.
Mas, não basta ingressar o agente nos núcleos verbais acima elencados, exige o tipo penal um “dolo específico”, qual seja, a especial finalidade de “produção ou comercialização”. Assim como o objeto material deve ser o “semovente domesticável de produção”, também pode ser este semovente receptado vivo (“em pé”) ou abatido ou mesmo abatido e seccionado em partes. Aqui o legislador não cometeu o mesmo erro que nas qualificadoras dos §§ 5º. e 6º. do artigo 155, CP e lembrou-se de agregar à reprimenda a multa.
Num primeiro passar de olhos pode parecer que o artigo 180 – A, CP seria dispensável, pois que já há qualificadora para aquele que perpetra receptação no exercício de atividade comercial ou industrial (inteligência do artigo 180, § 1º., CP), inclusive com previsão de pena reclusiva maior (Reclusão de 3 a 8 anos e multa, enquanto no artigo 180 –A, a reclusão é apenas de 2 a 5 anos e multa). No entanto, é preciso atentar para o fato de que o artigo 180–A, CP é mais amplo, pois não prevê especificamente a necessidade de que a conduta se dê no exercício da atividade comercial ou industrial, mas que ocorra para a finalidade de produção ou comercialização, o que pode ser esporádico ou amador. Dessa forma duas consequências ocorrem:
a)O artigo 180 – A, CP permite uma maior amplitude de casos em que o crime se configura com pena maior que o artigo 180, “caput”, CP, nos seus termos e que não seria qualificado de acordo com o artigo 180, § 1º., CP a exigir o efetivo exercício de atividade comercial ou industrial. Exemplificando: se um indivíduo, que não é pecuarista, mas deseja ter um cavalo, por exemplo, para fins de cruzamento, criação e posterior venda, ainda que esporádica e incerta, o adquire, incide no artigo 180–A, CP e não incide no artigo 180, § 1º., CP, pois que não pratica a conduta no exercício de atividade propriamente industrial ou comercial.
b)Quando ocorrer a situação em que o agente, além de, por exemplo, adquirir semovente domesticável de produção, o fizer efetivamente na prática de atividade comercial ou industrial haverá um conflito aparente de normas. Entretanto, a nosso ver, tendo em vista o Princípio da Especialidade, deverá prevalecer o artigo 180 – A, CP que trata especificamente da receptação de semoventes. Além disso, a pena do artigo 180 – A, CP é mais branda, o que traz à baila o Princípio do “Favor Rei”. Releva anotar que com o advento da Lei 13.330/16 e a nova figura do artigo 180 – A, CP, opera-se para todo aquele pecuarista que, na atividade própria (comercial e/ou industrial) receptou gado, o fenômeno da “novatio legis in mellius”, devendo o dispositivo retroagir a fim de beneficiar o réu. Neste caso específico parece que o legislador deveria ter previsto também um aumento da reprimenda nos casos da receptação qualificada do § 1º., do artigo 180, CP quando o objeto material fosse semovente domesticável de produção, já que nada está a indicar a correção de uma lei que beneficie o receptador de gado que o fez na atividade comercial e/ou industrial.
Assim sendo, entrando em vigor a lei na data de sua publicação (02.08.2016), não poderá retroagir no que diz respeito ao caso da nova qualificadora do furto (artigo 155, § 6º., CP), pois que se trata, evidentemente, de “novatio legis in pejus”, aplicável somente para os casos ocorridos após seu vigor. Isso para os furtos de gado simples, cuja pena seria menor (Reclusão de 1 a 4 anos). Já para os casos de furto qualificado de gado, deverá a nova qualificadora retroagir, eis que o § 4º., até então aplicável, tem pena bem maior (Reclusão de 2 a 8 anos), tratando-se então de “novatio legis in mellius”. Esse não parece ser o melhor caminho. O legislador deveria ter previsto uma pena mais gravosa para o furto de gado qualificado de acordo com o § 4º., do artigo 155, CP para evitar essa distorção. Porém, com a aplicação do Princípio da Especialidade e do “Favor Rei” no conflito aparente entre os §§ 4º. e 6º. o réu será beneficiado com o adento da Lei 13.330/16.
Por outro lado, no caso do artigo 180 – A, CP também não poderá haver retroatividade se a receptação for de pessoa que não atua como comerciante ou industrial, já que nesses casos há uma reprimenda maior do que a prevista na receptação simples que seria aplicável até então (artigo 180, “caput”, CP) – “novatio legis in pejus”. Sem prejuízo, haverá “novatio legis in mellius”, com necessária retroação para todo aquele comerciante e/ou industrial que, na atividade específica, receptou gado. Isso porque antes respondia pelo artigo 180, § 1º., CP e agora, devido à especialidade criada pelo novel artigo 180 – A, CP, tem a reprimenda abrandada.
Outro aspecto relevante diz respeito ao elemento subjetivo do tipo descrito na expressão “que deve saber ser produto de crime”. Ao não exigir que o agente saiba efetivamente da origem criminosa do gado, mas que apenas “devesse saber”, está o legislador inexigindo o dolo direto e admitindo, portanto, o dolo direto e o dolo eventual, senão até mesmo a receptação culposa. A questão é tormentosa na doutrina desde o advento da receptação qualificada do artigo 180, § 1º., CP que usa a mesma técnica redacional. Entretanto, o STJ já se manifestou pela abrangência ampla do dolo direto e do dolo eventual na expressão “deve saber”, o que nos parece correto (ver a respeito STJ, HC 97.344, 2ª. Turma, Rel. Min. Ellen Gracie).
A ação penal tanto para o novo furto qualificado quanto para a nova modalidade de receptação é pública incondicionada.
É também importante lembrar que no novo furto qualificado e na nova modalidade de receptação não se podem aplicar quaisquer benefícios da Lei 9099/95, inclusive a suspensão condicional do processo de acordo com o artigo 89 deste último diploma. Isso porque a pena mínima cominada abstratamente supera a um ano. Além disso, a infração é inafiançável para o Delegado de Polícia, nos termos do artigo 322, CPP, pois a pena máxima ultrapassa quatro anos. Isso não significa que o Juiz não possa conceder liberdade provisória com ou sem fiança posteriormente (vide artigo 322, Parágrafo Único, CPP).
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial no Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.