1- Introdução
Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria (Milão, 15-3-1738 / 28-11-1794) não tinha formação jurídica, economista que era, mas defendeu, no chamado Século das Luzes (séc. XVIII), um sistema criminal que substituiria o desumano, impreciso, confuso e abusivo sistema vigente ao publicar o livro Dei Delitti e Delle Pene[i] (julho de 1764, Milão). Em que consistiria o maior mérito do trabalho de Beccaria? Por que sua leitura, ainda hoje, é obrigatória para os estudantes de Direito?
2- O Livro Dos Delitos e Das Penas
Por correr risco de morte pelas ideias ali expostas, as primeiras seis impressões do pequeno opúsculo foram apócrifas. De leitura fácil e simples, foi um sucesso editorial sendo traduzido para vários idiomas em curto espaço de tempo num momento histórico onde a maioria das pessoas era analfabeta. O conteúdo não era original, senão um resumo das ideias dos filósofos contemporâneos. Não é original de Beccaria, portanto, aquele pensamento humanista de política criminal. É um compêndio do contratualismo e do utilitarismo que formaram a ideologia do humanismo do século XVIII. Seu mérito foi falar claro, dirigindo-se ao grande público e estimular os práticos a reclamarem reformas dos legisladores. Criticou a justiça inquisitiva; pugnou pela separação entre a Igreja e o Estado, a religião e o direito, o delito e o pecado; pugnou pelo uso da razão; sistematizou princípios orientadores do atual sistema penal. Considerava que as prisões não deveriam predominar a sujeira e a fome, defendendo uma atitude humanitária e compassiva na administração da Justiça. Inaugurou-se, assim, uma época de sobriedade punitiva que ainda encontra grandes obstáculos entre nós. Beccaria viu na penitência católica de reclusão uma pena privativa de liberdade substitutiva das penas capitais e corporais. Considerava que o principal direito fundamental da pessoa é o direito à vida de forma que a pena de morte fere o referido direito considerando-a ilegal em sua essência, além de ser inútil devido à constatação de que, nos locais em que já havia sido aplicada, os crimes não diminuíram.
O livro foi incluído no Index Librorum Prohibitorum, em tradução livre o Índice dos Livros Proibidos, que foi uma lista de publicações proibidas pela Igreja Católica no ano de 1766 e só foi suprimido dali em 1966 com o Concílio Vaticano II.
Os pensamentos de Beccaria, com algumas modificações, transformaram-se em sistema positivo com as Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão que, aprovadas em 1791, influenciou Constituições e quase literalmente foram implantadas nos primeiros códigos penais do mundo ocidental como o da França, o da Baviera e mesmo o Código Criminal do Império do Brasil (1830).
3- Rousseau e o contratualismo como base do livro
Beccaria foi um dos representantes do Iluminismo sendo influenciado por Voltaire, Diderot, Montesquieu, Locke dentre tantos outros. Mas, é a ideia do contrato social que perpassa por todo o seu trabalho. Jean-Jacques Rousseau, de Genebra (1712/1778), deu forma clara e racional à consciência do final do século XVIII. Verdadeiramente foi o intérprete, como nenhum outro, das necessidades ideais de seu tempo. Os ideais de justiça, uma consciência vivíssima do dissídio entre o ser e o dever ser é o que se lê em seu Contrato Social (1762).
O contrato social representa, segundo Rousseau, a forma ideal de garantia. É necessário que os indivíduos, em determinado momento, confiem os seus direitos ao Estado, o qual depois os retorna a todos, mudando o nome (não serão mais direitos naturais, mas direitos civis). A ideia no contratualismo é a de que o homem era bom antes da civilização. Com a civilização, os mais fortes se impuseram e corromperam o estado da natureza. Criaram-se injustiças. Sendo impossível voltar ao estado da natureza, é necessário um substituto: o contrato social. Essa ideia do contrato pressupõe a existência de um “acordo” entre cidadãos e com fundamento nesse acordo justifica-se a existência da pena, sob a suposição de que é imposta a um ser livre que violou o pacto. Rousseau disse-o assim:
“Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se neste estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria. […] ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes’. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece.”[ii]
A violência, a opressão, a iniquidade da Inquisição são razões de ordem prática inspiradoras do movimento. Fizeram surgir o jusnaturalismo de Grócio e o contratualismo de Rousseau[iii]. As duas coincidiam no fundamental: há normas jurídicas anteriores e superiores ao Estado e isso contesta a tirania, nada obstante relevar o individualismo. O direito é superior em força-histórica porque resultante da natureza do homem, imutável e eterno (direitos de primeira geração). Somente com o Estado isso seria possível através da teoria do contrato social. Este contrato é uma forma de associação que defende e protege as pessoas e bens do associado que cede parcela de seus direitos. O Estado só existe para essa garantia de liberdade e igualdade. Seriam, ainda, esses direitos denominados negativos porque nasceram antes da própria concepção de Estado. O contratualismo de Rousseau diz que a ordem jurídica é resultante do livre acordo entre os homens que abrem mão de uma parte dos seus direitos no interesse da ordem e segurança comum. Há um choque entre a razão eterna e o acordo de vontade, mas a conclusão é a de que a existência de normas anteriores e superiores ao Estado não legitimam a tirania.
Beccaria menciona claramente o contrato social nos dois primeiros capítulos de sua obra Dos Delitos e das Penas, e deixa-se influenciar no restante do trabalho:
“Assim sendo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.”[iv]
O objeto de trabalho de Beccaria não era a lei aplicada, pois foi seu principal opositor. Não se trata de um livro de estudo de direito positivo. Este direito positivo estava em descrédito máximo devido às arbitrariedades. Beccaria pôs-se a construir sobre o direito natural, de forma a sistematizar o Direito Penal no jusnaturalismo. A ideia era sistematizar um conjunto de conceitos abstratos, de princípios para conduzir qualquer delito. Então, se acreditava em um direito superior, uma ordem superior que seria o direito natural. Usava-se o método da observação, em um pensamento abstrato onde se imagina um mundo ideal, racional (uso da razão) a ser perseguido numa mescla do racionalismo cartesiano e empirismo inglês. O contratualismo também marcou o início do processo de pensar uma Filosofia do Direito Penal, uma busca de fundamentação filosófica da ciência do Direito Penal com início de conceitos como de delito, responsabilidade penal, pena etc.
4- Beccaria: Precursor da Escola Clássica de Criminologia
Cesare Beccaria abre caminho para o movimento da denominada pejorativamente por Ferri “Escola Clássica de Criminologia”, clássico num sentido de “velho, antigo”. É ponto pacífico que a Criminologia, como ciência, surge com os positivistas. Também é verdade que Beccaria não encabeçou Escola nenhuma, mas seu trabalho fez muito sucesso e virou um marco servindo de base crítica, inclusive, da Escola Positivista que só se deflagra a partir da crítica à concepção estruturada no Iluminismo.
A Escola Clássica se caracteriza por sua linha filosófica, de cunho liberal e humanitário, cujo principal alicerce era a ideologia da defesa social, neste ponto idêntico ao positivismo. Centrada em Beccaria, integrada pelos não positivistas e capitaneada por Carrara, em verdade, não há escola alguma precisamente porque não se pode falar em “um” pensamento uníssono. Eram grandes e variadas as correntes de pensamentos que a compunha (Revolução Francesa, Idealismo alemão, Iluminismo, Kant, etc.) Para Ferri foi “conveniente” classificar (ou rotular) todo pensamento que não compartilhava do seu ponto de vista positivista como “clássico”. Jamais existiu “a” Escola Clássica, a não ser na invenção de Ferri. Tão somente ocorreu o enfrentamento entre os positivistas e aqueles que não compartilhavam com tal pensamento (Zaffaroni). A Escola perdeu espaço porque não foi eficaz contra a criminalidade, nem às exigências teóricas das novas posições filosóficas ou dados científicos sobre o Homem e a Sociedade.
Não se pode perder de vista que a teoria do contrato social é burguesa porque insiste em recompensar as atividades lucrativas e castigar as prejudiciais.
A Escola Clássica durou mais de um século, deixou vasta bibliografia e não há homogeneidade ou coerência de opiniões. Diversos foram os pontos de vista de muitos de seus representantes, mas pode-se fixar um esquema de princípios para caracterizar a Escola principalmente no que ela pensou do crime, da responsabilidade penal e da pena. Muitos desses princípios estão estampados no Dos Delitos e das Penas e persistem ainda hoje em dia. São exemplos: crime seria um ente jurídico, não uma ação, mas uma infração; não fato do homem, como condicionado ou natural, mas moral. Após, Carrara desenvolveu essa ideia e é tido como o criador da dogmática penal (clássico) com o início da elaboração do exame analítico de crime. O fundamento da responsabilidade penal é a responsabilidade moral com base no livre arbítrio, supõe vontade inteligente e livre, o que tornou fundamental a separação entre imputáveis e inimputáveis, fato desenvolvido pelos positivistas.
Paul Anselm von Feuerbach também é muito importante pensador clássico para a dogmática penal (Tratado de Direito Penal, 1801). Aponta que a pena é prevenção vendo na sanção um meio de alcançar a ordem e a segurança social, um meio de deter o criminoso potencial no limiar do delito. A pena não é retribuição, mas prevenção. O fim do Direito Penal seria a prevenção geral por meio da coação psicológica exercida pela ameaça da pena contida na lei. Admitiu o princípio da absoluta legalidade dos crimes e das penas e deu-lhe a expressão: “Nullum crimen, nulla poena sine lege”. Fez o Código Penal da Baviera em 1813 e influenciou toda uma geração. É marcante a influência de Beccaria pois, “Para que uma pena seja justa, só deve ter aqueles graus de intensidade que bastem para dissuadir os homens dos delitos; […]”[v].Não há preocupação à reabilitação moral do criminoso. A penalidade adequada é aquela que atende a esse sentido pedagógico. A questão não é sobre a moralidade do ato do criminoso, mas a eficiência de uma pena que ameace ao ponto de dissuadir o criminoso a cometer o crime.
Depois de Feuerbach vieram Kant (1724–1804), que se opôs, no ponto, ao Iluminismo ao dizer que a pena é retribuição ética, e Hegel (1770 – 1831) que reelaborou Kant dizendo que a pena mais do que retribuição ética é retribuição jurídica. Como o crime nega o Direito, a pena nega o crime, ou seja, reafirma Direito. Karl Binding, na sequência, apontou que a pena é direito e dever do Estado. Na aplicação da pena, deve-se considerar fato e não o delinquente, mas a pena deve ser proporcional à culpabilidade.
5- Críticas ideológicas à concepção iluminista do Direito Penal
Houve um consenso do que representava a moral e o crime foi apresentado como um comportamento irracional, mas não-patológico. Por isso, procura-se “reabilitar” através da sanção. Esse ponto do racional / irracional é baseado na utilidade (utilitarismo) ou não do ato (Bittencourt). A teoria pressupõe a igualdade absoluta entre todos os homens por pressupor uma liberdade de ser e agir e nisto reside uma ideologia perigosa porque legitima a tirania (Pierre Chaunu). Escolhe-se ser criminoso, por conta e risco, isentando-se qualquer responsabilidade social ou estatal. A ideia de que o criminoso rompeu o pacto social, cujos termos supõem-se os tenha aceitado, converte-o em inimigo da sociedade. Tal inimizade levá-lo-á a suportar o castigo que lhe será imposto. Nisto reside uma tirania perfeita: não é o soberano que, por delegação, exercerá a vingança, mas será o corpo social, a sua totalidade, que se comprometerá na operação de controle e separação.
Os fins da pena também seguem essa ideologia. Beccaria tinha uma concepção utilitarista da pena. Era um exemplo para o futuro e não uma vingança pelo passado. O objetivo da prevenção geral não precisava ser obtido pelo terror, mas pela eficácia e certeza da punição. Não se admitia o caráter aflitivo da pena porque a mesma visava a recuperação do condenado (prevenção especial positiva). Defendia-se que não se poderia demorar a aplicá-la porque geraria angústia ao réu. Mas, é inevitável compreender a pena como retribuição do mal praticado.
6- Conclusão
A “humanização” das sanções criminais, até então espetáculos de crueldade, foi duramente criticada. Entretanto, ainda continua sem solução. Com este pequeno livro, entretanto, virou-se a página da violência institucionalizada pelo Estado, da pena como espetáculo grotesco e público. Consagrava-se o suplício e Beccaria foi um dos primeiros a criticar a pena como espetáculo de barbárie defendendo uma prisão pronta, necessária, proporcional ao delito e pré-determinada pela lei. Esta lei que deveria vir escrita na língua materna da pessoa, pois, até então, as leis eram escritas em latim e ficavam inacessíveis. Na época, confundia-se, ainda, crime com pecado, a tortura era legítima para se descobrir a “verdade”, as punições variavam de acordo com o nível social do acusado ou se pertencia ao Clero. Não se pode perder de vista que o mérito de Beccaria foi traduzir as ideias que pairavam no ar em sua época, o seu maior mérito foi ter coragem de escrever um livro de fácil entendimento do que já nas universidades se discutia em grau mais complexo. No livro se pode observar a maioria dos princípios do Direito Penal como a legalidade, igualdade, proporcionalidade, publicidade e humanidade. Por isso é um clássico, no sentido positivo, do Direito Penal e sua leitura se torna obrigatória a qualquer estudante de Direito.
Bibliografia
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidiani; Alessandro Beeti Contessa. Rev. Roberto Leal Ferreira. SP: Martins Fontes, 1997.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1992.
BELO, Warley. Da Aplicação da Lei Penal. Florianópolis: Clube de Autores, 2015.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte 1, 17ª. edição, São Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES, Luiz Flávio. Beccaria: 250 anos. São Paulo: Saraiva, 2012.
ROUSSEAU. J-J. O Contrato Social. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2005.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apuntes sobre el pensamiento penal em el tiempo. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
Warley Belo
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Advogado Criminalista
[i] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidiani; Alessandro Beeti Contessa. Rev. Roberto Leal Ferreira. SP: Martins Fontes, 1997.
[ii] ROUSSEAU. J-J. O Contrato Social. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2005, p. 69-70.
[iii] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004, p. 91.
[iv] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1992, p. 15.
[v] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidiani; Alessandro Beeti Contessa. Rev. Roberto Leal Ferreira. SP: Martins Fontes, 1997. p. 97.