Direito Penal

Criminalidade de fronteira

Criminalidade de fronteira

 

 

Cândido Furtado Maia Neto*

 

 

Necessário se faz, dirimir dúvidas e aclarar algumas questões jurídicas relacionadas com as atribuições dos órgãos de segurança pública encarregados da prevenção e repressão da delinquência praticada na Ponte Internacional da Amizade (inaugurada em 27.3.1965, pelos Presidentes Castelo Branco, e Alfredo Stroessner), como os crimes de furtos, roubos, receptação, enfim, toda espécie de ilícitos contra o patrimônio que vem afugentam turistas e causando sérios prejuízos às economias do Brasil e do Paraguai.

 

São delitos cometidos por brasileiros ou estrangeiros imputáveis em parceria ou em conjunto com inimputáveis (menores de 18 anos de idade), configurando ademais, o crime de corrupção de menores (Lei n. 2.252/54).

 

A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, característica essencial do regime Democrático de Direito, que tem como um dos fundamentos a soberania territorial, do governo e das leis, assim expressa a Carta Magna promulgada em 05 de outubro de 1988.

 

Os bens públicos de interesse comum e que servem à defesa nacional, se justificam como de domínio federal, “verbi gratia”: os mares (golfos, baías, praias, portos), estradas, ruas, praças, lagos e rios (grifo nosso), navegáveis ou não, e suas respectivas margens, cabem como porção do território nacional indispensável para a defesa das fronteiras.

 

Segundo a doutrina constitucionalista contemporânea o poder de jurisdição de um país termina onde começa o do vizinho.

 

Ressalte-se que, quando rios internacionais simultaneamente separam territórios de dois países (ex.: rio Guaporé divide Brasil/Bolívia; rio Iguaçu, Brasil/Argentina; rio Paraná fronteira entre Brasil/Paraguai), estamos diante de três teses jurídica oferecidas e apresentadas pela jurisprudência, literatura e doutrina especializada, para a efetividade e aplicação da norma penal em estudo e referência.

 

i) linha mediana do leito do rio, determinada pela equidistância das margens;

ii) limite da fronteira estipulado pela orla do rio, onde todo o curso d’água fica submetido à soberania de um só Estado; e

iii) linha que acompanha a maior profundidade da corrente (chamada de “talvegue” ou canal de navegação principal), ponto divisório determinado, algumas vezes à esquerda, outras mais à direita, nunca é fixo, pois oscila de acordo com o canal de navegação determinado pelos bancos de areias.

 

A Diretoria de Portos e Costa da Marinha brasileira, sediada no Rio de Janeiro, tem regido instruções à Capitania dos Portos do rio Paraná – órgão de execução, em Foz do Iguaçu -, para que siga a linha do “talvegue”, em base a batimetria – verificação da corrente mais profunda das águas oceânicas ou lacustres – do rio Paraná. Quando sob a Ponte da Amizade, o “talvegue” passa pelo vão central da Ponte, exatamente no seu meio, cuja extensão total mede 552,40 metros. Assim, a ilha Icaraí pertence na sua integralidade ao território brasileiro, como terreno de marinha, vez que o “talvegue” encontra-se mais ao lado da margem paraguaia.

 

Após a construção da barragem e a abertura das turbinas da Hidroelétrica de Itaipu Binacional, no ano de 1982, o “talvegue” do rio Paraná, na parte posterior as comportas, especificamente, onde divide as cidades de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, vem sofrendo alterações quase que diariamente, vez que a hidroelétrica controla o fluxo d’água fazendo subir e baixar o seu nível, arrastando e removendo areias e porções de terra de um lugar para outro; razão pela qual, com um serviço constante de batimetria pode-se afirmar que a linha do “talvegue” – canal mais profundo do curso das águas – é mutante.

 

Por outro lado, se as águas de um rio é comum a dois Países, torna-se indivisa, cada Estado exerce soberania concorrente sobre ele. Por exemplo, o rio Paraná é comum ao Brasil e ao Paraguai, portanto, o “ius dominii” brasileiro vai até a margem do território paraguaio, e vice-versa. As autoridades policiais dos dois Países estão autorizadas legalmente para atuarem sobre todo o rio, e por consequência sobre toda a Ponte Internacional da Amizade. (ver Jesus de E., Damásio, in “Código de Processo Penal Anotado”, 7a. ed. Saraiva, SP, 1989, pg. 99).

 

As águas do rio Paraná são públicas e de uso comum para o Brasil e para o Paraguai, porque é perene, limita de forma natural os territórios das Repúblicas e interessa às respectivas seguranças públicas, onde a navegabilidade dos trechos é compartilhada, o que reforça o conceito de “res comunes”, principalmente pelo aproveitamento da energia elétrica gerada pela ITAIPU BINACIONAL (ver Código de Ãguas – Decreto-lei nº 24.643, de 10-7-1934).

 

Documentos internacionais de direito público, como Atas, Declarações e Tratados, firmados entre o Brasil e o Paraguai, caracterizam efetivamente o uso comum do rio Paraná, oficializando o pleno aproveitamento dos recursos hidraúlicos produzidos, desde o Salto Grande de Sete Quedas ou Salto de Guairá até a foz do rio Iguaçu, na mais franca, ampla e leal colaboração, assim dispõem:

 

a) a Ata de Iguaçu de 22.6.66, publicada no D.O.U. em 8.8.66, pg. 9.061/2).

b) a Declaração Conjunta Brasil-Paraguai, de 26.04.73;

c) o Tratado entre o Brasil e o Paraguai, de 26.04.73; e

d) o Tratado de Amizade e Cooperação entre a República Federativa do Brasil e a República do Paraguai – Decreto n. 77.879, de 22.06.76, que promulga o Tratado, publicado no Diário Oficial da União de 23.6.76, pgs 8.724/5).

 

Nos rios internacionais de curso sucessivos a soberania é compartilhada, cada Estado aproveita suas águas conforme a necessidade, sempre que não cause prejuízos sensíveis ao outro Estado, prevê a Declaração de Assunção sobre Aproveitamento de rios internacionais, de 03.6.71 – IV Reunião de Chanceleres dos Paises da Bacia do Prata;

 

Diz a Constituição federal brasileira, no artigo 20, inc. II: “são bens da União, os lagos e rios limítrofes com outros países. A Carta Magna da República do Paraguai, promulgada em junho de 1992, estabelece no art. 154, que o território nacional jamais poderá ser cedido, ainda que temporariamente, a nenhum País.

 

“O território é um elemento que oferece grande interesse para a construção jurídica do Estado, posto que sobre ele se acha instalada a comunidade nacional”. São quatro as teorias jurídicas formuladas para explicar a relação Estado/território, este elemento constitutivo daquele, a saber:

 

i) Teoria do território como elemento constitutivo do Estado;

ii) Teoria do território-objeto;

iii) Teoria do território-limite; e

iv) Teoria da competência.

 

A última mais atual e dominante na literatura do direito público internacional considera território toda a área que se executa um sistema de normas jurídicas. (ver Rousseau, Charle, in “Derecho Internacional Público”, ed. Ariel, Barcelona, 1966).

 

Alguns juristas definem limite de maneira diferenciada do termo fronteira, o primeiro, como uma linha, o outro corresponde a zona que se estende a cada lado da linha. Portanto, a fronteira é um espaço reservado para a competência estatal.

 

Outro ponto a ser apresentado é a determinação legal a respeito da divisão dos territórios entre Brasil e Paraguai, no tocante ao lago de ITAIPU. O limite lacustre – artificial -, da fronteira passa pelo centro do lago. Quando há ilha, para se evitar divisão, a fronteira é aquela que rodeia a porção de terra cercada de águas por todos os lados.

 

A lei penal brasileira aplica-se, sem prejuízo das regras do direito internacional, ao crime – e infrações de menores, exceto ilícitos criminais definidos como contravenções – cometido no território nacional (Código Penal art. 5º).

 

Em respeito ao princípio da territorialidade, o lugar do crime dar-se-á, onde ocorreu a ação ou a omissão, no todo ou em parte (art. 6º CP). Momento do “iter”, quando qualquer ato executório haja ocorrido em nosso território, embora o final só venha a eclodir em País estrangeiro.

 

Ninguém, nacional ou estrangeiro, residente ou em trânsito no Brasil, poderá subtrair-se à lei penal pátria, por fatos delituosos considerados como tal e aqui praticados.

 

Os delitos perpetrados no território paraguaio serão castigados na forma do Código Penal da República, sejam cidadãos paraguaios ou estrangeiros (art. 8º).

 

Todos são iguais perante a lei, reza a “lex fundamentais” (art. 5º “caput” Constituição federal brasileira), sem distinção de qualquer natureza – princípio da isonomia ante a lei e ao trato perante os Tribunais -, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros à segurança pública, de igual forma e maneira.

 

Visando a cooperação internacional na luta contra o crime, ficam sujeitos à lei brasileira embora cometidos no estrangeiro – princípio da extraterritorialidade -, os crimes que por Tratado ou Convenção o Brasil se obrigou a reprimir – princípio da Justiça universal ou cosmopolita -; bem como: aqueles crimes praticados por brasileiros, por estrangeiros contra brasileiros fora do Brasil – princípio da nacionalidade ou da personalidade-, a lei brasileira acompanha o nacional onde quer que se encontre, seja ele autor ou vítima de infração penal.

 

Se o fato também for punível no estrangeiro e não ter sido o agente processado ou julgado pelas autoridades competentes do determinado país, este ao entrar no território nacional deverá ser julgado pela Justiça brasileira. Exemplo, os crimes de furto/roubo cometidos em território paraguaio, por brasileiros ou alienígenas (art. 385 CP paraguaio), obriga às autoridades daquele País adotarem as devidas providências, caso não o façam, deve-se observar as regras do art. 88 do Código de Processo Penal (Dec. lei n. 3.689/41), a jurisprudência pátria os previstos em Tratados e Convenções (art. 109,V – CF) Justiça Federal (TFR, RC 324, Heleno Cláudio Fragoso, Jurisprudência criminal, 1979, 1/78, A; TJRS, RT 606/379). Em território comum estrangeiro: Justiça Comum (STF, RT 474/382; TJRS, RT 606/373 e 379).

 

Quando incerta a competência, na hipótese de dúvida a respeito dos limites, determinar-se-á através da prevenção, ou seja, a autoridade que se antecipar na pratica de algum ato.

 

Em caso inverso, quando duas autoridades processam e julgam o mesmo crime, aplica-se o princípio da detração (art. 8º CP), onde a sanção cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil – princípio “no bis in idem” -, onde ninguém pode ser processado ou julgado duas vezes pelo mesmo fato, ou ainda, poderá ocorrer a homologação da sentença estrangeira pelo Supremo Tribunal Federal, quando produzir as mesmas consequências (art. 9º CP).

 

A Polícia Federal por exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras, destina-se a apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União; delitos de tráfico e consumo de drogas, exclusivamente que tenham conexão internacional; contrabando e descaminho, etc.

 

Por sua vez, a Polícia Civil tem atribuições de polícia judiciária estadual, para investigar, entre outros, os crimes de receptação, furto e roubo de veículo, bem como as diversas infrações cometidas por menores de dezoito anos.

 

Cabe a Polícia Militar caracteristicamente ostensiva, a tarefa de preservação da ordem pública do Estado.

 

Diante do exposto, e da complexidade das situações é possível através de Convênio expresso e/ou tácito a solidariedade entre órgãos de segurança pública (ver art. 144 CF), para garantir a eficiência das operações de repressão ao crime, sem que, com isso, se materialize qualquer espécie de arbitrariedade ou desvios de atribuições.

 

O Regulamento para o Tráfego Marítimo nacional (Dec. n. 87.648, de 24 de setembro de 1982, alterado pelo Decreto n. 511, de 27 de abril de 1992), pode servir de exemplo, quando expressa que não compete a Polícia Naval a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos, sem prejuízo da colaboração eventual, quando solicitada (parágrafo 1º do art. 269).

 

Devemos fazer uma interpretação sistemática do Art. 142, caput e § 1° e Art. 144, caput, incisos I a V, da CF/88 c/c Art. 15, § 2°, da LC N° 97/99, onde a Constituição da República Federativa do Brasil (05.10.1988), prevê:

 

“Art. 142, caput. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia a na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria (missão externa – principal), à garantia dos poderes constitucionais e, por de qualquer destes, da lei e da ordem (missão interna – secundária)”. (Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas – CAPÍTULO II – DAS FORÇAS ARMADAS).

 

§ 1° Lei complementar estabelecerá as normas a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”. Lei Complementar n° 97, de 09.07.1999: EMENTA “Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas”. (LC N° 97/99) “Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria (missão externa – principal) e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (missão interna – secundária), e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observadas a seguinte forma de subordinação”. (LC N° 97/99) “Art. 15, § 2°. A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem (missão interna – secundária), por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais (Pres. STF, Sen. Fed. e Câm. Dep., LC N° 97/99, art. 15, § 1°), ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas e ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal”.

 

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– Trabalho para o FORUM DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL SOBRE O CRIME ORGANIZADO, realizado de 23 a 25 de Novembro de 2005, em Foz do Iguaçu, com promoção do Instituto Europeu das Nações Unidas para Prevenção e Controle do Crime.

 

 

* Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro do Movimento Ministério Público Democrático.Professor Pesquisador e de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – Missão MINUGUA 1995-96). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, na área criminal (1992/93). Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
NETO, Cândido Furtado Maia. Criminalidade de fronteira. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/criminalidade-de-fronteira/ Acesso em: 22 nov. 2024
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