1. A AÇÃO PENAL PRIVADA E SUAS CARACTERÍSTICAS EXTRAORDINÁRIAS DE PROCEDIBILIDADE
Ato preambular para o desencadeamento do devido processo penal legal, a ação processual penal é a trivial
manifestação pela qual o titular da pretensão de requerer ao Estado a punição de um (suposto) autor do delito propugna de modo formal e inequívoco o
exercício desta prerrogativa.
Com efeito, ao longo do decurso histórico da evolução visando a consolidação de uma teoria relacionada a ação penal, a comunidade
científico-jurídica estabeleceu inúmeros conceitos para arrematar uma competente explicação sobre o que, de fato, vem a ser esse momento de deflagração do processo em sede de natureza jurídica.
Assim, após inúmeras noções em busca do que realmente é a ação penal – que vão desde a teoria imanentista do direito romano,
passando pela teoria civilista de Savigny, a da ação como situação jurídica de
James Goldschimidt e a eclética de Liebman – atualmente há um verdadeiro manancial de concepções sobre o tema, o qual, na maior parte das vezes,
agrega uma conjugação de partículas de todos os raciocínios propostos no decurso da evolução científica da matéria, havendo assim uma mixagem teórica
que não atende a uma resposta pontifícia, estanque, determinada.
Reconhecendo a extensão e complexidade da persecução por estacionar a questão em um conceito pétreo, José Antonio Paganella Boschi (2010, p. 101) se
projeta a asseverar o seguinte:
Disso tudo é possível concluir que ação penal (pública ou de iniciativa privada) tem nessa efetivação do dever de não omissão, não a composição de um
litígio entre cives incivilizados, mas, isto sim, a finalidade de alcançar, por meio de sentença justa, a restauração da paz social afetada pelo
crime, aspecto que a diferencia da ação civil e que demonstra a impossibilidade de sujeitar ambas a uma teoria única do processo.
Para além do mero apego a reducionismos, a fundamentalidade da discussão a respeito da natureza do direito de ação penal resta alocada na necessária
sedimentação de um alicerce referente a (i)legitimidade do exercício válido deste requerimento, questão esta que, a seu turno, encontra sustento no
fato de que o direito criminal é potencial gerador de mitigações temporárias de direitos e garantias fundamentais[1], sendo que, portanto, é
fundamental que a apuração penal se dê (estritamente) no trilho da mais pura instrumentalidade legal e procedimental[2].
A Constituição Federal preconiza em seu art. 129, I, que é o Ministério Público[3] o ente legitimado para propor, de modo privativo, a ação penal pública, de modo que o texto exaltado pela Carta Magna é inequívoco no sentido de realizar que o parquet possui
um (metafórico) direito de propriedade sobre a ação penal, ao passo que é deste – e só deste – a incumbência dos direitos e deveres inerentes ao
formal exercício do instrumental mecanismo de requerer a punição do particular através do Estado.
A esse respeito, convém atentar para a lição de Felipe Martins de Azevedo (2011, p. 70), no que se refere aos dotes atribuídos ao Ministério Público
pela Constituição Federal de 1988:
[…] a Constituição de 1988 conferiu ao Ministério Público o tratamento de Instituição essencial à prestação jurisdicional do Estado, outorgando-lhe
amplas garantias e funções sociais relevantes. Na esfera penal, além de ter-lhe atribuído de forma inovadora a titularidade privativa da ação penal
pública, garantiu-lhe os instrumentos necessários para o seu exercício […]
De tal sorte, no contexto de nossa ordem contemporânea, todo e qualquer processo penal corrente deve contar com a atuação do Ministério Público,
inexoravelmente, vez que a existência da ação penal é umbilicalmente dependente da intervenção do parquet, pois qualquer ato do processo penal
somente será válido se se vislumbrar a sua (figurada)[4] presença, ainda que de modo meramente passivo. Aliás, não se estará compondo
irresponsabilidade apostar na afirmativa de que a composição do Ministério Público é tão vital para a existência do devido processo penal legal como o
oxigênio é essencial para a manutenção da vida humana.
Todavia, a concepção de que o MP possui o domínio do exercício da ação penal em sua raiz, muito embora seja inimpugnável, possui certos meandros
sistêmicos, os quais relativizam essa noção, como, por exemplo, o caso da ação penal pública condicionada a representação da (sedizente) vítima ou o da ação penal privada.
Para além da função de imperador acusatório, o Ministério Público é a personificação constitucional que atende a um reclamo social invariante,
uma vez que reflete a expectativa popular de possuir um representante cativo de seus interesses, interesses estes que se mantiveram prejudicados de
modo pivotante desde os tempos do império até a ditadura militar, que por ser fronteiriço ao período atual ainda causa reflexos políticos, sejam eles
legislativos, execucionais ou judiciários.
Sem embargo, malgrado o parquet mantenha-se sempre no (formal) timoneio da ação penal e a este cumpra o permanente dever de auditoria da
observância das formas do/no processo, o legislador concebeu, por razões de política criminal[5], que a luz de certos eventos fáticos apuráveis através
de ação penal, o MP não deverá atuar no feito na posição de protagonista do requerimento do exercício da pretensão punitiva do Estado para com acusado,
mas sim em uma colocação coadjuvante, da qual deverá proceder no sentido de requerer a perfeita observância do sistema processual penal e sua
instrumentalidade garantista.
Acerca das excentricidades havidas em sede de iniciativa do direito de ação, melhor exemplo não há senão o da nominada ação penal de inciativa privada, instituto este no qual o Ministério Público tem sua função acusatória esvaziada de
modo mais agudo.
É de sabença que o ato delinquente afeta, de modo geral, não só a vítima imediata e material da infração, mas também toda a órbita social. De tal
maneira, o expediente constitucional afixou no Ministério Público a premissa para a legitimação usual ao exercício de acusação criminal, a partir da
representação que esta entidade guarda para com a defesa dos direitos sociais.
Contudo, em uma análise mais detida, é possível denotar que em certas infrações penais o prejuízo derivado da conduta ilícita afeta maximamente a
vítima, ao passo que em alguns eventos típicos a ação delinquente violenta, preponderantemente[6], preceitos internos personalíssimos, como nos casos
de crimes contra a honra; Ao mais, ponderemos ainda a questão da exposição que um processo penal gera no âmbito social (strepitus judicii), no tocante a necessidade da contratação de advogados, comparecimento em audiências e suportabilidade psíquica para a razoável
tolerância da sucessão das solenidades presenciais da contenda, entre outras ocasiões de igual intensidade (CAPEZ, 2006, p. 134).
Então, na consolidação de um estágio de lógica penal que admite que, em certos casos, o crime atinge diretamente a seara de direitos pessoais da
vítima, não se compunha razoável a sustentação da ilimitação do Ministério Público no jus persequendi, bem como a manutenção da
obrigatoriedade do início da ação criminal e a tangencial exposição a que esta deflagra ao (provável) ofendido.
Em níveis processuais, a ação penal de iniciativa privada é responsável por uma caracterização extraordinária do sistema apuratório penal (BOSCHI,
2010, p. 109), porquanto se funda na manifestação formal do particular sedizente vítima do delito, requerendo ao Estado-Juiz que aplique a pretensão
punitiva respectiva ao crime imputado ao réu. Com efeito, neste modelo de processo, a função de acusação é cedida ao particular (teoricamente) ofendido, sendo de sua responsabilidade e interesse o cumprimento dos ônus processuais que favorecem a materialização de sua
versão no feito e cativam o juiz a crer que ao acusado deve ser implementado certo preceito penal.
O processo penal desencadeado em razão de crime que prevê a ação penal de inciativa privada[7] possui principiologia peculiar, conquanto se trate de
excepcionalidade do sistema punitivo nacional. Cabe, portanto, analisar, de modo epidérmico, cada um dos ícones sustentadores da ação penal privada,
para que melhor se compreenda a epistemologia dessa espécie de mecânica processual penal.
Inicialmente, a doutrina proclama como fundamento básico da ação penal privada o princípio da oportunidade[8], o
qual se ilustra na legitimação pré-processual que o particular tem para lançar ao Judiciário determinada questão fática na qual figurou como vítima ou,
eventualmente, sub-rogou essa premissa através dos critérios pontificados pelo art. 31 do CPP. Nas palavras de Vicente Greco Filho (2010, p. 114) o
princípio da oportunidade significa, em suma, que “A deliberação sobre o oferecimento, ou não, da queixa é de exclusivo foro íntimo do ofendido. Não há qualquer mecanismo de controle, cabendo à vítima, de maneira autônoma e autárquica, decidir a respeito.”.
Em conformação ao que aduz o insigne processualista, a questão da oportunidade da ação penal privada se concentra, basicamente, no fato de que por ser
do particular, neste caso, o direito de acusação, a este é também facultado o exercimento ou supressão do reclamo
judicial pela punição do suposto agente da infração criminal.
Outro princípio reitor da ação penal de cunho privado é o da disponibilidade. A partir desse emblema, reputa-se que o processo penal se mantém
atrelado a intenção do querelante, ao seu particular arbítrio. Assim, caso o provável ofendido dê início a ação penal de iniciativa privada, poderá a
qualquer momento manifestar seu desinteresse no prosseguimento da apuração do suposto delito[9], pois, uma vez que figura na função de acusador, a sua
ausência no processo esfacela a relação do tripleto fundamental (actum trium personarum) e encaminha o feito ao
falecimento.
Há ainda o princípio da Iniciativa de parte. No condão desse paradigma fundante, a ação penal privada está
resignada, no que tange a vitalidade de seu curso, a intensa reafirmação do querelante em requerer ao Estado a punição do réu, o que deverá ser feito
através dos mecanismos formais inerentes ao processo, cabendo ao particular acusador o cumprimento dos ônus decorrentes dessa atividade, tais como a
interposição dos recursos nos prazos adequados, o pagamento das custas do preparo, etc. A propósito, o princípio ora em comento, é de suma relevância à
manutenção da existência da ação penal privada, uma vez que – diferentemente do caso em que o MP se encarrega de acusar – o requerimento de punição não
se presume e se deteriora se for abandonado, sendo que, uma vez recolhendo-se o querelante ao silêncio, ou, ainda, não formulando, este, expresso
pedido de condenação do réu em seus memoriais finais ou em debates orais, será declarada extinta a punibilidade por força do instituto da perempção, consoante as diretivas plasmadas no art. 60 e incisos do CPP.
Por fim, compõe ainda a estruturação dos dogmas de viabilidade da ação penal privada o princípio da Indivisibilidade. O conteúdo teórico deste
princípio assevera para a inaceitabilidade de uma ação penal ser designada em desfavor de apenas um réu, caso na relação delitiva narrada pela acusação
exista orçamento tendente a posicionar outro(s) indivíduo(s) no enredo infracional, como partícipe(s) ou coautor(es). Com efeito, tal qual a
sustentação capital da manutenção do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o princípio da indivisibilidade da ação penal privada visa
evitar a (re)tomada da vingança privada e a provável (de)formação de um direito criminal cambial, movido através de negociatas como, por exemplo, a
extorsão exigida pelo querelante aos acusados (GRECO FILHO, 2010, p. 115).
Recapitulando o que já se explanou, a ação penal privada possui um elemento diferencial em relação aos demais processos penais previstos por nosso
ordenamento jurídico, mormente a imposição desta espécie de apuração criminal determine a dicotomização do exercício do polo ativo da ação penal, de
modo que destitui o Ministério Público do caráter binário de acusação e custos legis, mantendo-o apenas na
figura do último, no tocante a velar pela observância das formas e garantias do processo penal (art. 257, II do CPP).
Nesse jaez, em sede de ação penal privada, é cabível a noção de que, inobstante o Ministério Público mantenha-se sempre no auge da propriedade do
exercimento do pleito da ação penal (no que se refere a questão das formalidades), o parquet não dispõe de prerrogativas legais para requerer ao
Estado-Juiz que aplique a punição em desfavor do acusado. Ou seja: em tais situações o MP não figura como acusador, mas sim como custos legis.
2. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO FIGURA LEGALMENTE RESPONSÁVEL PELA PERMANENTE ZELADORIA DA(S) FORMA(S) DO PROCESSO PENAL
Na conformação do que prescreve a Constituição Federal, o Parquet é o ente legitimado a exercer, privativamente, a ação penal pública, sendo,
via de regra, de sua titularidade a premissa de desmorecer o Estado-Juiz do princípio da inércia e requerer deste a punição do indivíduo acusado.
Com efeito, mais do que uma simples formalidade, a figura do MP em meio ao processo criminal compõe, no atual momento histórico, verdadeiro
elemento de validade da ação, ao passo que é inadmissível sua ausência em toda e qualquer lide criminal, independentemente da espécie.
Em sede de ação penal privada, o Ministério Público não está legitimado a pretender a condenação ou absolvição do acusado, doravante o interesse dos tais crimes de afetação singular seja limitado ao plano jurídico do ofendido, sendo
exclusiva a legitimação deste para o (não) exercício da função acusatória[10].
Todavia, é fundamental ter em mente que a titulação do MP para com a propriedade da ação penal não se justifica em razão de uma
proposta de Estado eminentemente punitivista e eficientemente acusador. A fonte primária da outorga do domínio da ação penal ao Ministério Público está
amalgamada na indispensabilidade da observância das formas do processo penal e, sobretudo, acerca da permanente incidência dos Direitos e Garantias
Fundamentais no enredo da apuração criminal.
A concessão que o poder constituinte deferiu ao parquet acerca da privatividade da ação penal diz respeito, primordialmente, então, a
necessidade de que o processo penal seja produzido a partir de uma instrumentalidade garantista, ao passo que no enredo do que prescreve o art. 5º, LIV
da CF, é inaceitável a promoção de um procedimento processual desagregado das formas legais.
Segundo o art. 257 do Código de Proceso Penal, ao Ministério Público cabe I) promover, privativamente, a ação penal pública e II) fiscalizar a execução da lei.
De se ver, que a legislação é taxativa ao assertar para a singularidade do MP perante a ação penal pública, asserção esta que
disponibiliza a racionalidade do conceito de que, em sede de ação penal privada, o Parquet não opera no tablado acusatório. Em tal caso,
cumpre ao Ministério Público velar pela indivisibilidade da ação penal privada (art. 48), sendo que a legislação fornece ao parquet,
ainda, a possibilidade de aditar a queixa-crime[11] caso se vislumbre na peça incoatora qualquer lesão aos princípios constitucionais e/ou processuais
penais (gerais e específicos). Aliás, Vicente Greco Filho (2010, p. 121) fornece satisfatório referencial doutrinário em relação ao tema:
O Ministério Público velará pela indivisibilidade propondo que o querelante adite a denúncia para a inclusão de corréu, se ainda não ocorreu a
decadência, sob pena de se considerar renúncia tácita que se estende a todos. Se o juiz, ainda assim, receber a queixa, faltando um querelado que
deveria constar, o Ministério Público pode impetrar habeas corpus perante o tribunal para trancamento da ação penal em virtude da
extinção da punibilidade.
Com efeito, não é equivocada a ilação de que o caráter funcional primário do MP no processo penal
é relacionado a um emblema acautelatório das formas legais da contenda, no sentido da
realização do instrumental formato da ação, essencialmente. Assim, nos termos de principiologia constitucional que apregoa como um de seus principais
baluartes o direito a liberdade, resta evidente que ao Ministério Público e sua permanente noção constitucional de procuradoria dos interesses
sociais (art. 127 da CF), cumpre de modo inexorável e incessível, anteriormente ao ato de acusar, o encargo de diligenciar através de todas as medidas
necessárias para o regular prosseguimento do devido processo penal através dos ícones legais.
Colateralmente, em um caráter secundário e flexível, aparece o MP como expediente acusador, funcionalidade esta que, ao contrário do
exercício acautelatório das formas, é passível de mitigações e exceções – como é o caso da ação penal privada –, onde o elenco do polo ativo da
ação penal tem de ser integrado por um particular, fundamentalmente.
Assim concebemos, ou seja, compreendemos ser a função acusatória do Ministério Público estar situada em um plano subalterno ao da função
acautelatória das formas, em razão de que a cogência da forma processual penal é imperativa e indisponível, sendo que a eventual inobservância destes
preceitos torna a ação penal contaminada e, por certo, incapaz de produzir legítimos efeitos.
Ao mais, inclusive, justifica ser primária a função do Parquet pela zeladoria das formas, pois o próprio exercício de acusação é dependente da
efetivação dos caracteres instrumentais do processo. Pensemos, ora, no exemplo de uma ação penal em que ao réu não fora disponibilizado o eficiente
direito a defesa técnica, suportando este um processo autonomamente, sem que fosse auxiliado por profissional devidamente habilitado na advocacia. Em
tal caso, é imprescindível que o promotor alegue, urgentemente, esta questão ao juízo, sob pena de estar de estar arcando com uma dúplice falha, pois,
além da ululante negligência para com sua posição de diuturno custos legis, por via reflexa, haverá a fulminação de toda a
possibilidade acusatória deste em razão da ocorrência de nulidade absoluta, o que redundaria na extinção de todos os atos produzidos no
processo enquanto se mantinha a precariedade formal, aniquilando, inclusive, a integralidade do (pseudo) exercício incriminatório proposto pelo MP.
3. O PARECER PRÉ-SENTENCIAL DO MP QUE OPINA PELA DECISÃO DE MÉRITO DA AÇÃO PENAL PRIVADA: CUSTOS LEGIS , CONSELHEIRO OU (CO)JULGADOR?!
A noção acima expressada retrata bem a dicotomização das funções que o Ministério Público concentra no enredo da situação do atual processo penal,
afixado a partir do advento da Constituição Federal de 1988, sendo que a finalidade acautelatória é a atuação fundamental e inderrogável do MP,
ao passo que a acusatória se aloca em um plano secundário, ante a sua regular possibilidade de trasladação do parquet ao particular.
Conforme dissemos, a ação penal privada é caracterizada pelo protagonismo do particular na bancada acusatória, situação que assim se consolidou em
virtude da noção de que determinados fatos que afetam a alçada de direitos do particular merecem ser criminalmente apurados apenas se a sedizente
vítima compreender que isso é oportuno, estando tal juízo alojado em um caráter genuinamente disponível do ofendido, sendo que,
ainda, caso este vise deduzir judicialmente sua pretensão de ver o(s) agente(s) do delito punido(s) pelo Estado, deve direcionar o feito a toda e
qualquer pessoa que lhe tenha ofendido, indivisivelmente, e, ademais, ser frequente atuante na ação para reforçar seu interesse e iniciativa de ver o (suposto) agressor acusado.
Portanto, situam-se na atmosfera de cargas processuais[12] do querelante de ação penal privada, todos os atos necessários para fazer o juiz fixar-se em
crença de que o réu, de fato, cometeu o fato típico narrado na queixa-crime e merece, portanto, ser enquadrado no padrão punitivo do respectivo tipo
penal.
Com efeito, é tranquila a noção de que ao particular querelante cumpre o exercício das faculdades processuais da ação penal privada em sede acusatória,
tais como a formulação da peça incoatora (queixa-crime), o ônus de demonstrar serem reais os fatos alegados na queixa, bem como o capitaneio dos meios
de prova que julga serem convenientes para encaminhar os critérios psíquicos do julgador a visualizar a existência da materialidade e da autoria da
infração penal apostada na queixa-crime.
De tal sorte, ao Ministério Público não se vislumbra nenhum poder legal ou principiológico de atuação acusatória no enredo da ação penal privada. Sem
embargo, a atuação deste é enxugada, pois, uma vez que não lhe compete o exercício da proposta de uma sentença condenatória do processo, resta-lhe
(sempre) a função de acautelar a forma legal da ação penal.
Perante a ação penal privada as operações do Parquet em prol da observância da forma processual legal se dão através de petições que vêm a
integrar o corpo dos autos, as quais são tituladas de pareceres, sendo estas a via pela qual o MP leva a efeito suas ponderações acerca da
temática relacionada com os (des)cumprimentos das formalidades processuais, como, por exemplo, a inobservância da queixa-crime aos critérios básicos da
denúncia (art. 41 do CPP) ou a promoção de acusação através de procurador especial sem que tenha havido a menção do fato criminoso na procuração (art.
44 do CPP).
Os chamados pareceres são usualmente utilizados pelo Ministério Público em meio ao processo, não sendo estes restritos a área criminal.
Efetivamente, em todo o feito em que o Ministério Público figurar em posição transversal[13], suas manifestações dar-se-ão através de pareceres
dirigidos ao juiz da causa, nos quais o promotor emite sua opinião perante o (não) preenchimento dos requisitos legais do processo.
Aliás, encontra-se no sítio eletrônico do Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul (2011)[14] uma definição semântica do que vem a ser o
parecer ministerial no contexto da ação criminal. Nestes termos:
ÁREA CRIMINAL
como nos pedidos de restituição ou devolução de bem apreendido. Também é parecer, na ação penal pública, a manifestação do Procurador de Justiça, em
segunda instância. (GRIFO NOSSO)
A proposta de conceituação afirmada pelo MP gaúcho favorece a compreensão de que, sobretudo na ação penal privada, o parecer do Parquet possui
caráter eminentemente fundado na manutenção do processo nas formas legais, de acordo com o que já manifestamos.
Entretanto, inobstante se tenha afixado que na ação penal privada a atuação do Ministério Público é cerceada na mera acautelação dos princípios legais
do processo penal, na prática, os pareceres do Parquet têm avançado a uma análise do mérito da lide, ao passo que os promotores consignam em
seus memoriais assertivas relacionadas a ausência ou a existência de, por exemplo, a materialidade e a autoria do delito bem como se o juiz da deve ou
não causa condenar ou absolver o querelado da imputação que lhe fora atribuída na queixa-crime.
Buscando dar a essa “tendência” um caráter de “necessidade”, o Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,
editou o provimento nº. 004[15], onde no Art. 1º determina taxativamente para a intervenção do Parquet na análise da ação penal privada:
Art. 1º Quando funcionarem na qualidade de “custos legis” em ações penais privadas ou em processos cíveis, ao término da instrução e após as
manifestações das partes, os Senhores Promotores de Justiça e Promotores de Justiça Adjuntos ficam obrigados a apresentar parecer
contendo relatório completo do fato e do processo, detida análise da prova dos autos e a conclusão, onde o oficiante indicará o direito aplicável à espécie. (GRIFAMOS)
Sem embargo, esse tipo de procedimento levado a efeito por parte do Ministério Público embaralha o esquema processual pontificado não só da ação penal
privada, mas do processo penal em si, ao passo que o exercício da interpretação da causa é prerrogativa inabalável do juiz, e é deste – e tão só deste
– a legitimação da edificação cognoscitiva do processo.
Ocorre que a formulação de um parecer ministerial que pretenda projetar uma (opinião de) sentença dista em potencial do caráter de custos legis no qual se funda a presença do MP em meio a ação penal de iniciativa privada, o colocando em um informal posto híbrido, que se
situa entre um (indevido) aconselhamento ao juízo e vai até uma (intrusiva) cooperação no julgamento da lide, em casos mais extremos.
Notemos que, sem embargo, o parecer do Ministério Público voltado a uma sugestão decisória se firma de modo análogo a narrativa dos relatores de
acórdãos prolatados por órgãos colegiados, onde há a produção de uma peça sentencial que define o memorial da lide (na forma e no mérito) e o
posicionamento da condenação ou absolvição, e o(s) julgador(es) apenas lança(m) um singelo “de acordo” – geralmente carenando o
discurso por via de um redação performática, lógico. Aqui, sem maiores receios, o Parquet funciona como um verdadeiro co-julgador, dado o
fato de que a sua relação para com o processo se desenreda da legítima atuação de custos legis e passa a se alojar na atmosfera
decisória; já em outras situações, o parecer do promotor que manifesta valorações meritórias se agrega numa seara de (super)induzimento do julgador,
passando o Ministério Público a ser uma espécie conselheiro do juízo, pois, vez que, ali, sentado a direita de modo
limítrofe à “Sua Excelência”, e muitas vezes se mantendo como fiel coabitante do julgador na sala de audiências por dias, meses e até anos, os
fundamentos alardeados na opinião do Parquet ecoam de maneira angular – e singular – na decisão do juízo.
Não se pode conceber que o promotor adentre na (particular) seara da análise do mérito da (im)procedência do pedido condenatório da ação criminal na
qual figura como fiscal da lei, doravante essa premissa seja unicamente do juiz, de modo intangível e devidamente garantido pela Constituição Federal.
Ademais, sobretudo em um momento histórico em que o processo penal passa por uma insofismável transição, a qual gradativamente busca estabelecer um
senso de justiça criminal de acordo com os trilhos constitucionais, admitir a infração das atribuições fundamentais do juiz, ainda que de modo tímido e
subliminar como é feito pelo Ministério Público, é como retroceder – ou, no mínimo, retardar – toda a (positiva) evolução já perpetrada e retornar ao
nivelamento de um processo penal em que o Magistrado não detinha autonomia para decidir conforme os seus conceitos acerca do mérito do processo[16].
É fundamental manter o julgador blindado – o máximo possível – de intervenções externas que não as das partes manifestamente interessadas em um
resultado processual. Considerando o fato de que o Magistrado se contém em uma árdua missão de formar sua fé em determinados elementos do processo,
admitir uma opinião relacionada a uma decisão de mérito ao lado de sua cadeira é, indo mais além da mera sonegação das posições processuais, a
intromissão de sua prerrogativa de julgar de acordo com as provas que lhe motivaram e ao novelo de elementos que lhe palpitou formar a síntese de sua
decisão.
4. O PROCESSO COMO ACTUM TRIUM PERSONARUM ( JUDICIS , ACTORIS ET REI ): DEMONSTRANDO A INCOERÊNCIA DO PARECER PRÉ-SENTENCIAL DE MÉRITO EM RAZÃO DA INVASIVA INFRAÇÃO À FUNÇÃO DO JUIZ
A relação processual penal é desencadeada através de um tripleto fundamental, na qual se estabelece uma dialética de combate entre as teses da acusação e da defesa, estando ambas as figuras intentando atrair o embarque do juiz nas suas respectivas argumentações, para, assim,
adquirir, após o esgotamento da cognição processual, uma sentença de mérito condizente com seu requerimento preliminar de condenação/absolvição.
Búlgaro, afirmara em meados do século XIII que processum est actum trium personarum: judicis, actoris et rei (processo é um ato de três personagens: juiz, autor e réu),
estipulação esta que se enraizou no âmbito das ciências processuais e perdura até os tempos hodiernos.
Na relação penal, a definição das posições processuais é bastante evidente, estando manifesta a colocação do titular da acusação como
sujeito responsável pela provocação do Estado-Juiz para que este exerça o poder(-dever) de punição em desfavor do réu, o qual, este último, por
sua vez, visa desenredar-se do potencial risco ser constrangido a supressões de seus Direitos e Garantias Fundamentais; por fim, localizado em uma
posição diferenciada, ao centro e (supostamente) neutralizado de influências externas, está o juiz.
Ao juiz, conforme se denota de sua própria nomenclatura, cumpre o ato de julgar. O julgamento da ação, em apertada síntese, trata-se da operação
de emanar fundamentadamente alguma conclusão extraída do edifício de elementos trazidos ao feito pelas partes. À pessoa do julgador é derrogado o
pressuposto de sintetização racional do conteúdo do processo para, então, emitir um resultado para a ação, o qual, no entanto, deverá ser
inexoravelmente encaixado aos fundamentos do sistema normativo.
Piero Calamandrei (2003, p. 07), ao tratar sobre o que chamou de “crise do direito” ponderou que a infração ao posto do juiz compõe um dos
principais agravos ao sistema jurídico, asseverando que em meio ao período da 2ª guerra mundial isso ficou indubitavelmente representado pela “[…] cínica ingenuidade de um ministro nazista, as lettres de justice,
mediante as quais, sob o ancién regime, o soberano “sugeria” aos juízes o conteúdo de suas sentenças.”.
A noção de figuras distintas e devidamente alinhadas a específicos cargos de exercício de funções no processo penal é o esteio que gera a
possibilidade da instituição de ação penal. Com efeito, a planificação de um arrojado parecer pré-sentencial do Ministério Público em que sejam
acomodados argumentos acerca da sintetização dos fatos processuais e posterior estipulação da decisão de mérito da ação penal corrompe não só a posição
do juiz, mas também se torna marginal ao preceito da imparcialidade do Parquet perante a cena jurídica. Nesse contexto, de extrema
conveniência a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 08):
Uma vez que ao Estado deve interessar, na mesma medida, tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do culpado, o órgão estatal responsável pela
acusação, o Ministério Público, passou a ser, com a Constituição de 1988, uma instituição independente, estruturado em carreira, com ingresso mediante
concurso público, sendo-lhe incumbida a defesa da ordem jurídica, e não dos interesses exclusivos da função acusatória. Nesse sentido, o
Ministério Público, e não só o Poder Judiciário, deve atuar com imparcialidade, reduzindo-se a sua caracterização conceitual de parte ao
campo específico da técnica processual.
Em avanço, para que se evite deixar vulnerável nossa posição a possíveis agressões arrimadas na visão de que o parecer pré-sentencial que
opine pela absolvição do querelado seja revestido de razão, pois, se ao MP cabe a zeladoria dos princípios constitucionais e jurídicos a manifestação favor rei se justifica em substancial, não se pode esquecer que, ainda assim, o Parquet estará espoliando a autonomia cognoscitiva do
julgador ao praticar, lateral e informalmente, a desenvoltura da síntese processual, confeccionando, inclusive, o que se pode chamar de “protótipo de
sentença”.
Ao que nos parece, de modo mais adimplente à constelação processual institucionalizada para com a ação penal privada, que, caso o Ministério Público
vislumbre a ocorrência de causas de exclusão de punibilidade ou culpabilidade para com o(s) réu(s), como, por exemplo, a inimputabilidade, cabe ao promotor impetrar o remédio constitucional de habeas corpus visando o trancamento da ação penal. Questiona-se: mas o promotor como
impetrante de habeas corpus? Sim – e por que não?! Malgrado não lhe seja dada a atenção merecida, o art. 654 do CPP permite que o Ministério
Público seja impetrante de habeas corpus, de modo expresso e induvidoso.
Não há dúvidas de que, agindo assim, o agente ministerial estaria, em exponencial representação a instituição pela qual se encarregou depromover ao ser investido, praticando, contemporaneamente, a obediência de sua imparcialidade e seu dever para com a zeladoria dos direitos e garantias fundamentais (neste caso a manutenção do direito de liberdade), sem necessitar ser metediço às prerrogativas
do juiz em julgar e da defesa técnica em defender de modo amplo e irrestrito (art. 5º, LV), pois, enquanto aparte da ação, ao Parquet é defeso agir conforme qualquer dessas posições. E assim é feito mediante a impetração do habeas corpus, onde existe
a confessada e irrestrita possibilidade de defender os direitos fundamentais do réu, como há de ser, de modo coerente a funcionalidade do MP na ação
penal privada, por meio de atuação não mais invasiva do que um “colateral attack” (LOPES JR., 2011, p. 633).
Sem dúvidas, que a questão atende a um caráter de excepcionalidade, pois, em vista da caracterização do Ministério Público como garantista
da ordem social, seria pertinente que a legislação deferisse certa ampliação ao Parquet para se manifestar em favor do réu, nos casos em que o
agente ministerial vislumbre que, em meio a ação penal, o querelado agiu sob o pálio de normas penais permissivas, por exemplo. Contudo, na carência de
supedâneo legal, não é de adequada compostura a inovação da morfologia do procedimento, pois, conforme já dito, ao processo penal, (a) forma é (para a) garantia (LOPES JR., 2011, p. 422) e, ademais, um erro não justifica o outro, sobretudo se conjugada a questão da existência de
mecanismo diverso transversal de proteção do réu, que é o habeas corpus.
É manifesta a atribulação da mecânica processual que o Parquet propicia quando passa a se julgar julgador e a emitir opinião relacionada
a critérios valorativos do mérito da ação penal. Agindo assim, o Ministério Público está, efetivamente, ultrajando o posto do julgador, mormente seja
de sua alçada a ponderação referente ao resultado de procedência ou improcedência da ação penal privada.
Há, portanto, uma fundamental necessidade de buscar a extromissão deste vício ao qual padecem algumas ações penais privadas, devendo tal ideal ser
propugnado não só na doutrina, mas também pelos efetivos atores do processo (querelante e querelado) e pelo juiz da causa, cabendo a contundente e
imediata impugnação da questão, seja nas solenidades de audiências em que há o pronunciamento do Ministério Público em debates orais, ou nos casos em
que seu parecer seja remetido aos autos através de memoriais. Com efeito, a referida medida corresponde não só a um apego pela mera burocracia
processual, mas sim a uma perfectibilização do processo aos critérios legais, os quais não preconizam em momento qualquer pela possibilidade de o MP
contribuir com qualquer outra funcionalidade na ação que não as da fiscalização da observância da lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Felipe Martins de. O poder investigatório do Ministério Público e seus limites na tutela da probidade administrativa: publicidade versus privacidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação Penal: as fases administrativa e judicial da persecução penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2010.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália. Editora LNZ. 2003. São Paulo.
GOLDSCHIMIDT, JAMES. Teoria Geral do Processo. Campinas: Editora Minelli, 2003.
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional). 4ª ed. Editora Lumen Juris: Rio de
Janeiro, 2010.
__________. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
NOTAS
[1] Ora, seria por demais irresponsável conceber, desde o princípio, um processo penal amadorizado e negligente a instrumentalização necessária
para que se evite o (ab)uso dessa nobre instituição para a prática de mesquinhas intenções pessoalizadas.
[2] A observância das noções do instrumento processual penal é, mais do que fundamental, condição inexorável de validade e legitimidade dos atos
de um procedimento, quer seja sob a ótica técnica ou social, porquanto, conforme preleciona Aury Lopes Júnior (2010, p. 10) “[…] a instrumentalidade
do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias
individuais.”.
[3] Felipe Martins de Azevedo (2011, p. 70) definiu que, de acordo com a perspectiva da Constituição Federal de 1988, tem-se na atualidade o
“[…]Ministério Público como Instituição permanente e guardiã do regime democrático […]”, o que dispara a noção de que, ao Parquet, incumbe,
preponderantemente, tutorar a sustentação dos paradigmas constitucionais em prol da coletividade.
[4] Fala-se em “figurada” dado o fato de que, em tempos hodiernos, ocorrem atos do processo penal em que não há a manifestação direta do MP.
Exemplo disso é a audiência preliminar prevista para os processos regulados pelos procedimentos dos Juizados Especiais Criminais, nos quais o parquet
remete a proposta de suspensão condicional do processo ou de transação penal ao juiz ou conciliador, não se fazendo presente na solenidade.
[5] A expressão política criminal é usualmente utilizada em versões doutrinárias, sendo, na maior parte das vezes designada como sendo uma
justificativa (meta)jurídica para determinadas noções teóricas. Cabe, pois, sustentar na explicação de Eugenio Raúl Zaffaroni (1999, p. 132) o que vem
a ser a mí(s)tica política criminal: “A Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e
penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.”
[6] Malgrado nos aliemos ao entendimento de Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 119), discordando da doutrina de maior expressão, pois, em sede de
direito penal e processual penal – avaliados sob sua essência mais pura – “sustentar que existem crimes que interessam, prioritariamente, ao
particular, o ofendido (e sucessores processuais), na legislação atual – é tarefa que refutamos irrealizável.”.
[7] Em sede de legislação tipificadora é possível identificar se um crime é processado ou não através de ação penal privada caso se vislumbre a
locução “procede-se mediante queixa”.
[8] Acerca do princípio da oportunidade, a doutrina moderna vem determinando que na evidência de um tempo de incessante busca por um direito
penal mínimo, seria melhor adequado ao sistema punitivo em geral que o processo criminal pudesse ser desencadeado através do (mero) alvedrio do
Ministério Público, abandonando-se, então, o pétreo princípio da obrigatoriedade. Todavia, a temática apresenta-se por demais densa, uma vez que o
princípio da obrigatoriedade da ação penal possui supedâneo na prevenção de favorecimentos e/ou abarganhamento do processo criminal, ao passo que algo
diferente fomentaria, em tese, o nivelamento da reprimenda penal ao arbítrio do(s) (agentes do) Ministério Público, o que, sem embargo, não se adéqua
ao caráter público no qual figura a seara do direito punitivo.
[9] Há que se falar aqui em mera “manifestação do desinteresse do querelante’’ em não mais proporcionar a acusação, pois, dependendo do
mecanismo que o requerente da punição lançar mão para retratar-se de sua queixa-crime, não haverá um automático encerramento da lei, como é o caso, por
exemplo, do perdão do ofendido (art. 105 do CP), o qual se perfecciona apenas a partir de uma ação bilateral, porquanto depende de expresso
consentimento do réu, sob pena de ineficácia do ato do (suposto) ofendido, nos termos do art. 106, III do CP.
[10] É interessante esclarecer que, malgrado não se faça coerente a parcialidade do MP em sede de acusação na ação penal privada, poderá o mesmo
recorrer em caso de eventual sentença condenatória para requerer agravamento na pena, posto que, além de essa atuação não se encontra no âmbito de um
comportamento protagonista acusatório, é de se considerar o fato que os critérios de fixação da pena estão indisponíveis à vontade do titular da
acusação, qual seja este, o querelante.
[11] Particular esfera da doutrina, como, por exemplo, Aury Lopes Júnior (2011, p. 381), discorda da possibilidade de permitir que o Ministério
Público possua integral liberdade para aditar a queixa-crime, incluindo novo(s) réu(s), visando tutela da indivisibilidade da ação penal privada,
sustentando sua argumentação no sentido de que o Parquet não possui legitimidade para promover a acusação neste tipo de procedimento, ao passo que a
inclusão de acusados não listados na peça incoatora comporia contundente infração a esta base fundamental.
[12] As chamadas “cargas processuais” são derivadas da doutrina de James Goldschimidt (2003, p. 75) o qual afirma que estas são “imperativos do
próprio interesse.”. De fato, a ideia do processualista germânico se funda no fato de que aos atores do processo, não incumbem obrigações (tal como na
proposta estabelecida por Oskar Von Büllow em sua celebrada “Teoria das exceções dilatórias e dos pressupostos processuais”) mas sim “cargas”, as
quais, se cumpridas, favorecem a possibilidade de uma sentença favorável à parte, mas não a garantem como se vislumbrava na tese proposta por Büllow.
[13] Fala-se em função transversal como uma forma de definir, genéricamente, a necessária integração do MP no feito sem ser parte. Veja-se, que
além da função de fiscal da lei no processo penal, o Parquet ainda se contém nesse cariz em processos cíveis que envolvam interesse de incapazes (art.
82, I do CPC), nas referentes a declaração de (in)capacidade de alguma das partes (art. 82, II do CPC), entre outros casos.
[14] Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/temporalidade/glossario>. Acesso em 03 Jan. 2012
[15] O qual fora publicado no dia 23 de março de 1994, através do DOU nº. 075, Seção 1, pág. 5929, de 22/ABR/94.
[16] Essa é uma preocupação latente e que deve sempre ser guardada pelos operadores do Direito. As prerrogativas para que o juiz possa
estabelecer um decisório entrosado com sua – e tão só sua – crença processual merecem ser sempre respeitadas, sob pena da falibilidade e decorrente
falência das instituições jurídicas, ou, no mínimo, a potencialização da probabilidade de uma crise do direito, ao melhor estilo calamandreico.