Henio Antônio Nunes de Sá Leitão[1]
Roberto Fabiano Santos Costa Filho[2]
RESUMO:
O presente trabalho busca elucidar a problemática do trabalho infantil no Brasil e a efetividade da sua proteção jurídica nacional e internacional, mediante recortes bibliográficos e estatísticos. Partiu-se da análise do trabalho infantil no Brasil e no mundo com Convenções da OIT, relatórios da UNICEP e o sistema jurídico brasileiro, cujo aparato legal possui natureza constitucional e infraconstitucional. Ademais, discutiu-se a efetividade dessas previsões sobre o enfoque da dupla perspectiva do Estado e sociedade.
Palavras-chave: Trabalho infantil. Convenções da OIT. Sistema jurídico nacional. Efetividade.
1 INTRODUÇÃO
Desde os primórdios da humanidade, o trabalho foi uma ferramenta de transformação da sociedade. Pela força do trabalho a humanidade saiu de um período pré-histórico em que vivíamos em caverna até a idade contemporânea em que somos capazes de construir enormes arranha-céus. Desse modo, a força de trabalho de um indivíduo sempre foi algo admirável e cobiçado.
Por muito tempo essa força de trabalho foi comercializada pela figura dos escravos que eram vendidos para trabalharem em diversas áreas da sociedade. Com o fim da escravatura na maior parte do globo e o advento da revolução industrial, a demanda de trabalho aumentou bruscamente sendo necessário, urgentemente, pessoas para trabalharem, principalmente, nas indústrias.
Dessa forma, com a demanda crescente do mercado famílias inteiras que necessitavam de renda começaram a ser contratadas para trabalharem nas mais diversas áreas da indústria. Todavia, com o passar dos tempos uma discussão começou a ser levantada, “é justo uma criança trabalhar para ajudar na renda da família?”. Após muitos debates acerca do assunto ficou claro que a infância deveria ser respeitada e independentemente da renda da família a criança deveria ser criança.
Nesse contexto começou a surgir pelo mundo inteiro normas que visaram proteger as crianças da exploração trabalhista. No Brasil não ocorreu de forma diferente, e foram criados variados mecanismos para proteger a integridade da infância. Todavia, tais mecanismos nem sempre funcionam da maneira mais eficaz e cabe entendermos a dificuldade para atingir sua plenitude.
Dito isso, o presente artigo tem como objetivo analisar a efetividade real das normas cuja finalidade é a proteção das crianças e dos adolescentes da exploração de trabalho, com dados e doutrinas acerca do tema. Desse modo, analisando os motivos de tais normas não estarem sendo efetivadas em sua plenitude de fato.
2 TRABALHO INFANTIL NO BRASIL E NO MUNDO
O presente capítulo tem como principal objetivo delimitar o trabalho infantil no Brasil e no mundo, abordando dados oficiais e pesquisas realizadas por entidades que tratem acerca do assunto não só no Brasil, mas no mundo.
Embora o combate efetivo ao trabalho infantil tenha se iniciado ainda no começo do século passado, ainda hoje é notório que diversas crianças ainda trabalhem de forma ilegal no mundo todo. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Banco Mundial, apontou que ainda havia em 2012 cerca de 168 milhões de crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 17 anos, submetidas ao trabalho infantil. Essas estimativas constam do relatório “Marking progress against child labour: Global estimates and trends 2000-2012” publicado em 2013 pela própria OIT.
Apesar de registrar uma severa diminuição nos indicadores ao redor do mundo, em especial nas últimas décadas, o estudo estima que ao menos cerca de 100 milhões de crianças e adolescentes ainda estarão sujeitas ao trabalho infantil até 2020. Dado esse que mostra o grande percurso que ainda deve ser percorrido para livrar as crianças e os adolescentes de tal mazela por completo.
A OIT, em busca de diagnosticar quais são as áreas em que as crianças e adolescentes desempenham mais funções, realizou uma pesquisa no ano de 2016 em que foi constado que as principais atividades econômicas desempenhadas pelo trabalho infantil estão concentradas principalmente na agricultura (71%), seguida do setor de serviços (17%) e do setor indústria+l (12%). Por esses dados podemos constatar que a maioria do trabalho infantil está diretamente ligado ao campo, visto que a maioria das crianças trabalham no campo com objetivo de alcançar sua própria alimentação como a OIT deixa claro.
Dessa forma é notória a existência de diversos percalços a serem enfrentados ainda para que o trabalho infantil seja de fato erradicado. Um dos principais percalços é a efetivação da Agenda 30 da ONU, plano de ação firmado por 193 países no ano de 2015 e cujos objetivos gerais são o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões. Naquela oportunidade, foram estabelecidos 17 objetivos a serem alcançados até 2030. O objetivo 8 intitula-se “Trabalho Decente e Crescimento Econômico” e um de seus desdobramentos é:
[…] tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas.
Tal objetivo apenas demonstra como é prioridade global erradicar de uma vez por todas o trabalho infantil. Todavia, tal tarefa não é nem um pouco fácil dado que por anos diversas medidas já foram tomadas para combater tal mazela, porém nenhuma surtiu o efeito esperado, visto que embora exista uma acentuada redução do trabalho infantil seu número persiste muito alto.
Desse modo, é importante relembrar que uma das convenções pioneiras da OIT tratou justamente da idade mínima de admissão nos trabalhos industriais (Convenção n. 5, 1919). Em 12 de junho de 2019, para marcar o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, bem como seu centenário de criação, a OIT enfatizou os avanços alcançados ao longo desses últimos 100 anos, com destaque para os 20 anos da Convenção n. 182, sobre as piores formas de trabalho infantil.
As pesquisas citadas corroboram com a ideia de que há uma forte relação entre subdesenvolvimento econômico e exploração precoce da força de trabalho. A falta de perspectivas e empobrecimento das famílias são, na maioria das vezes, a força determinante para a utilização da mão de obra infantil, que costuma estar mais vulnerável justamente em Estados e/ou regiões economicamente subdesenvolvidas, tanto pela ausência do Poder Público, quanto pela falta de oportunidades de emprego para os adultos daquele núcleo familiar.
No Brasil, as mesmas tendências de queda dos casos de trabalho infantil nas últimas décadas podem ser observadas. Conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 1992 a 2015, existiu uma redução de 65,62% no número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil (fonte: IBGE — série histórica Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — PNAD 1992-2015). Esse número representa cerca de 5 milhões de crianças a menos no mercado de trabalho.
Contudo, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2016 (IBGE — PNAD 2016), no Brasil existem cerca de 1,8 milhões de crianças e adolescentes com idades entre 5 e 17 anos em situação de trabalho. Desse total, aproximadamente 30 mil tem entre 5 e 9 anos de idade e 160 mil entre 10 e 13 anos, ou seja, em claro desrespeito à legislação trabalhista nacional. O restante (cerca de 1.610.000) encontra-se na faixa etária de 14 a 17 anos. Essa pesquisa ainda aponta que entre os trabalhadores infantis de 5 a 13 anos, apenas 26,0% recebiam remuneração, enquanto no grupo de 14 a 17 anos, 78,2% eram remunerados. Já o rendimento médio de todos os trabalhos das pessoas de 5 a 17 anos de idade foi estimado em R$ 514,00 (por mês). Importante destacar que no ano do estudo (2016) o salário mínimo mensal nacional era R$ 880,00.
Tal dado é alarmante, visto que não obstante o uso do trabalho infantil a remuneração ainda é mais baixa que o aceitável como salário mínimo vigente no país. Dado isso, fica claro a fragilidade da criança e adolescente nas relações de trabalho, não sendo equiparadas a um trabalhador adulto comum e não sendo respeitados os mínimos direitos como a remuneração mínima.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), colegiado composto de representantes do poder público, empregadores, trabalhadores e sociedade civil, através da Subcomissão de Erradicação do Trabalho Infantil, apresentou no final de 2018, o 3º Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a ser implementado em todo o país no quadriênio 2019-2022. Tal iniciativa tem como objetivo cumprir com o dever assumido pelo Brasil de atender a Agenda 30 da ONU e ao já mencionado Objetivo 8.7.
O relatório produzido pelo CONAETI utilizou os mesmos dados do PNAD de 2016, mas adotou um critério diferente para sua interpretação. Isso porque, segundo o CONAETI, de 2015 para 2016 houve uma mudança “drástica” da metodologia do IBGE quanto ao trabalho infantil, buscando adequar as pesquisas brasileiras a padrões internacionais. Com isso, algumas atividades, que até 2015 eram registradas como trabalho infantil, foram excluídas desse indicador no PNAD de 2016. Entre esses dados estão os das crianças e adolescentes que produzem “para próprio consumo”.
O CONAETI defende que devam ser mantidos os critérios anteriores, incluindo os jovens que exercem atividades na produção para próprio consumo ou na construção para próprio uso. Essa metodologia amplia o número de “trabalhadores infantis” para, aproximadamente, 2,4 milhões de pessoas no período de referência (2016). A justificativa para inclusão é que a “produção para próprio consumo” também é trabalho e, como tal é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, logo, deve ser registrada como trabalho infantil.
Dessa forma, é evidente que embora os casos de trabalho infantiltenham reduzido de forma considerável, principalmente nas últimas décadas, ainda estamos bem longe de sua erradicação. Sendo assim, é necessária uma análise profunda acerca da eficácia dos mecanismos utilizados para diminuição do trabalho infantil e os motivos de não lograrem êxito de forma efetiva.
3 SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO CONTRA O TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Primeiramente, para a elucidação do tema acima exposto, faz-se mister salientar que, em que pese se tenha no âmbito internacional a Convenção da OIT nº 182 que versa acerca da Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação, nota-se que tal norma adentrou no ordenamento jurídico somente por meio do Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999 e, passou a ter vigência com a advinda do Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, conforme previsão expressa contida no próprio Decreto (BRASIL, 2000). Dessa forma, é latente a atribuição que a Constituição Federal de 1988 confere ao Congresso Nacional no que tange à resolução definitiva sobre os tratados, acordos ou atos internacionais, in verbis:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional […]
Congruente ao exposto, para se ter mais claramente o conceito de “sistema jurídico brasileiro” de proteção contra o trabalho da criança e do adolescente, torna-se imprescindível resgatar o conceito de bloco de constitucionalidade que abrange o ordenamento jurídico pátrio, nessa esteira, assevera o Douto Professor da Faculdade de Coimbra José Gomes Canotilho:
Os únicos problemas que se podem suscitar dizem respeito aos direitos fundamentais não formalmente constitucionais, isto é, os direitos constantes de leis ordinárias ou de convenções internacionais (cfr. art. 16°). Todavia, ou estes direitos são ainda densificações possíveis e legítimas do âmbito normativo-constitucional de outras normas e, consequentemente, direitos positivo-constitucionalmente plasmados, e nesta hipótese, formam parte do bloco de constitucionalidade, ou são direitos autónomos não-reentrantes nos esquemas normativo constitucionais, e, nessa medida, entrarão no bloco da legalidade, mas não no da constitucionalidade.
Diante do ensinamento supramencionado e, trazendo à baila a Emenda Constitucional nº 45, que inseriu os tratados internacionais que versam acerca de direitos humanos tenham status constitucional. No entanto, firmou-se no Brasil um entendimento ex nunc acerca dessa Emenda Constitucional, isto é, ela só teve efeito para os tratados internacionais posteriores à sua publicação, mas atribuiu um caráter de status supralegal para os tratados e acordos anteriores à referida Emenda Constitucional, onde se insere no ordenamento jurídico brasileiro a Convenção nº 182 da OIT.
Superada a exegese acerca dos termos que circundam o presente tema, observa-se que a Constituição Federal de 1988 foi literal e assertiva na definição e na proibição dos tipos de trabalho para as crianças e adolescentes, conforme exemplifica o excerto a seguir:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvona condição de aprendiz, a partir de quatorze anos […]
Corroborando com a norma jurídica apresentada, tem-se o art. 32 da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989, em que o Brasil é signatário, que reconhece o direito da criança de ser protegida contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja prejudicial para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.
Além da convenção nº 182 da OIT já mencionada trata Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação, tem a convenção nº 138 que versa acerca da idade mínima para a admissão ao emprego. Sendo assim, ambas convenções perfazem um escopo legal que adentraram no ordenamento jurídico brasileiro com o intuito de dar proteção à criança e ao adolescente contra o trabalho infantil. Sendo assim, a Convenção nº 182 da OIT elenca as piores formas de trabalho infantil, que são:
Artigo 3
Para efeitos da presente Convenção, a expressão “as piores formas de trabalho infantil” abrange:
- todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;
- a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas;
- a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes; e,
- o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.
Torna-se claro, pela leitura do texto normativo trazido e de toda a essência da Constituição Federal Brasileira de 1988 que o legislador elegeu importante proibir apenas algumas relações de trabalho infantil, isto é, aquelas que possam ser prejudiciais à saúde física ou psicológica do menor. Sendo assim, é seguro ainda ao jovem a relação de trabalho advinda do estágio, visto que essa não possui um caráter meramente de explorar o trabalho de terceiro para a obtenção de uma remuneração, mas sim preparar para o ambiente de trabalho este menor de uma forma educativa.
Pode ser citado ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n. 8.069/90) que, segundo o Professor Bruno de Carvalho Montejunas:
[…] faz remissão às disposições da legislação trabalhista (art. 61), mas faz questão de frisar a necessidade de assegurar à criança e ao adolescente a “qualificação para o trabalho” (art. 53). Também diz que ao adolescente com deficiência é garantido o “trabalho protegido” (art. 66). Por fim, registra que a profissionalização e a proteção ao trabalho são direitos do adolescente, devendo observada sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e a capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho (art. 69, incs. I e II).
Em consonância com a Convenção nº 182 da OIT, tem-se o Decreto 6481 de 12 de junho de 2008 que instituiu a Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil), a qual proibiu o trabalho do menor de dezoito anos nas atividades descritas na Lista TIP, que são:
Art. 4o Para fins de aplicação das alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 3o da Convenção no 182, da OIT, integram as piores formas de trabalho infantil:
- – todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório;
- – a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas;
- – a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e
- – o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em conflitos armados.
Extrai-se da norma epigrafada que o ordenamento jurídico brasileiro se complementa em variadas normas constitucionais e infraconstitucionais que perfazem uma verdadeira rede de proteção contra o trabalho infantil, principalmente os que incidem violentamente contra sua integridade física e moral. Assim versa o Douto jurista e professor Maurício Godinho Delgado acerca da complementariedade que o Decreto 6.481 e a Convenção nº 182 da OIT têm entre si:
A pessoa física do prestador, conforme já examinado, surge como a própria razão histórica de existência do Direito do Trabalho. Ela também comparece, é claro, na relação de emprego doméstica — aqui, porém, com uma peculiaridade recente: desde 2008, com a aprovação da Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil), por meio do Decreto n. 6.481, de 12.6.2008, que entrou em vigor a partir de setembro de 2008 (vacatio legis prevista no art. 6º do Decreto), em cumprimento ao disposto na Convenção n. 182 da OIT (“Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação”), tornou-se vedada a realização de qualquer trabalho, seja empregatício ou não, no âmbito doméstico por pessoa humana na faixa etária abaixo de 18 anos (item 76 da Lista TIP). Esta restrição foi explicitamente reconhecida, a propósito, pela Lei Complementar n. 150/2015. Registre-se, por fim, que a ordem jurídica do País recentemente incorporou novas restrições ao labor do jovem abaixo de 18 anos. É que o Decreto n. 6.481, de 12.6.08 (vigência em 90 dias, isto é, em setembro de 2008), aprovou a Lista TIP — Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, em conformidade com o art. 3º, “d”, e art. 4º da Convenção n. 182 da OIT. Com essa longa listagem de atividades laborativas proibidas fica manifestamente clara a tendência crescente da ordem jurídica, desde 1988, de privilegiar a educação, e não o trabalho, como instrumento de formação da personalidade do jovem.
4 AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO TRABALHO INFANTIL E SUA EFETIVIDADE NO ÂMBITO SOCIAL BRASILEIRO
O ordenamento jurídico brasileiro não é omisso no que se refere a normas proibitivas de exploração do trabalho infantil. Isso porque, estabelece, no seu texto constitucional, bem como infraconstitucional, uma série de regras protecionistas associadas à previsão de direitos e garantias, cujo objetivo volta- se para a salvaguarda da criança e do adolescente.
Entretanto, no plano prático, há uma carência com relação à plena efetividade dessas normas, tendo em vista que a exploração do trabalho infantil não foi erradicada: ela ainda é uma realidade latente no País, mesmo que em menor escala. O reflexo disso pode ser observado a todo momento no cotidiano, com crianças vendendo bombons em ônibus, vigiando carros nas ruas e até mesmo realizando serviços domésticos em “casas de família”[3].
Nesse sentido, faz-se importante destacar que esse panorama não é de responsabilidade exclusiva do Estado, mas também da família e da sociedade em geral, o que constitui a doutrina da proteção integral à criança, ao adolescente e ao jovem, prevista na Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda fora de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)
Sendo assim, nota-se a incidência do princípio da cooperação entre o Estado e a sociedade como agentes ativos no dever de assegurar os direitos da criança e do adolescente, com o intuito de promover o bem-estar e proporcionar seu pleno desenvolvimento[4].
Não obstante, existem obstáculos concretos para a efetivação desses comandos legais, os quais se encontram intimamente ligados com as concepções culturais enraizadas nos cidadãos. A figura do trabalho infantil assenta-se numa estrutura social que promove a desigualdade e dissemina o falso imaginário de que os filhos de famílias economicamente desfavorecidas devem trabalhar para gerarem renda para suas famílias e que isso seria também uma alternativa à ociosidade que representa perigo à coletividade (COLUCCI, 2013).
Logo, depreende-se que a simples edição de um texto normativo não é capaz de sanar a problemática em questão. Deve-se, portanto, compreender uma dupla perspectiva de enfrentamento: o papel estatal e a mudança de mentalidade da comunidade, a fim de impedir a “normalização” do trabalho infantil e a conscientização das consequências biopsicossociais que ele pode gerar.
5 CONCLUSÃO
Ainda que o avanço no combate ao trabalho infantil em todo mundo seja louvável, é notório o descompasso do ideal com a realidade, existindo ainda nos dias de hoje milhões de crianças trabalhando por todo o globo.
No Brasil, a mazela do trabalho infantil é ainda agravada pela enorme desigualdade social existente no país “obrigando” as crianças oriundas de famílias de baixa renda entrarem de forma precoce no mercado de trabalho para, assim, ajudar com a renda familiar.
Dessa forma, embora o ordenamento jurídico brasileiro seja de forma alguma omissão sobre a questão do trabalho infantil, os mecanismos existentes ainda se mostram falhos na efetivação de fato da plenitude de seu objetivo, erradicar o trabalho infantil. Sendo assim, é necessário que se repense as formas que determinados mecanismos estão sendo utilizados, visto que sua utilização como é hoje não está surtindo o efeito esperado.
Ademais, é imprescindível que seja rompido com o falso imaginário social de que o trabalho glorifica, ou seja, as crianças de baixa renda devem ser trabalhadoras desde a infância para ajudar na renda familiar o mais cedo possível, apenas dessa forma os mais pobres conseguiriam realizar uma ascensão social. Logico, não desmerecemos o valor do trabalho, mas na infância a criança deve possuir outras prioridades que não seja o trabalho.
Portanto, é de suma importância que não apenas o Estado tutele sobre criança e adolescentes, mas que também a própria sociedade desconstrua a imagem de que a criança deve trabalhar desde cedo para almejar ser “alguém na vida”. Só assim o trabalho infantil poderá ser erradicado em sua essência e as crianças de todo mundo poderão ser o que de fato deveriam ser que é ser criança.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto nº 6481, de 12 de junho de 2008.
BRASIL. Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. 1255 p.
COLUCCI, VIVIANE. A teoria da proteção integral frente ao combate ao trabalho infantil e à regularização do trabalho do adolescente. Brasília: Seminário Trabalho infantil, 2013. Disponível em: < https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/38643/004_colucci.pdf?sequence
=1&isAllowed=y>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil — III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Disponível em: < https://www.mdh.gov.br/todas-as- noticias/2018/novembro/lancado-3o-plano-nacional-de-prevencao-e-erradicacao-do- trabalho-infantil/copy_of_>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16ª. ed. São Paulo: LTR Editora, 2017. 1697 p.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF) — Child protection from
violence, exploitation and abuse. Disponível em: <https:/
/www.unicef.org/protection/57929_child_labour.html>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — PNAD Contínua 2016: Brasil tem, pelo menos, 998 mil crianças trabalhando em desacordo com a legislação. Disponível em: < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de- imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/18383-pnad-continua-2016-brasil-tem- pelo-menos-998-mil-criancas-trabalhando-em-desacordo-com-a-legislacao>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
MONTEJUNAS, Bruno de Carvalho. TRABALHO INFANTIL NO BRASIL: REALIDADE,
PROTEÇÃO JURÍDICA E DESAFIOS. Suplemento Trabalhista, São Paulo, p. 541-552, 2019.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS — Plataforma Agenda 2030. Disponível em:
< http://www.agenda2030.org.br/>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO — Marking progress against child labour: Global estimates and trends 2000- 2012. Disponível em:
<http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—ipec/>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO — Trabalho Infantil. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/lang–pt/index.htm>. Acesso em: 11 de dezembro de 2019.
[1] Graduando do curso de Direito da Uema. E-mail: henio.antonionunes@gmail.com
[2] Graduando do curso de Direito da UEMA. E-mail: robcosf@gmail.com
[3] Como popularmente é conhecida a atividade econômica exercida no domicílio de outras famílias.
[4] Gianpaolo Poggio Smanio. Interesses difusos e coletivos. p. 17.