Direito

Políticas públicas para mulheres e a importância de um olhar decolonial

Monique Rodrigues Lopes[1]

RESUMO: O objetivo desse trabalho consiste em analisar o reconhecimento dos movimentos feministas e de movimentos de mulheres, enquanto sujeitos coletivos. Busca-se analisar a construção de políticas públicas e a implementação de legislações voltadas para suas agendas específicas, bem como as mobilizações e ações coletivas protagonizadas historicamente por sua atuação em todo Brasil, no que tange o período da redemocratização até a história recente. Buscou- se ainda traçar um panorama da importância dos estudos decoloniais para a análise em questão. Trata-se de uma pesquisa exploratória com abordagem histórica-analítica e qualitativa; revisão bibliográfica e com o objetivo deanalisarmos sobre a atuação e o impacto dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Direito e feminismos, femininismos decoloniais, direitos das mulheres, políticas públicas para mulheres

ABSTRACTE: The obective of this work is to analyze the recognition of feminist and women’s movements as collective subjests. It seeks to analyze the construction of pulic policies and the implementation of legislation aimed at theis specifc agends, as well as the mobilizations and collective actions historically led by their performance throughout Brasil, form the period of redemocratization to recent history. We also sought to draw na overview of the importance of decolonial studies for the analysis in question. It is na exoloratory reserarch with the objective of analyzing the performance and impact and women´s movements in Brasil.

KEYS WORDS: Law and feminisms, decolonial feminisms women’s rights, public policies for women.

Introdução

O presente trabalho se concentra nas trajetórias dos movimentos feministas no Brasil, no período que tange o processo de redemocratização, do final dos anos setenta até os dias atuais. Pretendemos analisar os impactos de tal trajetória, na aprovação de dispositivos jurídicos direcionados a políticas públicas para mulheres.

A incorporação das temáticas dos movimentos feministas nas instâncias governamentais conforme Alvarez (2000), ressaltam a necessidade de “inventar novas formas de fazer política” para promover mudanças que visam garantir a igualdade de oportunidades para as mulheres. Nesse sentido as atuações desses movimentos mostram uma configuração particular das relações entre Estado e sociedade civil. O foco da discussão recai sobre as articulações dos movimentos feministas com o Estado para a incorporação das suas temáticas.

Nesse sentido, o presente trabalho busca identificar como esses movimentos tem se articulado, isolada e conjuntamente, para vocalizar as pautas das mulheres, pautas comuns e específicas, principalmente no período que tange a redemocratização do Brasil até os dias atuais e como a importância de análises que trazem à baila uma concepção de viés decolonial é importante para entendermos e analisar a questão.

1-         Panorama Histórico de lutas e conquistas das mulheres no Brasil- da redemocratização aos dias atuais

O avanço nas condições de vida das mulheres brasileiras, na saúde, na educação e no mercado de trabalho tem tido transformações lentas, mas contínuas. Conforme Eva Blay (2017), as conquistas das mulheres não estão imunes a retrocessos, como veremos mais adiante. Assim, ressaltamos alguns acontecimentos importantes nesse breve histórico de lutas no que tange o período de redemocratização do Brasil até os dias atuais. As lutas feministas saltaram no Brasil principalmente num contexto de luta pela democracia, contra a ditadura e as desigualdades sociais. (MACHADO, L. Zanotta, 2016).

Antes disso, nos lembra Celi Pinto (2003) que enquanto nos Estados Unidos no período do que seria da segunda onda, anos 1960 e 1970, temos acontecendo a quebra doamerican way of life, e na Europa a geração pós guerra tão rompedora de paradigmas e que enseja o maio de 1968, no Brasil temos o auge da ditadura militar.

Nesse sentido, a autora vai dizer sobre a dupla face do feminismo no Brasil, que ao mesmo tempo que se organiza num reconhecimento em torno do “ser mulher” reconhece-se que as desigualdades sociais do país são muitas e esse é um problema que tangência todos os outros. Principalmente no que se refere às mulheres e aos negros.

Importante ressaltar ainda que que o feminismo no Brasil nesse momento não era bem visto pela extrema direita (regime militar), nem bem quisto pelos movimentos de esquerda no geral por ser muitas vezes acusado de ser apolítico ou muito específico e nãoajudar na luta contra a ditadura. (PINTO, C.p.53).

Nessa transformação de suas próprias lutas e de perceber suas pautas temos que enquanto os feminismos de matriz liberais, marxistas ou socialistas estão inseridos em contextos políticos que acreditam que podem ser modificados no sentido de incluir os direitos das mulheres, o feminismo radical vê uma forma de perpetuação e legitimação do modo de fazer política masculinos (MIGUEL, L; BIROLI,F, 2014). O não pensar e agir pela via de pensamento já estruturada(patriarcal) sempre causou um certo mal-estar, principalmente nesses primeiros tensionamentos entre o que tange o público e o privado, dentro dos movimentos feministas.

Com o começo da abertura democrática no início da década de 1980, começa a acontecer a institucionalização do movimento que se aprimora nos anos 1990. Surgem então nesse primeiro momento os conselhos associados a partidos políticos. É nessa conjuntura de abertura para o novo e esperança de uma legislação que comtemplasse mais as mulheres que temos um dos documentos mais importantes do período, a “Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte”, promovida pelo Centro Nacional de Direitos da Mulheres” (CNDM).

Num contexto nunca antes visto na história da Brasil, as eleições de 1986, possibilitaram a eleição de 26 deputadas, que ainda que representasse apenas 5,7% no congresso (PINTO,C. 2003.p.74) e fossem mulheres já de família de políticos tradicionais, longe de ser uma bancada feminista no sentido de consciência que hoje se espera, representou muito para o país no sentido de ver na nova constituição uma oportunidade se consolidar os direitos das mulheres.

Nesse sentido a constituição de 1988 inaugurou conquistas muito importantes para osdireitos das mulheres como as asseguradas no art. 5°, inc. I onde dispõe que homens e mulheres são iguais e obrigações e direitos, direitos e deveres referente a sociedade conjugal serem exercidos pelo homem e pela mulher (art. 225 parágrafo 5°), ampliação da licença maternidade, aposentadoria para mulheres rurais, entre outras conquistas.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990 temos um o fenômeno das ONGS. CeliPinto vai chamar esse processo de profissionalização do feminismo que começa a atuar principalmente na prestação de serviço de mulheres vítimas a violência e atuando nas delegacias das mulheres. Assim, para a autora “enquanto o pensamento generaliza, o movimento por meio de ONGs se especializa.”

Gohn (1997), atenta para o fato dessa questão dos movimentos se transformaremem ONGs estar acontecendo não só com o feminismo, mas com outros movimentos sociais também. A influência da globalização, das novas tecnologias e de processos multiculturais criaram uma nova conjuntura e busca de uma nova ordem. Outro ponto é que, principalmente nos anos 1990, há uma captura pelo Estado do sujeito político da sociedade civil e o deslocamento das demandas dos movimentos sociais para políticas públicas.

Destacamos alguns acontecimentos como a criação do Geledés, Instituto da mulher negra em 1988. É uma organização política contra o racismo e o sexismo e, uma das maiores ONGs de feminismo negro do Brasil, com várias campanhas e ações significativas contra o racismo. Se dedica à intervenção juntos a órgãos estatais e a luta por políticas púbicas. Seus canais de comunicação estão sempre atualizados com temas de direitos humanos, gênero, educação, saúde, com diversas pesquisas públicas com relação a esses temas.

Em 1992, com a criação da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, reafirma-se princípios já explicitados na Constituição Federal de 1988, em especial, no conteúdo do Artigo 226, § 7º, que “dispõe sobre o direito de mulheres e homens decidirem livremente sobre concepção e anticoncepção, e o dever do Estado de informar e assegurar a prestação dos serviços necessários para a garantia desses direitos”.

Tais questões no início da década de 1990, principalmente com a Conferência do Cairo (CIPD, 1994) e na Rio 92 ganhavam as pautas das discussões e movimentos de mulheres pela questão de se colocar os direitos reprodutivos como direitos humanos pela primeira vez. A emblemática questão do controle populacional imposto pelos Estados principalmente nos países pobres também ganhava pautas de discussão. Em seu documento final, (parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo) a questão do aborto inseguro aparece como um grave problema de saúde pública.

Pouco tempo depois, a IV Conferência Mundial sobre Mulheres (Beijing, 1995), Intitulada “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, partiu de uma avaliação dos avanços obtidos desde as conferências anteriores (Nairobi, 1985; Copenhague, 1980; e México, 1975) revelou a distância das mulheres dos espaços de poder e a relação entre o empoderamento de gênero e a superação dos desequilíbrios mundiais.

É importante registrar que, a IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, em 1995) reconheceu que as assimetrias de gênero são condicionadas, também, pelas políticas públicas e, recomendou duas estratégias para alcançar a igualdade entre os homens e as mulheres: a transversalidade em todos os processos de tomada de decisão e o “empoderamento” das mulheres.

O Brasil teve participação ativa na Conferência de Pequim e em sua continuação. Com o intenso diálogo entre o governo e a sociedade civil e com participação ativa dos movimentos feministas, assim como da interação construtiva com os demais poderes do Estado, em especial parlamentares e representantes de conselhos estaduais e municipais sobre a condição feminina. A aguda articulação com o movimento de mulheres, estabelecida desde então, tornou-se elemento essencial à formulação das políticas públicas no Brasil, que hoje incorporam a perspectiva de gênero de forma transversal.

Neste sentido de plataforma transversal, destaca-se também já nos anos 2000 a criação da Secretaria de políticas para mulheres com vínculo ministerial que recentemente em 2016 no governo de Michel Temer foi extinta pela medida provisória 696 com a junção das Secretarias de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), de Políticas para as Mulheres (SPM), de Direitos Humanos (SDH) e Nacional de Juventude (SNJ).

Faz-se importante ressaltar a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006) tendo sua iniciativa sido realizada no Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e no Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher(CLADEM). Quando os dois órgãos e a Srª Maria da Penha formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o então seu marido, o colombiano Heredia Viveiros, a discussão coordenada pela secretaria especial de políticas para mulheres alcança o Governo Federal e, pela repercussão internacional, coloca as autoridades do país em cheque.

Ainda nesse caminhar das trajetórias da consolidação de direito das mulheres e sua ocupação nos mais diversos espaços de poder temos em 2010 a eleição de Dilma Rousseff para o cargo de Presidente da República, e pela primeira vez uma mulher ocupa o cargo mais elevado do Executivo Federal.

Outra questão que pode ser analisada é a construção da autonomia e responsabilidade das mulheres pelas decisões que mais lhe tocam em sua privacidade e intimidade pelas instituições jurídicas. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 de 2012, que tratou da possibilidade do aborto terapêutico na hipótese de feto anencéfalo, constitui um bom exemplo. Em seu bojo, fica constatada a invisibilidade institucional perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. O órgão máximo do Judiciário nacional, guardião da Constituição foi omisso quando não enfrentou a possibilidade de antecipação de parto terapêutico ou mesmo o aborto pela perspectiva da privacidade e autodeterminação da mulher. Em uma discussão tecnicista que se circunscreveu em definir a atipicidade da conduta do aborto de fetos anencefálicos, o STF deixou passar uma notável oportunidade de trazer para a esfera pública as bases para a igualdade, equidade e autodeterminação das mulheres.

Partimos do pressuposto de que a estrutura de nossa sociedade machista e patriarcal, limita fortemente as mulheres a conseguirem o mínimo de direitos. Conforme afirmou Beauvoir (1970p.21): “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”.

Os incentivos institucionais são extremamente importantes, justamente para funcionarem como motor auxiliar na máquina de luta por direitos. Os feminismos buscam a construção de uma ética pessoal e interpessoal; noutros termos, o que se busca é o fundamento de uma ética que reflita no modo pelo qual alguém se relaciona consigo mesmo e com os demais, bem como com as instituições que normatizam e distribuem o discurso hegemônico. Essa relação repercutirá na “orientação moral” e, consequentemente, na “concepção de direitos” que conformam o tecido social (TOURAINE, 2011, p.73).

2-         Produção de políticas públicas para mulheres

Com o objetivo de ressaltar o protagonismo dos movimentos feministas e movimentos de mulheres nas conquistas de seus direitos e refletir sobre a importância de mecanismos como as políticas públicas e de que maneira elas estabelecem um vínculo com o Estado e a sociedade civil, analisaremos que esse vínculo não é imparcial Galeotti (2002). Ele implica sujeitos sociais, posições e interesses diferentes. O Estado então é visto como arena de negociações e articulações políticas, não deixando de destacar a relação entre economia e política que se produz no capitalismo.

Galeotti (2002) conceitua então as políticas públicas como um meio pelo qual se distribuem recursos econômicos e simbólicos. Se tratando de ações deliberadas, que levam a cabo atores governamentais para determinar a forma em que serão atribuídos os recursos com vista a satisfazer as necessidades e interesses da população. Essa intervenção do Estado estabelece quem tem direito a que e quem não. Assim em cada momento da história as políticas públicas constroem determinadas identidades coletivas. Afirma a autora que praticas fortemente naturalizadas e arraigadas se sustentam como fortes estereótipos e dificilmente são consideradas questões que precisam de modificação.

Considerando a esfera social é um lugar privilegiado e que há uma contradição entre o caráter social da força de trabalho e a apropriação privada da riqueza social. As relações de exploração portanto não são só e classes, mas também opressão de sujeitos que ocupam lugares subalternos, entre eles, as mulheres.

Dessa maneira dentro das políticas sociais as políticas de gênero fazem referência as políticas do Estado que buscam reduzir as desigualdades e descriminação entre os gêneros e atender as mulheres na sua condição de subjugação. Assim, essa inclusão demanda uma necessidade de redistribuição e também de reconhecimento, implicando condições matérias de existência e também de “condições simbólicas” que quebrem uma somatização das relações sociais de dominação. (BOURDIEU, op.cit p. 33)

Dessa maneira, a forma como homens e mulheres foram alocados no mundo público ou na esfera privada, revela o caráter patriarcal da doutrina liberal que vem hoje sendo reforçadamente denunciado pelas teorias feministas. Nesse sentido, a autora se apoia na ideia de que a família e a vida pessoal são reguladas politicamente, assim sendo, “problemas pessoais só podem ser resolvidos através de uma reflexão política e de uma ação política” (LAVINAS apud PATEMAN,1989).

Dentro desse contexto de ação política que os movimentos organizados de mulheres e feministas tem procurado exercer sobre as cidades, para Lavinas uma espécie de lar expandido. Assim nesse sentido as mulheres fazem suas reivindicações colocadas pelas lutas urbanas, como moradia, qualidade de vida e serviços básicos. Surge então uma questão nessa relação que é as mulheres estabelecerem o Estado como interlocutor na luta por atendimento as suas necessidades, via formulação de políticas públicas e esse Estado para qual se voltam as mulheres é o mesmo patriarcal que se apropria do trabalho doméstico não remunerado delas, da maternagem e no trato com os idosos. (LAVINAS.L,ibidem,1997).

Além disso, o discurso de gênero homogeneizador que determina uma análise hétero, branco, central, de leituras das mulheres se torna o padrão dessas políticas públicas, principalmente as propostas por organismos internacionais como a ONU, por exemplo, que nesse sentido tende a colocar uma ótica eurocêntrica linear numa mentalidade de primeiro mundo europeu que ainda é muito presente.

3-         A importância do olhar decolonial na implementação de políticas Públicas para mulheres

Para tentar solucionar o problema apontado no tópico anterior referente a implementação de políticas públicas com um olhar que contemple de fato as questões que assolam as mulheres latino americanas, analisaremos a contribuição de autores a autoras com um viés que questiona a colonialidade que atravessa a história e construção de muitos países, inclusive o Brasil.

O feminismo decolonial convida a América Latina a se ver como si mesma e não pelo olhar do colonizador. A defesa desse olhar epistêmico diferenciado aponta para as peculiaridades do indivíduo, fora da lente do “universal”. Nesse sentido, sair do paradigma da ciência universal é sair para fora do olhar do império que olha de cima e padroniza.

A cerca dessa padronização podemos citar o relevante trabalho de Spivak (2010) em que é presente a crítica aos autores ocidentais europeus que acabam por enfatizar ainda mais as estruturas de poder existentes, proporcionando a manutenção do ocidental como sujeito e o não ocidental como o outro. Assim ignorando a divisão internacional do trabalho, ignoram as relações de poder que categorizam o não ocidental. Dessa forma tiram a voz do outro, impedindo-lhe de falar. Para Spivak a mulher é reprimida duplamente; pela violência epistêmica do imperialismo e pela dominação masculina conservadora na construção do gênero.

Colocando como pressuposto que o feminismo ocidental isola a categoria de gênero representando apenas um tipo de mulher sem abarcar os problemas enfrentados pelo capitalismo, classe e outros tipos de opressões enfrentadas nos “países periféricos”, observamos o pensamento de Monhanty (2018) e percebemos como as feministas ocidentais criaram uma identidade única de mulher do terceiro mundo, uma ótica neutra que retifica um determinado lugar. Universalizando, homogeneízam o significado do termo mulher, o modo como se dá essa dominação de gênero.

Se de uma maneira podemos identificar o colonialismo em outras esferas sem especificar o feminismo, esse eugenismo coloca o sujeito neutro, o homem branco, neutro e uma noção única de mulher   assim   como   fazem Simone Beauvoir por Betty Fridman, entre outras, principalmente da primeira e segunda ondas feministas. (ALVAREZ,2003)

O problema da categorização por onda é justamente esse de não contemplar o que as feministas negras, indianas, indígenas, lesbicas estão lutando, escrevendo e falando pelo menos desde de que tange o período da segunda onda. O feminismo decolonial propõe uma análise de desconstrução, esvaziamento, para assim pensar num lugar de fala. Monhanty reforça assim que a escolha da narrativa que vai validar esse discurso hegemônico exclui todo o resto. Nesse sentido ressalta armadilhas que reduzem o problema de gênero num tipo único de mulher homogeneizada, a categorizando, produzindo dados ou textos que reforçam isso e continuam ressaltando a subalternização e estereótipos.

O giro decolonial se torna difícil porque é preciso um duplo movimento de reivindicar um lugar de fala e de se posicionar nesse lugar de fala. É possível unificar uma política pública por exemplo que vá além das subjetividades hegemônicas? Para Quijano(2010):

a dificuldade se dá por ser a colonialidade um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista, por sustentar-se numa classificação racial/étnica da população do mundo como uma pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e de escala societal.( QUIJANO, A.2010 p.84)

María Lugones (2008) utiliza, problematizando essa análise de Quijano, assim na sua lógica de estrutura se entrelaçam raça e gênero. Dentro do esquema proposto por esse autor que analisa que o poder está estruturado em quatro âmbitos básicos da existência humana, sexo, trabalho, autoridade coletiva, subjetividade/intersubjetividade a autora passa a analisar a intersecionalidade de raça e de gênero dentro desse esquema e nesse sentido apesar da modernidade euro centrada capitalista afirma que todos “somos racionalizados e colocados em um gênero somos dominados e vitimados por esse processo” (ibidem p. 82.)

A crítica feita a Quijano então é que ele reduz o gênero a organização do sexo, seus recursos e produtos e parece cair em certa presunção a respeito de quem controla o acesso e quem são constituídos como recurso. Assim ele parece convicto de que a disputa pelo controle do sexo é uma disputa entre homens, sustentada ao redor do controle por parte desses homens. Nesse viés para Lugones, o mesmo enxerga a categoria gênero assim como as feministas europeias, de forma isolada. Assim ele identifica raça como uma categoria inventada, mas gênero não.

Outra importante autora que questiona essas bases é Lélia Gonzalez (2020), que além de trazer à tona os problemas trazidos pela colonialidade, pontua a perpetuação da ideologia de branqueamento que manteve indígenas e negros na condição de segmentos subordinados dentro das classes mais exploradas na nossa sociedade. Nesse sentido ao se questionar sobre o assunto a autora expõe:

Exatamente porque tanto o sexismo como o racismo partem de diferenças biológicas para se estabelecerem como ideologias de dominação. Surge, portanto, a pergunta: como podemos explicar esse “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, em nossa opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos, estão em uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista. ( Gonzalez, 2020,p.141).

Percebemos então que tanto para Gonzales (2020) como para Lugones (2008) a intersecção mostra um vazio e somente quando se vê essas categorias de forma fundida é que se pode desimvibilizar as mulheres de cor. Nesse sentido, o temo “mulher” em si, sem especificação dessa fusão não tem sentido, ou tem um sentido racista, já que nessa lógica de estruturas essa mulher é a branca, hétera, burguesa.

Conclusão

Procuramos estabelecer através do artigo uma breve análise no que tange a história das conquistas de direitos das mulheres no Brasil através das políticas públicas para esse grupo desde o período da redemocratização até os dias atuais. Buscou- se ainda estabelecer como o Estado nessa arena de negociações e articulações políticas, não deixando de avultar a relação entre economia e política que se produz no capitalismo.

Buscou-se analisar que num contexto latino-americano, mais notadamente o Brasil, há uma série de fatores e especificidades acerca da análise dos movimentos socais e ações coletivas, que devem ser levados em consideração. O próprio processo histórico da colonização gerou distintos procedimentos no âmbito social, político e econômico que ocorreram na América Latina. As relações do passado escravocrata, o clientelismo, o coronelismo e, mais tarde, o populismo e ditaduras, deixaram marcas e fizeram com que as relações de dominação entre cidadãos e Estado se tornasse paternalistas e observadas como naturais. (CARVALHO, 2004).

No Brasil, diferentemente da Europa as diferenciações não se dão entre os novos movimentos sociais como de gênero, raça, ecológicos e os velhos, nomeadamente de classe e operário; mas sim se tem uma diferenciação na forma de fazer política pois as relações e articulações sempre estiveram presentes. Seja na articulação com a Igreja (como por exemplo a teologia da libertação na ditadura) ou relações de sindicatos com os Governos.

Outra peculiaridade é que nos Estados Unidos e na Europa a pauta dos direitos humanos esteve ligada essencialmente aos diretos culturais e sociais com ampla visibilidade na esfera pública. Já na América Latina as lutas dos novos movimentos sociais ocorreram e ainda ocorrem em sociedades de cunho autoritárias, com sistema jurídico deficitário, numa cultura política machista e racista que são históricas. Essa atuação tática dos movimentos então acontece não por uma, mas várias vias de ações, sejam mobilizatórias, contestatórias e de enfrentamento, e também através de interlocução, diálogo e participação institucional em instituições participativas.

Por fim, buscou-se trazer a importância de analisar tais questões pelo prisma dos estudos dos feminismos decoloniais, mais especificamente e para citar novamente Lélia Gonzalez, num “feminismo afro-latino americano” para tentar explicar e compreender o quão necessário são tais estudos para analisar a trajetória de lutas das mulheres que nos permitiram chegar até aqui.

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[1] Doutoranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais – PPGSD/UFF. Especialista em Filosofia e Sociologia (FETREMIS/RS). Bacharela em Direito- UNESA/RJ. Historiadora- UFV/MG. Membro do Ius Commune (Grupo de estudos e pesquisa em História da Cultura Jurídica (UFSC/Cnpq).

Como citar e referenciar este artigo:
LOPES, Monique Rodrigues. Políticas públicas para mulheres e a importância de um olhar decolonial. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito/politicas-publicas-para-mulheres-e-a-importancia-de-um-olhar-decolonial/ Acesso em: 22 nov. 2024
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