Direito Tributário

O conflito de incidência de ISS e ICMS nas atividades desenvolvidas pelas Farmácias de Manipulação

The conflict of incidence of ISS and ICMS in the activities developed by the Pharmacies of Manipulation

Víctor Coutinho Leal[1]

Resumo

O presente artigo tem por intuito analisar as atividades desenvolvidas pelas farmácias de manipulação de medicamentos, buscando determinar qual o imposto incidente sobre essas operações. Em virtude do negócio jurídico firmado entre o consumidor e as farmácias compreender tanto a manipulação, quanto a entrega de um bem, surge um aparente conflito de competências tributárias. Isto porque, as Administrações Públicas Estaduais entendem que o bem entregue consiste em uma mercadoria e, portanto, sujeito à incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O Fisco Municipal, ao seu turno, entende que incide sobre a operação o Imposto sobre Serviços de qualquer natureza (ISS), visto que se trata de uma prestação de serviços com a consequente entrega de um bem. O estudo se baseará tanto na análise do aspecto material das hipóteses de incidência tributária do ICMS e do ISS quanto da jurisprudência formada acerca do tema.

Palavras-chave: ICMS, ISS, farmácias de manipulação, conflito de competência, incidência.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the activities carried out by pharmacies of manipulation in order to determine the tax on these operations. By virtue of the legal deal entered into between the consumer and these pharmacies understand both the handling, and the delivery of a well arises, an apparent, conflict of tax competence. This is because, the State Public Administration understands that the goods delivered consist of merchandise and, therefore, subject to the incidence of the Tax on the Circulation of Goods and Services (ICMS). The Municipal Treasury, in turn, understands that the Tax on Services of any nature (ISS) should be charged on the operation, since it is a service rendering with the consequent delivery of a good. The study will be based both on the analysis of the material aspect of the tax incidence hypotheses of ICMS and ISS and the jurisprudence formed on the subject.

Keywords: ICMS, ISS, pharmacies of manipulation, Conflict of jurisdiction, incidence.

1. Introdução

A Segunda Revolução Industrial, que iniciou na segunda metade do século XIX e terminou durante a Segunda Guerra Mundial, foi marcada pelo desenvolvimento da indústria automobilística. Esse crescimento se deve, em grande parte, ao chamado Fordismo, termo em referência à Henry Ford, seu inventor, que consiste em um sistema industrial de produção em massa. Através de linhas de montagem e da padronização dos produtos foi possível a produção em larga escala de bens homogêneos, reduzindo custos e tornando mais barata a industrialização

Apesar da produção em massa de bens idênticos ainda ser amplamente utilizada, tornando viável a venda de um mesmo produto em escala global, cresce a quantidade de pessoas que buscam produtos que melhor se adequem as suas necessidades. Opondo-se à linha de produção em massa, os bens personalizados são feitos de acordo com os desejos e gostos do comprador, sendo muitas vezes únicos.

Um exemplo dessa personalização, que merece destaque, diz respeito aos produtos farmacêuticos manipulados. Embora existam medicamentos, produtos de beleza ou suplementos alimentares padronizados e à disposição em farmácias, mercados e outros estabelecimentos, aumenta a procura por esses bens manipulados. Tal situação ocorre por duas razões principais: a) o preço dos produtos manipulados algumas vezes é mais barato; ou b) pelo fato do produto atender melhor às particularidades ou necessidades de cada cliente.

Nas farmácias de manipulação de medicamentos é possível encontrar produtos já manipulados e prontos para comercialização, como cremes, perfumes e alguns medicamentos, e produtos únicos que são manipulados mediante receita e posteriormente entregues ao cliente, ou seja, são produtos específicos para aquele cliente. Devido à realização de operações em que há manipulação personalizada, e outras em que os produtos já se encontram manipulados, surge então a dúvida acerca de qual tributo incidirá sobre cada operação – ICMS ou ISS.

Isto porque, as Administrações Públicas Estaduais entendem que, quando o cliente compra um produto (medicamento, loção, creme) este é uma mercadoria e, por conseguinte, incide sobre a operação o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). As Administrações Públicas Municipais, por sua vez, entendem que, na verdade, incide sobre a operação o Imposto sobre Serviços (ISS), pois a operação consiste na prestação de um serviço personalizado que resulta em um produto manipulado especificamente para determinado cliente.

O presente artigo tem por intuito, portanto, pôr luz a esse debate, buscando determinar a qual imposto estão sujeitas as operações das farmácias de manipulação. Para tanto iremos nos valer tanto da doutrina pátria, quanto da jurisprudência já formada acerca do assunto.

2. O princípio federativo e a repartição de competências tributárias

A eleição da Federação como sistema político do Estado brasileiro tem como efeito tanto a autonomia administrativa, legislativa e tributária dos entes federativos, quanto a igualdade jurídica entre as esferas da federação, isto é, não há hierarquia entre o governo central e os governos locais.

Em razão dessa coexistência de autonomias federativas, estaduais e municipais – devido ao princípio da autonomia dos municípios no caso brasileiro – são delimitadas pela Constituição Federal faixas de competências para cada ente, de modo a evitar a violação da autonomia recíproca por qualquer das partes.

Dentre essas competências constitucionais destaca-se a competência tributária, aptidão para criar in abstrato tributos. Essas são previstas no chamado Sistema Constitucional Tributário – conjunto ordenado das normas constitucionais que versam sobre matéria tributária – que peculiariza-se pela descrição exaustiva das áreas que podem ser tributadas, resultando em um sistema rígido de distribuição de competências.

Como reflexo da privatividade e exaustividade no tratamento constitucional temos que as normas de competência possuem, ao mesmo tempo, um efeito positivo, visto que confere a aptidão para um ente instituir determinado tributo, e um efeito negativo, pois retira dos outros a competência para instituir tributação sobre a mesma hipótese de incidência.

No caso dos impostos, a Carta Magna de 1988 determina os atos ou fatos sobre os quais a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem instituí-los. Reservando à União a competência residual para instituição daqueles não previstos, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição.

Aos Municípios foi conferida a competência para instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendida a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Ao determinar a materialidade do denominado Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) traçou a Carta de Competências os limites a que está adstrito o legislador ordinário ao exercer sua aptidão para instituir esse imposto. Há explicitamente o critério material da Regra-matriz de Incidência Tributária (RMIT), bem como implicitamente a determinação dos sujeitos das relações tributárias e da base de cálculo possível.

A distribuição rígida de competências na Constituição, contudo, não está isenta de problemas quando da aplicação das normas tributárias. Devido à complexidade das relações jurídicas produzidas pelos particulares, surgem conflitos acerca da pessoa política competente para tributar determinadas situações. Esse é o caso das operações mistas de manipulação e fornecimento de medicamentos por farmácias de manipulação.

O contribuinte vendo-se duplamente onerado, haja vista a pretensão tanto do Município, quanto do Estado, recorreu ao judiciário para ter dirimido esse conflito de competências tributária. Essa lide chegou ao Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 605.552, relator Min. Dias Toffoli, que teve sua repercussão geral reconhecida e encontra-se pendente de julgamento. No caso, o Estado do Rio Grande do Sul recorreu contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, no qual os ministros entenderam que os serviços prestados por farmácia de manipulação, que preparam e fornecem medicamentos sob encomenda, submetem-se à exclusiva incidência do ISS.

3. O Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS

Iniciaremos nosso estudo pelo Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), cuja competência para instituição pertence ao Estados e o ao Distrito Federal de acordo com o art. 155, II, da Constituição Federal:

Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(…)

II – Operações relativas à circulação de mercadorias e serviços e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações prestadas se iniciem no exterior.

Depreende-se do artigo acima que o tributo incide sobre a realização de operações relativas à circulação de mercadorias. Essa circulação necessariamente deve ser jurídica, isto é, a transferência, de uma pessoa para outra, da posse ou propriedade da mercadoria.

Conforme leciona Roque Carrazza[2], a Constituição determina que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços tem por hipótese de incidência “ a realização de operações relativas à circulação de mercadorias”. Deste modo, a compreensão do ICMS passa por dois termos principais, quais sejam “circulação” e “mercadorias”, que irão caracterizar os negócios jurídicos sujeitos à incidência do ICMS.

A “circulação” a que faz referência o arquétipo constitucional do ICMS há de ser entendida em sua acepção jurídica, ou seja, a transmissão da titularidade de um bem para um terceiro decorrente de um negócio jurídico. Essa transmissão da titularidade da mercadoria ocorre, portanto, por meio de uma obrigação de dar, isto é, um vínculo jurídico que impõe ao devedor a entrega de alguma coisa já existente. Clóvis Beviláqua assim define as obrigações de dar: “É aquela cuja prestação consiste na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, seja para constituir um direito real, seja somete para facilitar o uso, ou ainda, a simples detenção, seja finalmente, para restituí-la a seu dono”.[3]

Além de ser necessária essa circulação, é imprescindível que o objeto dessa obrigação de dar seja uma “mercadoria”. Logo, com a entrega da mercadoria há o adimplemento da obrigação e a consequente transferência da propriedade da mercadoria, sendo esse o fato imponível do ICMS.

Por ser um dos fatores que caracteriza as operações jurídicas sujeitas ao ICMS é imperativo ainda que se conceitue o termo “mercadoria”.  De acordo com o Direito Comercial mercadoria consiste em um bem móvel sujeito à mercancia. Nota-se que não é a natureza do bem móvel que o define como uma mercadoria, mas sim a destinação a que lhe é dada. Nesse sentido, Roque Carrazza observa que “a qualidade distintiva entre um bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-se no propósito de destinação comercial”.[4]

Esta também é a lição de José Souto Maior Borges

“Mercadoria é o bem móvel, que está sujeito à mercancia, porque foi introduzido no processo econômico circulatório. Tanto que o que caracteriza, sob certos aspectos, a mercadoria é a destinação, porque aqui que é mercadoria, no momento que se introduz no ativo fixo da empresa, perde essa característica de mercadoria, podendo ser reintroduzido no processo circulatório, voltando a adquirir, consequentemente, essa conotação de mercadoria”.[5]

As mercadorias, portanto, consistem em bens que se encontram prontos e que são destinados à comercialização. Logo, a hipótese de incidência do ICMS corresponde à realização de operação jurídica, regida pelo Direito Comercial, praticada num contexto de atividade empresarial, que consista em uma obrigação de dar uma mercadoria.

4. O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS

A competência para instituição do ISS, ao seu turno, foi conferida aos Municípios por força do art. 156, III, da Constituição, que estabelece:

Art. 156 – Compete aos Municípios instituir imposto sobre:

(…)

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar

A despeito da redação do artigo acima transcrito ser “instituir imposto sobre serviços…” José Eduardo Soares de Melo observa que, em virtude do Direito atuar regulando as relações humanas, “o cerne da materialidade da hipótese de incidência (…) não se circunscreve ‘serviço’, mas uma ‘prestação de serviço’”[6].

A prestação de serviço está associada à uma obrigação de fazer, consistido em um esforço humano direcionado a outra pessoa. Observa-se, desta forma, que são necessários dois sujeitos para que haja uma prestação de um serviço, de modo que um irá desenvolver um fazer em benefício de outrem.

Para que essa prestação seja passível de tributação é necessário ainda que seja onerosa, pois é deve haver uma mensuração econômica do fato imponível para que seja observado o princípio da capacidade contributiva. Conforme leciona Aires Fernandino Barreto “não poderão ser erigidos como pressupostos de tributos fatos destituídos de conteúdo econômico, sob pena de violação das exigências da isonomia”[7]. Logo, é a dimensão econômica de cada fato que irá permitir a quantificação do tributo.

Enquanto no ICMS a tradição ocorre com a transferência da propriedade da mercadoria, no ISS a tradição se consuma com a conclusão da prestação do serviço, que resulta em um benefício para o tomador. Embora em alguns casos a conclusão da prestação consista em um bem, esse não se confunde com uma mercadoria, pois ele não existiria sem que antes houvesse a realização do esforço humano.

Os Municípios, portanto, podem criar impostos sobre fatos abrangidos pelo conceito de serviços, sendo esse um dos limites intransponíveis ao exercício competência tributária municipal. A Constituição, contudo, não definiu, explicitamente, o termo “serviços”. Isso não implica, porém, que o legislador ordinário tenha qualquer liberdade de defini-lo, pois, a competência tributária, por ser matéria constitucional, não é alterável pela legislação ordinária.

A partir dos princípios e normas da Carta Magna verifica-se que existe, na verdade, um conceito implícito de serviço na Constituição. Por ser um conceito de direito privado, que foi por ela incorporado, é cogente para demarcação precisa da competência municipal verificar o que se compreende por serviço. Pontes de Miranda observa que “serviço é qualquer prestação de fazer”… “servir é prestar atividade a outrem; é prestar qualquer atividade que se possa considerar ‘locação de serviços’, (…). Trata-se de dívida de fazer, que o locador assume. O serviço é sua prestação”[8]

O cerne da prestação de serviço, portanto, reside em uma obrigação de fazer. Maria Helena Diniz define a obrigação de fazer como aquela “a que se vincula o devedor à prestação de um serviço como ato positivo, material ou imaterial, seu ou de terceiro, em benefício do credor ou de terceira pessoa”[9].

Na obrigação de fazer o objeto da relação jurídica é um esforço humano, um ato, ou conjunto de atos, podendo ser imaterial, como a realização de uma apresentação artística por um canto, ou material, caso da contratação da confecção de uma roupa. 

Com base nas considerações acima, Aires Barreto conceitua serviço tributável pelo Município como: “O desempenho de atividades economicamente apreciáveis, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo.”[10]

Considerando a definição supracitada, para que um serviço seja caracterizado como serviço tributável é necessário que haja uma relação jurídica onerosa, sob o regime de direito privado, entre duas partes não subordinadas, que tenha por objeto uma obrigação de fazer cujo resultado seja útil e que não esteja compreendida na competência dos Estados e Distrito Federal.

Importa, ainda, para nosso estudo a classificação dos serviços de acordo com os meios condições e modos de sua prestação[11] em: a) serviços puros, aqueles cuja prestação prescinde quer de instrumentos, quer da aplicação de materiais; b) serviços com emprego de máquinas, instrumentos ou equipamentos, nesse caso o serviço é viabilizado pelo emprego de coisas que surgem como seu requisito; c) serviços com aplicação de materiais, a essência da atividade é o esforço humano, sendo os materiais sua condição de viabilidade, esses são elementos concretos envolvidos na prestação, por ela requeridos ou exigidos, sob pena de tornar impossível o resultado; e d) serviços complexos, nessa hipótese o serviço é prestado conjugando-se o uso de equipamentos, ou instrumentos, e a aplicação de materiais, o esforço humano continua como o foco da prestação, sendo os demais acessórios.

Com exceção do primeiro tipo de serviço, qual seja o serviço puro, nas outras três categorias é possível que ao fim da prestação um bem material seja entregue ao beneficiário do serviço, exempli gratia uma chapa de raio-x nos serviços com emprego de máquina, um parecer jurídico escrito nos serviços com a aplicação de materiais, e um terno feito sob medida nos serviços com o uso de equipamentos e materiais.

Nos serviços com aplicação de materiais e nos serviços complexos embora haja a utilização de materiais, esses não ostentam a natureza de mercadoria, pois não são destinados a comercialização. Eles consistem na verdade em insumo, o suporte, necessário para a prestação do serviço se concretize.

Nas situações em que há apenas a prestação de esforço humano não restam dúvidas que o tributo incidente será o ISS. Ocorre que, as hipóteses nas quais o acordo entre os particulares compreende, a um só tempo, negócios jurídicos que importam a transferência da titularidade de mercadoria e, concomitantemente, a prestação de esforço humano, em caráter negocial, são muito comuns.

São esses casos que suscitam o conflito de competência entre o ICMS e o ISS, pois o negócio jurídico compreende tanto a prestação do serviço, quanto a entrega de uma mercadoria. No presente trabalho analisaremos o caso das farmácias de manipulação de medicamentos, nas quais a relação jurídica entre a empresa e o consumidor compreende tanto um serviço de manipulação, quanto a entrega de um medicamento.

5. As operações jurídicas desenvolvidas pelas Farmácias de Manipulação

A manipulação é definida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) como o “conjunto de operações farmacotécnicas, com a finalidade de elaborar preparações magistrais e oficinais e fracionar especialidades farmacêuticas para uso Humano”.[12]

As preparações magistrais são “aquelas preparadas na farmácia, a partir de uma prescrição de profissional habilitado, destinada a um paciente individualizado, e que estabeleça em detalhes composição, forma farmacêutica, posologia e modo de usar”.[13]

As preparações oficinais, por sua vez, são “aquelas preparadas na farmácia, cuja fórmula esteja inscrita no Formulário Nacional ou em Formulários Internacionais reconhecidos pela ANVISA”[14]. Essas preparações, portanto, prescindem de prescrição médica e podem ser manipuladas e postas à venda. 

A autarquia vinculada ao Ministério da Saúde define ainda o que seja “preparação”. Segundo a ANVISA preparação consiste em um

“Procedimento farmacotécnico para obtenção do produto manipulado, compreendendo a avaliação farmacêutica da prescrição, a manipulação, fracionamento de substâncias ou produtos industrializados, envase, rotulagem e conservação das preparações”.[15]

Na medida em que o conflito de competência para tributar a operação desenvolvida pelas farmácias de manipulação resulta da sua dúplice materialidade, qual seja a manipulação do medicamento e sua consequente entrega ao final, as definições acima tornam-se imprescindíveis para solução do problema.

De acordo com o exposto, o aspecto material do ICMS consiste na operação relativa à circulação de mercadoria, ou seja, a “obrigação de dar” um bem móvel que no momento da operação já se encontra elaborado e destinado à mercancia, ou seja a mercadoria existe previamente. O aspecto material do ISS, por outro lado, consiste na prestação de um serviço de qualquer natureza economicamente apreciável. A prestação do serviço, portanto, é uma obrigação, economicamente apreciável, de fazer (execução, elaboração, fazimento) algo até então inexistente.

Deste modo, o objeto da relação jurídica revela-se como critério diferenciador entre as operações sujeitas à incidência do ICMS e daquelas sujeitas à incidência do ISS. Assim, apenas as operações jurídicas nas quais há uma obrigação de entrega de mercadorias haverá a incidência do ICMS, e naquelas em que o cerne da relação for uma operação de fazer haverá a incidência do ISS. Nesse sentido, Washington de Barros Monteiro sustenta que

“O ‘substractum’ da diferenciação está em verificar se o dar ou o entregar é ou não consequência do fazer. Assim, se o devedor tem de dar ou de entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar, todavia, se, primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la se tem ele de realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer”.[16]

Com o intuito de diferenciar as obrigações de dar, das obrigações de fazer em que há a entrega de uma coisa Aires Barreto salienta “nas obrigações de fazer segue-se o dar, mas este não se pode concretizar sem o prévio fazimento, que é o objeto precípuo do contrato (enquanto o ‘entregar’ a coisa feita é mera consequência).”[17]

Essa diferença fica clara no caso de um terno. O cliente pode comprar os ternos que se encontram prontos em uma loja, nessa hipótese tem-se uma obrigação de dar, caracterizando-se o terno como uma mercadoria, incidindo sob essa compra e venda o ICMS. Por outro lado, caso esse cliente busque um alfaiate para confecção de um terno feito sob medida há uma obrigação de fazer, visto que o terno não pode ser entregue sem o seu prévio fazimento, logo, incide na operação o ISS.

Face a definição de preparação da ANVISA é evidente que as operações desenvolvidas pelas farmácias de manipulação consistem em um conjunto de esforços humanos (avaliar, manipular, fracionar, rotular), ou seja, um fazer, que resulta em um produto manipulado.

Esse produto pode ser de dois tipos: a) preparação magistral, que denominaremos preparações com receita; ou b) preparação oficinal, preparações sem receita. Enquanto essas podem já estar prontas, e comumente se encontram, visto que suas fórmulas constam em farmacopédias, compêndios e formulários reconhecidos pelos Ministério da Saúde, aquelas, apenas, podem ser elaboradas mediante uma prescrição de um profissional habilitado, que irá determinar sua composição e forma farmacêutica.

Nas preparações magistrais, o produto final não se encontra pronto para compra no mercado, é necessário que o farmacêutico o elabore de forma individualizada atendendo à prescrição médica. Logo, é um produto individualizado e específico para aquele paciente.

Ademais, embora a preparação finalize-se com a entrega de um medicamento, o objetivo precípuo da relação jurídica não é sua entrega, mas sim a elaboração deste. O consumidor deseja o serviço de manipulação prestado pelo farmacêutico, do qual resulta um medicamento.

Valendo-se dos ensinamentos de Washington Monteiro e Aires Barreto anteriormente expostos, temos que o produto manipulado não pode ser entregue sem o prévio fazimento, sendo a entrega mera consequência do fazer. A atividade desenvolvida caracteriza-se, portanto, como uma obrigação de fazer e não uma obrigação de dar, consequentemente, o negócio jurídico sujeita-se à incidência do ISS de competência dos Municípios.

No caso das fórmulas oficinais não há uma prescrição médica determinando a composição e forma farmacêutica, não há uma individualização do produto manipulado, essas fórmulas constam no Formulário Nacional e no Formulário Internacional aprovado pela Anvisa. Essas preparações por prescindirem de receitas não são individualizadas ou específicas, por conseguinte, geralmente encontram-se prontas e postas à venda pelas farmácias de manipulação. O consumidor neste caso não busca o serviço de manipulação, mas sim o produto.

As formulas oficinais consistem, então, em mercadorias, pois se tratam de bens móveis destinado a mercancia. Na medida em que esse negócio jurídico é regido pelo Direito Comercial, pois é praticado no contexto de atividade empresarial e consiste em uma obrigação de dar uma mercadoria, essa operação sujeita-se à incidência do ICMS.

Conquanto o entendimento pacificado perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) seja o de que o fornecimento de medicamentos manipulados, operação mista que agrega mercadoria e serviço, está sujeito a ISSQN e, não, o ICMS, tendo em vista que é atividade equiparada aos “serviços farmacêuticos”[18], entendemos que esse não a resposta mais correta para a questão. Aduziram os ministros do STJ que:

“Segundo decorre do sistema normativo específico (art. 155, II, § 2º, IX, b e 156, III da CF, art. 2º, IV da LC 87/96 e art. 1º, § 2º da LC 116/03), a delimitação dos campos de competência tributária entre Estados e Municípios, relativamente a incidência de ICMS e de ISSQN, está submetida aos seguintes critérios: (a) sobre operações de circulação de mercadoria e sobre serviços de transporte interestadual e internacional e de comunicações incide ICMS; (b) sobre operações de prestação de serviços compreendidos na lista de que trata a LC 116/03, incide ISSQN; e (c) sobre operações mistas, assim entendidas as que agregam mercadorias e serviços, incide o ISSQN sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116/03 e incide ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista”.[19]

Percebe-se, então, que o critério determinante, na visão dos julgadores, para saber se incidirá sobre a operação o ICMS ou o ISS consiste presença, ou não, da operação mista na lista de serviços contida na Lei Complementar nº 116/03.

Embora o art. 156, III, da Constituição, ao tratar dos serviços de qualquer natureza, mencione “definidos em lei complementar”, não tem o legislador infraconstitucional carta branca para definir serviços. Aires Barreto ensina que a expressão “definidos em lei complementar” contida no art. 156, III, da Constituição, não autoriza conceituar como serviço o que serviço não é[20].

Ainda que a Constituição não conceitue expressamente “serviço”, há um conceito implícito. Deste modo, permitir que a Lei Complementar possa dispor livremente do conceito de serviço significa, consequentemente, admitir a possibilidade de o legislador infraconstitucional alterar a própria Constituição, especialmente os limites da competência tributária dos Municípios.

Aires Barreto demonstra ainda que aceitar que é a lei complementar que define “serviços” resultaria em uma afronta direta à autonomia municipal. Isto porque, na ausência da referida lei, os municípios ficariam impedidos de exercerem sua competência tributária, pois não estariam definidos os serviços passíveis de tributação.

Ademais, admitir que a mera previsão do serviço na lista anexa à Lei Complementar autoriza a tributação daquelas atividades, implica na violação à própria Constituição, pois negaria o arquétipo constitucional definido para o ISS, permitindo tributar aquilo que não é prestação de serviço.

A Constituição Federal, especialmente no sistema constitucional tributário, é rígida e a previsão de lei complementares não significa admitir a possibilidade de modificação constitucional por essa via. Assim doutrina Aliomar Baleeiro:

“Do mesmo modo, a lei complementar não pode ir além do que já está dito, expressa ou implicitamente, na Constituição. Esta será violada por lei complementar que regule diversamente o que ela regulou. É caso de inconstitucionalidade da lei complementar. Completa, mas não corrige nem inova”.[21]

Assim, é necessário perquirir a natureza da operação jurídica para se determinar qual imposto incidirá sobre ela. Na hipótese de ser a prestação onerosa de serviço (obrigação de fazer) incidirá o ISS, já no caso de ser circulação jurídica de mercadorias (obrigação de dar uma mercadoria) incidirá o ICMS, pois embora haja previsão na lista contida na Lei Complementar a operação constitui fato imponível do ICMS.

O Supremo Tribunal Federal manifestou-se no mesmo sentido quando do julgamento do RREEs 179.560 – SP, 195.705 – SP e 196.856 – SP, rel. Ministro Ilmar Galvão, julgados em 30/03/99. Os Recursos Extraordinário tinham por objeto o conflito na incidência do ISS e do ICMS sobre a comercialização de filmes para videocassete. Nesse caso, os ministros do STF entenderam que incide na operação o ICMS, haja vista que essa se qualifica como circulação de mercadoria. Fundamentaram os julgadores seu entendimento no fato de a empresa se dedicar:

“A comercialização de videoteipes por ela próprio gravados, com o fim de entrega ao comércio em geral, o que se distingue da hipótese de prestação individualizada do serviço de gravação de filmes com o fornecimento de mercadoria, isto é, quando é feita por solicitação de outrem ou por encomenda, prevalecendo nesse caso a incidência do ISS”.[22]

Realizando um paralelo com as atividades desenvolvidas pela empresa de comercialização de videocassete e as farmácias de manipulação tem-se que a comercialização de videoteipes por ela próprio gravados equivalem às preparações oficinais, aqueles que prescindem de prescrição médica e são produzidas com o fim de entregar ao comércio em geral. Já as preparações magistrais, equivalem a prestação individualizada do serviço de gravação de filmes com o fornecimento de mercadoria, pois é feita mediante a solicitação do cliente.

Logo, aplicando-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao caso das farmácias de manipulação, teríamos que as preparações oficinais estariam sujeitas à incidência do ICMS, enquanto que as preparações magistrais, por consistirem em uma prestação de serviço individualizada e específica, estariam sujeitas à incidência do ISS.

6. Conclusão

O Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) tem por hipótese de incidência a realização de negócio jurídico, regido pelo direito comercial, praticado em um contexto de atividade empresarial, que tenha por objeto uma obrigação de dar uma mercadoria.

O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, ao seu turno, tem por hipótese de incidência a realização de negócio jurídico oneroso, sob o regime de direito privado, entre duas partes não subordinadas, que tenha por objeto uma obrigação de fazer.

As farmácias de manipulação desenvolvem operações mistas em que há tanto a obrigação de fazer, quanto a obrigação de dar, o que leva ao aparente conflito de competências tributárias.

Os produtos manipulados podem ser de dois tipos: a) preparações magistrais, aquelas preparadas a partir de uma prescrição de profissional habilitado, e destinado a um paciente individualizado; b) preparações oficinais, aquelas cuja fórmula esteja inscrita no Formulário Nacional ou em Formulários Internacionais reconhecidos pela ANVISA e que prescindem de prescrição de profissional habilitado.

As preparações magistrais, por serem preparadas a partir da prescrição, consistem em um produto individualizado e específico, que não se encontrava pronto. Embora a preparação finalize-se com a entrega de um medicamento, o objetivo precípuo da relação jurídica não é sua entrega, mas sim a elaboração deste.

Diversamente, nas fórmulas oficinais por prescindirem de uma prescrição não há uma individualização do produto manipulado, visto que essas fórmulas constam no Formulário Nacional e no Formulário Internacional aprovado pela Anvisa. Por tal motivo, essas preparações geralmente encontram-se prontas e postas à venda pelas farmácias de manipulação consistindo, então, em mercadorias, pois se tratam de bens móveis destinado a mercancia.

Conquanto, a atividade de manipulação de medicamentos conste na lista contida na Lei Complementar nº 116/03, a mera presença na lista não tem o condão de ensejar a incidência do ISS sobre essa operação. Isto porque, a lei complementar não pode definir como serviço aquilo que não o é, deste modo é necessário perquirir a natureza da operação jurídica para se determinar qual imposto incidirá sobre ela.

Os negócios jurídicos que tenham por objeto preparações oficinais, cuja fórmula para a manipulação encontram-se disponíveis para todos e já se encontram preparados com o fim de entrega ao comércio em geral, possuem natureza jurídica de obrigação de dar uma mercadoria. Consequentemente submetem-se à incidência do ICMS.

Já nas preparações magistrais, produzidas de acordo com a prescrição de profissional habilitado, a entrega do produto não existiria sem o prévio fazimento. Desta forma, busca o consumidor a prestação individualizada do serviço de manipulação, objeto precípuo do contrato, no qual a entrega do produto é somente uma consequência do fazer. Consequentemente, o negócio jurídico tem natureza jurídica de uma prestação de serviço, incidindo nesse caso o ISS.

As farmácias de manipulação que manusearem preparações magistrais e oficinais deverão recolher respectivamente o ISS e o ICMS aos cofres públicos. Por sua vez, as farmácias que realizarem operações exclusivamente com preparações magistrais deverão recolher apenas ISS ao erário.

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MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo XLVII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958

MONTEIRO, Washigton de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações, 1ª parte, São Paulo: Saraiva, 2012.



[1] Advogado. Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário na PUC-SP. Pós-Graduado em Direito Tributário pela FGV. Pós Graduado em Direito Administrativo pela UCAM.

[2] CARRAZA, Roque Antônio. ICMS, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 42

[3] BEVILÁQUA, Clovis. Direito das Obrigações. 9ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1957, p. 54.

[4] CARRAZA, Roque Antônio. ICMS, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 43.

[5] BORGES, José Souto Maior. Questões Tributárias, 1ª ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 85.

[6] MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos Teóricos e Práticos. 3. ed. (atual. conforme a Lei Complementar nº 116/2003). São Paulo: Dialética, 2003, p. 33

[7] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei, 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2009 p. 29

[8] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo XLVII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958. pp. 3 e 4.

[9] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 9ª ed., 2º vol. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 85.

[10] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2009. p. 35.

[11] Classificação proposta por Aires Barreto em ISS na Constituição e na Lei, 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2009.

[12] Conforme anexo da Resolução de Diretoria Colegiada nº 67 de 08 de outubro de 2007, da ANVISA disponível em < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2007/anexo/anexo_res0067_08_10_2007.pdf > p. 3.

[13] Idem, p. 4.

[14] Idem, p. 4.

[15] Idem, p. 4.

[16] MONTEIRO, Washigton de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações, 1ª parte, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 95.

[17] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 43.

[18] Cf. AgRg no REsp 1.447.225/GO, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 07/05/2015; AgRg no AREsp 445.591/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 24/11/2014; AgRg no Ag 1.389.891/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2012, DJe 02/08/2012.

[19] Resp 881.035 – RS, rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 28/03/2008.

[20] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 110

[21] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 60.

[22] Informativo nº 144 do Supremo Tribunal Federal

Como citar e referenciar este artigo:
LEAL, Víctor Coutinho. O conflito de incidência de ISS e ICMS nas atividades desenvolvidas pelas Farmácias de Manipulação. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-conflito-de-incidencia-de-iss-e-icms-nas-atividades-desenvolvidas-pelas-farmacias-de-manipulacao/ Acesso em: 18 mai. 2024
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