Direito Tributário

Limitações à discricionariedade administrativa no âmbito da Contribuição de Melhoria

Limitações à discricionariedade administrativa no âmbito da Contribuição de Melhoria

 

 

Márcio Ricardo Staffen[1]

Alexandre Macedo Tavares[2]

 

 

Resumo:

 

O presente artigo tem como objetivo traçar limitações à discricionariedade administrativa no âmbito da instituição e exigência da contribuição de melhoria, previsto pelo art. 145, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no art. 81 do Código Tributário Nacional, combinado com o Decreto-Lei 195/1967. Para tanto, expõe, em primeiro lugar uma análise acerca dos institutos da discricionariedade e vinculação do ato administrativo, passando por questões estruturais do Direito Administrativo nacional. Imediatamente, é realizada uma síntese doutrinária referentes ao instituto da contribuição da melhoria, iniciando por seu escorço histórico, para culminar nas disposições legais vigentes, concernente a previsão legal, hipótese de incidência, fato gerador, base de cálculo, distinguindo ainda a contribuição de melhoria de imposto e de taxa. Por fim, desenvolve-se o argumento delimitador da discrição administrativa na seara da contribuição de melhoria, destacando a finalidade do ato, e princípios administrativos que produzem reflexos na ordem tributária. Em síntese, a decisão sobre a necessidade e conveniência da instituição de contribuição de melhoria sobre obra pública da qual resulte valorização imobiliária é ato discricionário do administrador, que perde este caráter com a protocolização do projeto de lei, na respectiva casa legislativa, doravante sua atuação não permite qualquer intervenção discricionária, sua ação está adstrita a vinculação as disposições legais.  

 

Palavras-chave: ato discricionário; ato vinculado; contribuição de melhoria.

 

Abstract:

This article aims to delineate the limits administrative discretion within the institution and the contribution requirement for improvement, provided by art. 145, item III of the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988 and in art. 81 of the National Tax Code, combined with the Decree Law 195/1967. For both, set out, first on an analysis of both the discretion and binding act of the administrative, structural issues through the National Administrative Law. Immediately, it made a doctrinal summary for the Office of the contribution of improvements, starting by its foreshorten history to lead the legal provisions in force, concerning the provision legal, chance effect, a generator, a basis of calculation, even distinguishing the contribution of improved of tax and fee. Finally, it develops the argument delimiter of administrative discretion in Seara’s contribution to improve, with the purpose of the act, and administrative principles in order to generate tax consequences. In summary, the decision on the need and desirability of the imposition of contribution on public work of improvement resulting in real estate valuation is discretionary act of the administrator, who loses this character with protocolização of a bill in the legislative house, now its performance does not allow any intervention discretion, its action is attached to the binding legal provisions.

 

Key-words: discretionary act, an act bound; contribution for improvement.

 

 

 

1.       Introdução

 

Muitas são as orações da doutrina administrativista pátria que tratam sobre a discricionariedade administrativa. Vale dizer, ainda existem lugares onde esses ensinamentos não atingiram incisivamente dando espaço para que muito mais se elucide ou se revise. 

 

Inevitavelmente não há distinção possível à luz da ciência jurídica da matéria tributária e a administrativa, porque em sua essência ontológica os respectivos sistemas de normas atendem ao mesmo regime, numa relação entre todo e parte, adotando ainda assim princípios, categorias e institutos gerais comuns. Contudo, na seara tributária o ato discricionário fica em isolamento diante da máxima que estipula que a atividade tributária não admite discricionariedade, sustentando-se, tão somente, na vinculação da ação a Lei. 

 

Entretanto, o mencionado isolamento não deve significar preterição, ao contrário, precisa ser sempre mirado como meio de se assegurar a real finalidade de cada espécie do gênero tributo. Sobre este fundamento ergue-se o fundamento do presente estudo que objetiva determinar as limitações à discricionariedade administrativa no âmbito da contribuição de melhoria. Para tanto, analisar-se-á pontualmente as origens da discricionariedade do ato administrativo, sua importância à instalação dos diversos modelos de Estado e sua correlação com a vinculação da Administração Pública a Lei.

 

A contribuição de melhoria será estudada também a partir de sua gênese e multiplicação pelas nações, dando ênfase, logicamente, ao seu tratamento jurídico no Brasil para, posteriormente, estabelecer os limites à discricionariedade administrativa no campo da contribuição de melhoria.  

 

 

2.       Aspectos acerca da discricionariedade administrativa

 

A concepção do Estado de Direito dá-se justamente com a adoção da legalidade como esteio impeditivo do cometimento de abusos e arbitrariedades praticados pela Administração Pública, cuja gênese remete a confluência do pensamento de Rousseau com o pensamento de Montesquieu. Assim, com o princípio da legalidade estabeleceu-se um núcleo de equilíbrio e ponderação entre o poder/dever de gerência que exerce a Administração e os direitos individuais tutelados pelo ordenamento jurídico.

 

Nesta seara, afastou-se da Administração Pública a liberdade de desviar-se das imposições legais, bem como, vedou-se a adoção da vontade pessoal como fator determinante no exercício do poder/dever. Tem-se, portanto, que, a Administração Pública só está autorizada a fazer o que a lei permite[3], cujo significado prático é a vinculação do agente público ao dispositivo legal, em sua totalidade.

 

Mello pondera que há atuação vinculada, “quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos concretos cuja compostura esteja descrita, pela lei”.[4] 

 

Logicamente, a impossibilidade material[5] de o legislador legiferar sobre todas as condutas que a prática administrativa requer, e transmitir ao agente a integralidade de ações e conceitos são justificativas suficientes para a atividade discricionária, consoante lição proferida por Meirelles[6].

 

Segundo Cademartori, do ponto de vista histórico-jurídico, a atuação discricionária passou a ser uma preocupação recorrente entre os pensadores do modelo político ideal para cada época. Vestibularmente, a discricionariedade apresentou-se numa concepção liberal, posteriormente, na atividade socialista, com o Estado Social e, hodiernamente, “numa acepção contemporânea desse Estado de Direito, sistematiza-se nele uma série de atributos que se enquadram no que a teoria do garantismo entende ser o Estado Constitucional de Direito.” [7]

 

No magistério de Mello, haverá atuação discricionária quando:

 

[…] em decorrência do modo pelo qual o Direito regulou a atuação administrativa, resulta para o administrador um campo de liberdade em cujo interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prover na conformidade de uma intelecção, cujo acerto seja irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade administrativa. [8]

 

Para Gasparini, discricionários são os atos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve, cabendo optar por uma das imposições proferidas, na análise da conveniência e oportunidade. [9]

 

Por discricionariedade entende Meirelles o direito concedido à Administração Pública, de modo evidente ou disfarçado, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo. [10]

 

Não obstante, tal liberdade de atuação encerra-se nos limites firmados legalmente. Caso contrário, ao invés de discricionariedade vingará a arbitrariedade, pacificamente renegada por nosso ordenamento jurídico, por ser contrária ou extravagante à lei.

 

Diante da tradição francesa de imunidade do poder discricionário, Laubadère[11], sugere a adoção do termo “liberdade operacional de ação da Administração”, numa acertada conceituação da faculdade de escolha do administrador para deliberação legal. Válido esclarecer, com base no referido administrativista que, na França, era inconcebível a crítica de legalidade aos poderes discricionários.    

 

Faz-se necessário ressaltar, como fez Mello, que as assertivas arroladas desembocam na idéia de que, verdadeiramente não existe discricionariedade, mas sempre vinculação, haja vista a real obediência, adequação e atendimento ao escopo normativo. A discricionariedade é o fruto da impossibilidade de reconhecer objetivamente, quando não predeterminado na regra, qual o procedimento, in concreto, capaz de atingir de modo irrepreensível a finalidade legal. [12]  

 

Neste diapasão, os conceitos jurídicos indeterminados ou imprecisos ganham relevo porque relacionam a intelecção com a discricionariedade administrativa. Todavia, a significação de um conceito jurídico requer a uniformidade do reconhecimento no seio de um grupo social, não podendo ter significado “para mim”, quando recomendado o entendimento “por nós” conforme dicção de Grau. [13]

 

Sem tardança, dentro de consistentes critérios de razoabilidade, a discricionariedade administrativa é a eleição de um, dentre vários comportamentos autorizados pela lei, para aplicação no caso concreto, objetivando atingir a melhor satisfação da finalidade legal, “quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.”[14]  

 

3.       Contribuição de Melhoria

 

Epistemologicamente, o verbete contribuição de melhoria advêm do vernáculo italiano contributo di miglioria.  

 

Abstraindo o conceito inscrito no art. 81 do Código Tributário Nacional, conclui-se que contribuição de melhoria é espécie do gênero tributo, vinculada a uma contraprestação específica de obra pública da qual derive a valorização imobiliária.

 

Assim, considerando Harada[15]:

 

A contribuição de melhoria é a espécie tributária que tem por fato gerador a atuação estatal mediatamente referida ao contribuinte. Entre a atividade estatal e a obrigação do sujeito passivo existe um elemento intermediário que é a valorização do imóvel.

 

Leonetti identifica no Digesto, promulgado em 533, o embrião mais remoto da contribuição de melhoria. Posteriormente, no século XIII, usou-se da contraprestação financeira particular para o custeio de obra pública valorativa do patrimônio dos contribuintes, em Florença e, nas urbes banhadas pelo Tâmisa, na Inglaterra, sob a alcunha de betterment tax. Logo, a espécie de tributo fora exportada para os Estados Unidos (special assesment), à França, a Portugal e, à Alemanha[16].  

 

A gênese histórica deste instituto em solo tupiniquim, operou-se na Bahia, nos idos de 1812, ainda no domínio português, com a exigência de fintas no levante de obras públicas. O Município de Taquaritinga, através da Lei nº. 89, de 30 de setembro de 1931, aprovada pela Câmara Municipal de Vereadores, visando patrocinar obra de pavimentação de via pública aprovou tributo apelidado de contribuição de melhoria. Posteriormente, a Suprema Corte nacional declarou inconstitucional tal diploma.

 

Em nível nacional, a primeira previsão legal lavrou-se na Constituição Federal de 1934[17], sendo mantida pelas demais Cartas, exceto a Constituição de 1937 que a ignorou. Com a instituição do Sistema Constitucional Tributário, trazido pela Emenda Constitucional 18/1965, ficou estabelecido a competência à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, na alçada de suas atribuições, para cobrar contribuição de melhoria para fazer face ao custo de obras públicas, que resultem valorização imobiliária, limitada a total despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que da obra incorpore-se para cada imóvel atingido.

 

O Decreto-Lei 195/1967 tratou de pormenorizar em seu dispositivo 2º as obras públicas, que produzindo acréscimo valorativo ao imóvel, justificam a cobrança do tributo sob análise.

 

Neste contexto, a função da contribuição de melhoria é dupla: fiscal, pois arrecada recursos financeiros para arcar com os custos da empreitada pública e, distributiva, ao possibilitar o regresso ao Tesouro dos recursos gastos na obra.

 

O insigne mestre Ataliba originariamente determina que, a contribuição de melhoria, nem mesmo para a ciência financeira, pode ser entendida com caráter remuneratório ou ressarcitório[18].

 

Conforme disposto no art. 145, caput, e inciso III, da Lei Fundamental, a contribuição de melhoria é tributo de competência comum, podendo ser instituída pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que realizarem obra pública geradora de vantagem aos contribuintes.      

 

O fato gerador da contribuição de melhoria é a valorização imobiliária produzida pela realização de obra pública. Não basta a realização do feito público[19]. Para que se configure o fato gerador da contribuição de melhoria, não basta que haja obra – que, em tese ensejaria taxa – nem que haja incremento patrimonial, que justificaria imposto. É preciso haver direta comunhão entre a obra e a valorização.

 

À luz do art. 1º do Decreto-Lei 195/1967, o fato gerador da contribuição de melhoria atinge, extensivamente, os próprios proprietários dos imóveis beneficiados indiretamente pela obra pública. Para tanto, os imóveis favorecidos devem ser discriminados no Edital mencionado pelo art. 5º do citado Diploma, sob pena de ilegalidade.

 

No que tange à base de cálculo, esta será determinada pelo rateio da parcela do custo da obra pelos imóveis localizados na(s) área(s) melhorada(s), em função dos respectivos fatores individuais de valorização.

 

Segundo o magistério de Tavares, a “base de cálculo, legalmente estipulada, jamais poderá ultrapassar o quantum da valorização experimentada pelo imóvel em decorrência da obra pública concluída em suas mediações (= limite individual).” [20]

 

A máxima de limite global de arrecadação, aprumado no valor do gasto patrocinado pela Administração Pública para executar a obra pública, foi erradicada com a promulgação da Carta Cidadã, consoante entendimento de Carrazza [21]. [22]

 

Assim, só será autorizado o lançamento do débito por parte da Administração que tiver efetuada a obra, após a efetiva valorização dos imóveis atingidos, direta e indiretamente, pela obra pública, não bastando sua conclusão integral ou parcial sem a mais-valia.  

 

 

4.       Vinculação e discricionariedade na

contribuição de melhoria

 

No Estado de Direito o governo é das Leis, não dos homens. Sob a égide do princípio basilar da legalidade, de onde se originam os princípios da legalidade administrativa e da estrita legalidade tributária, a Administração Pública somente está autorizada a agir em subordinação ao império da Lei, nunca a contrariando ou a deixando em preterição, casos em que reviverá a arbitrariedade administrativa.

 

Nas leis a Administração Pública encontra seu nascedouro, seus fundamentos e seus limites. Sorte análoga habita os tributos, afinal nullum tributum sine lege, eis a condição essencial para a exigibilidade tributária. Consoante pontifica Tavares, “é preciso que a lei disponha, abstrata e pormenorizadamente, sobre todos os elementos essenciais do tributo”. [23] 

 

A legalidade da contribuição de melhoria inaugura-se com a literatura do art. 145, III, da Lei Maior, combinado com o art. 81 e subsequentes do Código Tributário Nacional, bem como o Decreto-Lei n. 195/1967. Cabe ao Executivo, no âmbito de suas competências, propor na Casa Legislativa correspondente, projeto de Lei, estipulando a instituição da contribuição de melhoria, sua base de cálculo, as zonas atingidas, o método de rateio da parcela do custo da obra pública que produza mais-valia imobiliária, e sua exigibilidade.

 

Assim, vigorando lei que predetermina, de modo completo, qual o único comportamento a ser cumprido pelo administrador perante o caso concreto, haverá atuação vinculada.

 

Contudo, a atuação vinculada, no recinto da contribuição de melhoria, inicia-se somente com a protocolização do projeto de lei para instituí-la. Executado este momento é defeso, sob pena de responsabilidade funcional, a atividade administrativa que não seja plenamente vinculada[24]. Antes, porém, o administrador possui em suas mãos a faculdade de expor à apreciação ou não, projeto de lei para tributar a valorização imobiliária certa decorrente de obra pública. Nesta fase prevalece o juízo de conveniência e oportunidade do ato administrativo, portanto, a discricionariedade.

 

Nesta seara, consoante lição de Mello, a discricionariedade administrativa reside “no comando da norma, quando nele se inculca ao administrador certa margem de liberdade para decidir-se se pratica ou não pratica dado ato e em que momento o faz […]”[25]. Todavia, as circunstâncias fáticas serão guias para a mencionada liberdade, sempre como condição de atendimento da finalidade inscrita na norma.

 

Além das limitações à discricionariedade existentes no campo da competência, forma, objeto, e motivo, a finalidade é, deveras, a figura de maior relevância à imposição de termos à discrição no âmbito da contribuição de melhoria, como acesso direto à obtenção do princípio da supremacia do interesse público.[26] 

 

Com efeito, jamais a finalidade deve confortar-se nos interesses particulares do agente, donde vincule seu ato com sua vontade. Salienta Lima que: “O fim – e não a vontade – domina todas as formas de administração”.[27]

 

Como acentua Machado, a finalidade da cobrança da contribuição de melhoria é “a justa distribuição dos encargos públicos, fazendo retornar ao Tesouro Público, o valor despendido com a realização de obras públicas, na medida em que desta decorra valorização de imóveis.” [28]

 

Nesse sentido, é defeso ao Administrador oferecer a exame projeto legislativo que tenha por finalidade objeto diverso do previsto à cobrança da contribuição de melhoria. Não deve ser criado tal tributo, tão somente, como instrumento de perseguição político-partidário, favoritismo, apadrinhamento, entre outros sentimentos egoísticos. Efetivamente, razões socioeconômicas recomendam desestimular a especulação imobiliária, banindo o enriquecimento sem causa de alguns, patrocinado pelo dispêndio da coletividade.

 

Ademais, as obras públicas que resultam em valorização imobiliária e, portanto, ensejam tributação via contribuição de melhoria, devem analisar com parcimônia a essencialidade da obra a ser executada, e o benefício que ela produzirá as respectivas propriedades da zona de influência. In abstracto, as benfeitorias necessárias que resultem em mais-valia imobiliária justificam com maior veemência, por si, a cobrança de contribuição de melhoria, se equiparada com as benfeitorias úteis, e com maior intensidade se comparada com as benfeitorias voluptuárias, de simples embelezamento ou aformoseamento.  

 

Sob esta óptica a cobrança de contribuição de melhoria promove a efetivação da justiça social, justiça esta distributiva e fundamentada na equidade, quando possibilita que a arrecadação dos impostos seja utilizada para investimentos que alcancem todos os contribuintes, sendo impossível fragmentar a cota de benefício obtida por cada contribuinte. Não se duvida que, se praticada a contribuição de melhoria, muito mais dinheiro estaria disponível à saúde, à educação, à segurança pública, e, igualmente, minguaria o discurso governamental queixoso da escassez de recursos. 

 

Para Ataliba razões de equidade reclamam: 

 

[…] que as obras de utilidade geral sejam custeadas por todos; as de utilidade restrita o sejam por aqueles que delas extraiam proveito e as que reúnam os dois requisitos sejam custeadas proporcionalmente pela comunidade e pelos beneficiários.[29]

 

Não obstante, é compulsória a aplicação integral dos princípios elencados no art. 37 de Carta Magna, a saber: legalidade; impessoalidade; moralidade; publicidade; e eficiência.

 

Sobre o princípio da legalidade dedicou-se linhas anteriores. No que se refere à impessoalidade, trata-se de um primado pelo qual a administração pública deve servir a todos sem preferências ou aversões pessoais, econômicas, ou partidárias. Consoante Carvalho, a cobrança de contribuição de melhoria não leva em consideração as circunstâncias individuais dos proprietários dos imóveis beneficiados[30]. Limita-se a capacidade contributiva a análise do quanto o imóvel valorizou-se pela obra pública. Todavia, a propositura ou não de projeto legislativo fundamenta-se, obrigatoriamente, ao custeio da obra pública que produza valorização imobiliária, não podendo representar uma pena a determinada(s) pessoa(s), ou, no caso de não instituição um agrado da administração pública para um particular, sob pena de infringência ao princípio da isonomia.

 

A moralidade administrativa não fica limitada ao cumprimento das disposições legais, transcende à ética da instituição, pois reza o brocado que nem tudo que é legal honesto é. Ressalta-se que a legalidade administrativa resulta da soma da lei com o interesse público e a moralidade. Sobre este aspecto, por exemplo, não será moral instituir contribuição de melhoria somente dos imóveis residenciais vizinhos ao local onde a Administração Pública resolveu instalar um aterro sanitário, simplesmente porque estes terão uma concreta desvalorização imobiliária, além disso, pela generalidade do uso da obra é proibida a tributação de apenas uma parcela da sociedade. 

 

Impõe o Decreto-Lei 195/1967, em seu art. 5º, para a cobrança de contribuição de melhoria a publicação editalícia do projeto, do orçamento, da delimitação das áreas, para que possam os proprietários dos imóveis interessados impugnar qualquer elemento constante no instrumento, em exercício a ampla defesa e ao contraditório.

 

  Notadamente o discurso da eficiência administrativa não pode ser instrumento para obtenção da máxima neoliberal, voltada para a produtividade, concorrência, competitividade, em prejuízo aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Neste sentido a Administração Pública não pode ater-se ao mero cálculo de custo-benefício, produtor de um processo excludente em favor da relatividade dos direitos e garantias. No âmbito da discricionariedade, o juízo de conveniência e oportunidade deve principiar pelos direitos fundamentais e garantias inscritas na CRFB/88, afinal, mais importante que a eficiência é a eficácia das disposições legais; basta da grandeza das promessas enquanto prevalece a miséria das realizações[31]. 

 

Ademais, são inafastáveis da construção do ato discricionário, que envolve a contribuição de melhoria, o juízo dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Igualmente, na esfera constitucional-tributária, deve-se cumprir o preceito da graduação do tributo segundo a capacidade econômica do contribuinte, art. 145 III § 1º da Lei Maior.

 

Em desfecho, a discricionariedade deve residir, apenas, até o momento de apresentação do projeto de lei no órgão legislativo correspondente, tomando por base as previsões constitucionais e normas infraconstitucionais, sob pena de ilegalidade, sempre mirando atingir a finalidade estipulada nesses diplomas, a saber: a justa distribuição dos encargos públicos, fazendo regressar ao Erário as receitas gastas com obra pública produtora de mais-valia imobiliária.

     

5.       Considerações Finais

 

Tendo por norte o pensamento supracitado, conclui-se pela existência de dois dogmas no sistema de Direito Público. O primeiro institui a obrigatoriedade do exercício do poder/dever de acordo com o mandamento legal, nunca o contrariando, o excedendo ou o esquecendo. Inegavelmente, a Administração Pública está vinculada a Lei.  

 

O segundo dogma dispõe que as determinações legais não podem ser completas in totum. Logicamente existe uma impossibilidade de o legislador humano dispor sobre a integralidade das condutas possíveis, formando conseqüentemente um sistema de normas jurídicas de textura aberta, autorizando um direito de escolha ao administrador, ou seja, possibilitando um espaço para a discricionariedade.

 

Todavia, esta faculdade de escolher um dever limita-se ao disposto na Lei, mediante um juízo de conveniência e oportunidade. No âmbito da contribuição de melhoria, a discricionariedade administrativa sustenta-se na faculdade de o Administrador Público instituir ou não tal tributo para custear obra pública que acarrete valorização imobiliária dela decorrente imediatamente. O protocolo do projeto de lei que vise instituí-la põe termo à discricionariedade no campo da contribuição de melhoria.   

 

 

6.       Referências

 

ATALIBA, Geraldo. Hipóteses de incidência tributária. 6. ed., 7. tir. São Paulo: Malheiros, 2005.

CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado Constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

CARVALHO, Rubens Miranda de. Contribuição de melhoria e taxas no direito brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

HARADA, Kyoshi. Direito financeiro e tributário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 257.

LAUBADÈRE, Traité élémentaire de droit administratif, 3. ed., v. 1. Paris: sem menção de editora, 1963.

LEONETTI, Carlos Araújo. A contribuição de melhoria na Constituição de 1988. Florianópolis: Diploma legal, 2000.

LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1962.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. Princípio constitucional da eficiência administrativa: (des)encontros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 9. tir. São Paulo: Malheiros, 2008.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

    

 



[1] Márcio Ricardo Staffen, acadêmico 9º período de Direito, UNIVALI.

[2] Alexandre Macedo Tavares, professor orientador. Advogado, parecerista e consultor tributário nos estados de Santa Catarina e São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Pós-graduado em Direito Tributário e em Direito Processual Tributário pela PUC/PR. Mestre em Ciências Jurídicas (UNIVALI). Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT) e do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). Professor na Escola do Ministério Público de Santa Catarina, de Direito Tributário no curso de Direito da UNIVALI, nos cursos de Pós-Graduação em Direito Tributário da UNIVALI, na FURB, de Gestão Fiscal e Planejamento Tributário na UNERJ e de Processo Tributário do Instituto Catarinense de Pós-Graduação. Vencedor do Prêmio Geraldo Ataliba ofertado pelo Instituto Internacional de Direito Público e Empresarial (IGA-IDEPE).  

[3] Com efeito: “a relação existente entre um indivíduo e a lei, é meramente uma relação de não contradição, enquanto que a relação entre a Administração e a lei, é não apenas uma relação de não contradição, mas é também uma relação de subsunção.” MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 9. tir. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 13.

[4] MELLO, Discricionariedade …, op. cit., p. 09. 

[5] Impõe-se notar nos dizeres de Régis Fernandes de Oliveira que: “caso possível fosse o legislador descer a minúcias e, utilizando-se da cibernética, pudesse prever, na atividade legiferante, todas as ocorrências possíveis, então teríamos, pura e simplesmente, a substituição de um órgão do poder por outro, ou seja, teríamos a supressão do órgão administrativo ou executivo. Este não passaria de mero cumpridor de ordens emanadas, concretamente, do Poder Legislativo. Em sendo assim, ocorreria verdadeira invasão dos órgãos encarregados do exercício do poder, com a dualidade deles e perderia a validade a noção tripartida, consagrada em nosso direito positivo.” OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 67-69.

[6]  “O ideal seria que a lei regulasse minuciosamente a ação administrativa, modelando casa um dos atos a serem praticados pelo administrador; mas, como isto não é possível, dadas a multiplicidade e diversidade de fatos que pedem pronta solução ao Poder Público, o legislador somente regula a prática de alguns atos administrativos que reputa de maior relevância, deixando o cometimento dos demais ao prudente critério do administrador.” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 110-111.

[7] CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado Constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2001, p. 32.

[8] MELLO, Discricionariedade …, op. cit., p. 09.

[9] GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 94.

[10] MEIRELLES, Direito …, op. cit., p. 109.

[11] LAUBADÈRE, Traité élémentaire de droit administratif, 3. ed., v. 1. Paris: sem menção de editora, 1963, p. 214-215

[12] MELLO, Discricionariedade …, op. cit., p. 41-42.

[13] Apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 98.

[14] MELLO, Discricionariedade …, op. cit., p. 48.

[15] HARADA, Kyoshi. Direito financeiro e tributário. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 257.

[16] LEONETTI, Carlos Araújo. A contribuição de melhoria na Constituição de 1988. Florianópolis: Diploma legal, 2000, p. 81-90.

[17] Assim previa: “Art. 124. Provada a valorização do imóvel por motivo de obras públicas, a administração, que as tiver efetuado, poderá cobrar dos beneficiados Contribuição de Melhoria.”

[18] ATALIBA, Geraldo. Hipóteses de incidência tributária. 6. ed., 7. tir. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 171.

[19] Neste sentido vide: STF. Recurso Extraordinário 115.863. rel. Min. Carlos Velloso, publicado em 30.03.1999.

[20] TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 92.

[21] Conforme: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 300. 

[22] Contudo, elenca Carlos Araújo Leonetti, uma gama de tributaristas favoráveis ao entendimento da continuidade da vigência do limite global; dentre eles: Bernardo Ribeiro de Moraes, Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins e, Ubaldo Cesar Balthazar. LEONETTI, A contribuição…, op. cit., p. 117.

[23] TAVARES, Fundamentos…, op. cit., p. 64.

[24] Nesta óptica prescreve TAVARES, Fundamentos…, op. cit., p. 66-68.

[25] MELLO, Discricionariedade …, op. cit., p. 20

[26] Nesse sentido: DI PIETRO, Discricionariedade…, op. cit., p. 209-231.

[27] LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1962, p. 22.

[28] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 381.

[29] ATALIBA, Hipóteses…. op. cit., p. 176.

[30] CARVALHO, Rubens Miranda de. Contribuição de melhoria e taxas no direito brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 71. 

[31] Nesse sentido: MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. Princípio constitucional da eficiência administrativa: (des)encontros entre economia e direito. Florianópolis: Habitus, 2009, p. 237-255.  

Como citar e referenciar este artigo:
STAFFEN, Márcio Ricardo; TAVARES, Alexandre Macedo. Limitações à discricionariedade administrativa no âmbito da Contribuição de Melhoria. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/limitacoes-a-discricionariedade-administrativa-no-ambito-da-contribuicao-de-melhoria/ Acesso em: 26 dez. 2024
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