O discurso anual de Bush e outros itens.
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
No bairro de Higienópolis, na cidade de São Paulo, reside um inteligente cidadão brasileiro, piracicabano, que cultiva a modéstia e teve a oportunidade — e mérito — de trabalhar 32 anos na Organização das Nações Unidas. Ocupou, sem favoritismo, posições de relevo. Foi diretor da Assembléia Geral e do Conselho de Segurança. Chefiou missões delicadas em várias partes do mundo. Aposentou-se no cargo de subsecretário-geral, um posto logo abaixo do cargo máximo — o de secretário geral. Seu nome: Gilberto Schlittler. Sobrenome difícil de memorizar, sem erro — seu bisavô era suíço.
Por que menciono esse experiente cidadão? Porque viu de perto a força do egoísmo humano no caldeirão concentrado da diplomacia mundial. Justamente por haver vivido nas entranhas da ONU, conhecendo órgãos, músculos, e principalmente o interior da cabeça do complexo gigante, Schlittler não acredita que a humanidade possa, tão cedo, aceitar a idéia de um governo mundial.
Presumo qual a explicação para o ceticismo: países fracos têm medo do poder excessivo de uma entidade, ainda misteriosa, que poderá “escravizá-los”. Países fortes franzem o nariz à idéia de sustentar tantos “primos” pobres. Se, com o atual comércio mundial, eles podem sacar, sem maiores compromissos, substanciosa fatia da riqueza das nações mais pobres, por que assumir o pesado encargo de alimentá-las, vesti-las, educá-las, etc? Schlittler não vê as coisas de modo tão simples, focado apenas na diferença de riqueza entre as nações.
A opinião de Schlittler também não decorre da preferência por esta ou aquela posição política de um governo mundial — mais de esquerda ou de direita. Ele até considera a idéia, em si, um projeto pensável, mas para bem mais distante. Apenas pensável, frise-se. Eu, paradoxalmente, mais por realismo (como? não houve erro de digitação?) que por idealismo, não entendo assim. Os perigos, hoje, de um “aquecimento global” bem mais virulento que o climático — o ódio também esquenta… —, podem apressar uma reavaliação da necessidade de um governo maior, superior, que possa, em certa medida, controlar excessos de governos imensamente poderosos, eventualmente chefiados por dirigentes pouco equilibrados. Os súditos dos desequilibrados nem sempre estão — em razão de uma febre cerebral chamada “patriotismo” — em condições de avaliar corretamente o perigo de seguir seus líderes.
Os males mundiais ocasionam sofrimentos físicos e morais bem concretos, familiares e individuais, pois todos os fenômenos sociais estão cada vez mais conectados. Os povos, tanto ricos quanto pobres, logo concluirão que todos os problemas mundiais — guerras (inclusive comerciais), criminalidade internacional, perigo nuclear, poluição, descontrole populacional, miséria, desemprego, etc — decorrem da atual impossibilidade jurídica mundial de atuação de um poder “externo”, “superior” — do qual façamos parte —, impor soluções e “ajustamentos” nesse gigantesco “maquinário” que é o mundo moderno. Houvesse, por exemplo, um efetiva justiça internacional — impondo fronteiras e reprimindo violências —, o velho problema Israel – Palestina estaria há muito solucionado, com os dois povos trocando, não chumbo, mas serviços e mercadorias — embora inicialmente praguejando. Há séculos, nas demandas judiciais sempre há um “perdedor”, mas a cultura dos povos já assimilou a realidade de que nem todo conflito pode terminar em “empate”, satisfazendo ambos os lados. Algum ranger de dentes é normal, e o perdedor da causa raramente se torna um terrorista. No entanto, a atual sistemática de cada país, soberanamente, “fazer o que quer” equivale a eternizar os conflitos. O resultado é a prevalência da força bruta — gerando reação igualmente brutal.
O extenso discurso de Bush sobre o Estado da União, em 23-1-2007, obviamente redigido com inúmeras mãos — inclusive, presume-se, com a voz do próprio presidente, sugerindo aos redatores alterar isso e aquilo —, é otimista e bem dosado na parte de economia dos EUA. Não lhe falta, na parte final, uma conveniente abordagem sentimental, em que elogia três pessoas que se destacaram pelo altruísmo. Uma delas, um homem chamado Wesley Autrey, chegou a salvar um cidadão que ia ser estraçalhado após cair acidentalmente sobre os trilhos de um trem que se aproximava. Com invulgar presença de espírito e coragem, Wesley atirou-se sobre o homem caído, arrastou-o para o espaço entre os trilhos e ali o reteve enquanto o trem passava por cima de ambos, sem feri-los. Mencionando o feito notável, Bush quis simbolizar o inegável espírito americano, sempre pronto a socorrer o próximo nas grandes calamidades. Citações desse tipo sempre geram simpatia nos ouvintes, ajudando melhor recepção para outros tópicos mais polêmicos do discurso. Não esquecer, porém, sem desmerecer, que o fato mencionado poderia ter ocorrido em qualquer país. Pessoas heróicas existem em toda parte.
Não há como negar as inúmeras qualidades do jeito americano de ser. Eles cultivam o otimismo, a coragem de empreender e assumir o risco correspondente, o “hard work”, a organização, a previsão, o valor da palavra dada. Presidente que mentir sob juramento perde o cargo. Não existe, na justiça americana, o direito de mentir — algo para nós espantoso. A mentira pesa mais que o ato vergonhoso em si. Nixon perdeu a presidência não porque teria mandado “grampear” o escritório do Partido Democrata — não fez isso —, mas porque mentiu tentando proteger quem tomara a iniciativa de fazer isso em benefício do presidente.
Em contrapartida, na poderosa república cultiva-se, com exagero, uma característica que parece inerente ao espírito saxão: a compulsão de ser sempre o primeiro, o melhor, “the best”. Alguém, lá, já teria dito: “We are the best. The rest is the rest” ( Nós somos os melhores. O resto é o resto). Até nos filmes americanos percebe-se essa quase obsessão pela primeira posição. O artista principal é sempre o “best”. O oposto do “loser”, o pobre coitado que nasceu marcado irremediavelmente para o fracasso. Humoristicamente, diz-se que se um cirurgião pergunta, a um rico cliente texano, se ele prefere anestesia local ele dirá que não! Que pode importar a anestesia mais cara que houver. E George W. Bush tem sido fiel servidor dessa filosofia do “best” que só desperta ressentimentos em povos menos aquinhoados pela sorte.
Em certo discurso, logo após o onze de setembro, Bush chegou a dizer que os EUA jamais permitirão que um outro poder, na Terra, ultrapassasse o poder americano. Isso significa o quê, literalmente? Que se a China se tornar mais poderosa que os EUA, ela deverá ser esmagada militarmente, ou aleijada, para que não se torne poderosa demais? Esse pensamento foi mais um dos infelizes escorregões de inteligência, bastante sintomático da inadequação intelectual de um político para exercer um cargo de tamanha responsabilidade.
Um presidente americano, hoje, é quase, simultaneamente, um vice-presidente de todos os países do mundo, tal a força do poder americano. Poder que pode ser usado sensata ou insensatamente. E Bush não consegue usar esse poder sensatamente. Não porque não queira, mas porque não pode. Não consegue porque assim é a sua natureza, um discernimento fraco demais para o alto cargo que ocupa. Bush é sincero consigo mesmo, embora não com os outros. Considera-se — e é, embora estreitamente — um patriota. Invadiu o Iraque por rancor pessoal contra Saddam e porque pensou que, espalhando democracia na região, rica em petróleo, diminuiria a dependência americana de energia. Pensava no bem de seu país. E ficou contente por saber que, agindo assim, também — por coincidência —, favoreceria o povo iraquiano, dando-lhe democracia, um regime normalmente superior às ditaduras. Múltiplas vantagens, pensou, que compensariam a violação do Direito Internacional, invadindo o Iraque. Se tudo tivesse dado certo, sua invasão do Iraque — “chacoalhando” toda a região —, acabaria favorecendo todo o Oriente Médio e ele, Bush, seria lembrado por décadas como um grande, benéfico e ousado reformador do mundo. Se necessário uma boa dose de mentira nas intenções declaradas — continuou pensando — os imensos benefícios gerais da invasão compensariam os falsos argumentos. “Os grandes estadistas do passado também mentiram largamente, e nem por isso deixarem de ser grandes?” — deve ter pensado.
Bush tem algumas qualidades: é afável, simpático, bom marido, bom pai, bom filho, bom cristão, acredita em Deus, reza diariamente. E não consta que seja desonesto. Primeiro, porque não precisa. Segundo, porque isso feriria seu senso moral. É um presidente que poderia “ir levando” suas funções, se vivesse em tempos calmos. Suas falhas seriam corrigidas por seus ministros e assessores se vivesse, por exemplo, na Escandinávia. Não no atual estado do mundo, a exigir um presidente especialmente capaz. O momento mundial exigiria, no governo americano, um Washington, um Jefferson, um Lincoln, um Franklin D. Roosevelt, não um rapaz que fez o máximo para atingir um patamar superior ao seu natural.
No seu último discurso sobre o Estado da União, Bush volta a insistir na necessidade de “vencer” no Iraque, porque do contrário, seriam negras as conseqüências de uma retirada das tropas americanas. Não necessariamente. Os EUA foram obrigados a deixar o Vietnã, e nem por isso o mundo sofreu o “efeito dominó”. Hoje o Vietnã é um país em franca ascensão, negociando com o mundo todo. Quanto ao terrorismo, que pretende esmagar, sua abordagem é primária. Caber-lhe-ia separar o joio do trigo na motivação do terrorista. Examinar se há algumas injustiças a serem corrigidas. Sanadas tais injustiças — principalmente com os palestinos —, restaria apenas os componentes de fanatismo e banditismo. O fanatismo ele combateria distribuindo informações e subvencionando o acesso dos jovens árabes ao computador e à internet. E o banditismo é a parte mais fácil de combater porque gangster não se auto-explode e sabe que está errado.
Se Bush não for contido firmemente pelo próprio e valoroso povo americano, sua visão limitada — ele é teimoso a ponto de imaginar que Deus está com ele e não abre — poderá desencadear um conflito de proporções equivalentes a uma Terceira Guerra Mundial. Poucos dias atrás ele deslocou para o Golfo Persa, inúmeros navios de guerra, procurando intimidar o Irã. E, mais recentemente, autorizou matar iranianos que se encontrem presentes no Iraque, de algum modo “possivelmente’ ajudando os insurgentes iraquianos. Não autorizou, vejam bem, matar iranianos que estejam atirando em americanos, o que seria normal. Autorizou matar civis que poderiam estar ajudando os insurgentes “de algum modo’, abrindo um leque subjetivo permissivo demais. Em resumo: há bons indícios de que Bush pretende propiciar um incidente que “justifique” uma nova guerra, atacando instalações iranianas. Ele supõe que pondo em perigo — que ele mesmo criou — vidas de soldados americanos, voltará a conquistar o maciço apoio patriótico que obteve logo após o 11 de setembro de 2001.
Espera-se que — enquanto não for possível um “GOVERNO” que limite os “governos” —, o Partido Democrático americano dê um jeito de segurar esse camarada.
(28-01-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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