“Buy American” e o governo mundial
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Não obstante a hostilidade — mais instintiva que racional — contra a conveniência de um governo mundial, peço licença aos mais exaltados para acrescentar aqui novos argumentos favoráveis à construção de um sistema global, democrático, que não só bloqueie as guerras mas reduza substancialmente a carga — estúpida, na origem — de sofrimento que acompanha boa parte da raça humana.
A pobreza e suas fiéis companheiras — doença, ignorância, desemprego, incerteza quanto ao futuro, sentimento de rejeição, etc. — poderiam ser abolidas, doravante, da história humana, porque recursos suficientes para essa missão nós já temos. O que falta é organização. Hoje impossível, no nível necessário, enquanto prevalecer o sacrossanto direito de cada país dizer: “neste espaço mando eu!”. Não houvesse o desperdício “trilionário” das últimas guerras — com os combates em si, despesas para fabricação de armas e munições e reconstrução do que foi destruído em bombardeios —, África, Ásia e populações pobres em geral das Américas já estariam livres da extrema pobreza.
Fotos de crianças catando lixo, pedindo esmola em semáforos, fugindo da escola pública ou, na África, portando metralhadores quase tão pesadas quanto seus esqueléticos corpos, são a prova cabal de que há algo profundamente estúpido na organização atual do mundo. A presente crise econômica mundial — provocada pelo próprio homem — comprova, à saciedade, queiramos ou não, que os povos estão interligados e o acontece aqui repercute em toda parte.
Nunca acreditei — e gostaria de estar errado — na plena eficácia da Organização Mundial do Comércio, não obstante a invulgar capacidade intelectual e bom caráter das pessoas que a dirigem. “Não creio que possa dar certo, realmente resolver!”, eu pensava. Daí a necessidade de um governo mundial. E por que não acredito na OMC? Porque os eleitores de todos os país esperam que seus representantes e seus delegados, nessas reuniões, lutem pelo direito dos representados, seus eleitores em cada país. “Benemerências” — pensam os cidadãos preocupados com seus próprios empregos em perigo — “são artigos de luxo que devem estar em último lugar nas preocupações dos enviados para discutir interesses comerciais. Preservar o emprego de trabalhadores de outros países? Nada a opor, desde que isso não resulte em desemprego de nossos próprios trabalhadores! Afinal, caro representante, quem foi que te elegeu e te paga?! Eu ou produtor estrangeiro?! Zele primeiro pelos teus! Se tens vocação para santo, que vá para um convento!”
De maneira igual, mas com sentido contrário, pensa o concorrente estrangeiro, que “tem o direito” de não ser prejudicado.
Queiram ou não os mais otimistas, é esse pensamento que povoa a mente, embora brilhante, dos homens que lidam com a crua realidade do comércio internacional. E embora brilhantes, ninguém quer passar por “mole”, ou “cordato demais”. Um presidente norte-americano não se sentirá à vontade — mais parecendo um “traidor” — se escancarar as alfândegas de seu país às importações de outros países, com isso jogando no desemprego milhões de trabalhadores que o elegeram para defesa de seus interesses.
Não se argumento que, ocorrendo protecionismo, o país que o praticou sofrerá sanções da OMC – Organização Mundial do Comércio. Isso pode ocorrer, mas esse jogo de culpas e punições não termina. Germina. E incentivam represálias, que podem gerar outras. Um guerrinha de alfinetadas ou verdadeiras punhaladas comerciais. Empresários não gostam de falir. Operários e executivos não querem ficar desempregados. Brigas na OMC servem mais como análises profundas nos cadernos de Economia dos jornais.
Daí, repetindo, a necessidade de um “poder maior”, federativo, superior ao nacional, que possa estabelecer compensações ao prejudicado pelo protecionismo, utilizando, nessas compensações, recursos não só do “país infrator”, mas de todos os países. Ou até mesmo aconselhando ou impondo a mudança de ramo de atividade. Por exemplo: um país está com excesso de produção de armas? Imponha-se a mudança de atividades, num prazo razoável de xis anos. Em vez de armas, por exemplo, fabricar tratores, colhedeiras, usinas, bicicletas, o que for. E com amparo governamental nessa transição, para que indústria de armas não vá à falência. Sem essa ajuda econômica a referida indústria, rica, poderosa, não curvará a cerviz, aceitando a própria ruína. “Mexerá seus pauzinhos” para depor o governo que se atreveu a decretar sua desgraça “apenas” pensando em “abstrações”, tais como evitar guerras e outras “utopias’.
Enfim, em vez de reuniões, na OMC, de representantes de países com interesses opostos, privados, convocar reuniões de enviados que representem não um país, mas a comunidade universal. Com isso, não haveria “traidores de mandato”. Cada país levaria às reuniões seus informes e argumentos, expostos apenas para mais preciso esclarecimento da situação conflituosa, mas, conforme o que ouvisse, o enviado — não propriamente um “representante” — poderia voltar atrás, mudar de parecer — sem com isso se tornar “traidor”. Enfim, autorização total para o enviado atuar com a mais absoluta honestidade intelectual. Isso hoje é praticado? Penso que não. Se estou errado, que nos esclareça quem conhece por dentro o funcionamento da OMC.
Nosso planeta assemelha-se a uma grande corporação de manicômio, dividida em diferentes departamentos, funcionando cada qual conforme a “soberana” veneta de cada diretor, sem nenhum coordenação central. Os países, individualmente, já dispõem, há séculos, de um mecanismo jurídico capaz de imprimir unidade de decisão interna, conforme a competência atribuída a cada segmento. No plano internacional, porém, permanece uma certa anarquia no chamado “livre jogo de mercado, o sábio”, que freqüentemente não se mostra tão sábio assim, como comprova a crise econômica atual.
Mesmo que haja — e há — uma certa sabedoria no “jogo do mercado”, as asneiras e cobiças dos mercadores — pessoas físicas — têm tão fortes e duradouras conseqüências, em termos de sofrimento humano geral, que é insensato e cruel esperar que somente o mesmo “jogo do mercado” corrija, com o vagar do tempo, os danos causados por decisões tomadas, não pelo abstrato “mercado”, mas por CEOs, ou políticos de curto discernimento.
Repetindo, o “mercado” pode ser sábio, mas quem age em seu nome, freqüentemente não o é. Ou tem uma “sabedoria” seletivamente direcionada para sua própria riqueza pessoal. “Après moi, le déluge”, como dizia, no século XVIII, um certo imprevidente ministro das finanças que adubou o terreno para a Revolução Francesa. Ainda não sei se, em futuro próximo, os CEOs e alguns membros do governo Bush não precisarão contratar competentes advogados de defesa para não ter que devolver boa parte do que ganharam com “bônus” e salários altíssimos.
Acabei de ler um pequeno livro de Sam Harris, “Letter to a Christian Nation”, Vintage Books, concebido para defesa do ateísmo, mas que, incidentemente, informa algo que tem relação com o presente artigo. Diz o autor, à pág. 46, que a proporção entre os salários pagos aos mais altos CEOs americanos e a média dos salários pagos aos empregados, na mesma firma, é de “475:1”. Isto é, certos altos executivos americanos recebem 475 vezes o salário médio dos empregados da mesma firma. É uma diferença brutal. Na França, segundo o mesmo autor, a proporção é de 15 para 1; na Suécia, de 13 para 1 e na Inglaterra, de 24 para 1. E onde se iniciou o presente desmoronamento econômico e financeiro que vem jogando milhões de pessoas no desemprego? Não foi na Suécia. Daí a pertinência da decisão de Barack Obama em estabelecer um “teto” para o ganho dos altos executivos de empresas que pedem ajuda ao governo. Na verdade, penso que os responsáveis pela atual débâcle precisarão explicar melhor, na justiça, o que andaram fazendo.
Outro indício da necessidade de um governo mundial — democrático, democrático!, não se assustem —, inclusive na parte financeira, está em uma pequena coluna da revista Newsweek, de 16 de fevereiro, 2008, à pág.4. O jornalista Barret Sheridan diz que a grande ironia do “buy American”, na área do aço — visando proteger o emprego dos trabalhadores americanos —, é que esse protecionismo acaba enriquecendo o capital de outros países, mas não os operários dos outros países, que ficam seus empregos. A explicação é que, segundo o jornalista, a maior parte — dois terços — das fábricas de aço funcionando nos EUA é de propriedade de estrangeiros: da Inglaterra (“Arcellor Mittal”), do Brasil (“Gerdau”), da Suécia (“SSAB”) e da Rússia (“Severstal”). Menciona, ainda, a usina “Bethlem Still”. Em recentes anos, estrangeiros foram comprando usinas abaladas financeiramente. O socorro financeiro anunciado por Obama vai ajudar o operário americano, mas essa ajuda vai beneficiar muito, financeiramente, os tais donos estrangeiros, embora mantendo desempregados os operários nos seus respectivos países. O jornalista finaliza seu artigo dizendo que o apoio econômico acaba se transformando em um reforço para oligarcas russos.
Como se vê, não é prematuro iniciar, hoje, a longa conversa sobre como reorganizar o mundo. Aproveitando, inclusive, o laboratório de experiência da União Européia, que nos dá algumas lições, inclusive sobre o que não fazer.
Esse tema fica para outra oportunidade.
(19-02-09)
* Escritor – Desembargador aposentado
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