A política suicida de Israel
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Há décadas, filósofos e pensadores, de modo geral — que não querem ser vistos como “filósofos” porque acham que essa “profissão” perdeu substância para a ciência, patinhando em genéricas “profundidades” — manifestam espanto ante a imensa e inegável insensatez humana no relacionamento com “o outro”. Realmente, impressiona o tremendo contraste entre as realizações do homem nas áreas da ciência e tecnologia e a maneira primitiva, algo animal, com que se comporta em relação aos seus semelhantes.
Aliás, “semelhantes”, para os arrogantes, é um termo difícil de engolir. Soa quase como um insulto, tal a ânsia deles em se “diferenciar” — para cima, claro — dos demais indivíduos rotulados como Homo Sapiens. — “De sapiens estas bestas não têm nada…”, murmuram. E não é preciso ir longe para constatar a permanente ânsia de um diferenciador, de um privilégio qualquer. Um “acariciador de ego”, um “atendimento personalizado”, nem que sejam as “estrelas” aplicadas aos clientes de bancos com depósitos mais polpudos. Sem falar no imenso conjunto de distinções honoríficas. Conheci um atormentado cidadão que tinha como objetivo máximo na vida pertencer a uma determinada academia de letras. E nem era a Brasileira. Para isso sacrificava seus minguados recursos presenteando, tentando banquetear e elogiando vastamente os acadêmicos que, pelas suas costas, meneavam negativamente a cabeça, ou até mesmo discretamente dele caçoavam ante a possibilidade de aceitá-lo como colega. Morreu frustrado, vítima de uma ilusão. Provavelmente escrevia mal — nunca li nada dele —, o que se deduz só pelo fato de cultivar tão superficial desejo.
O “espanto” pelo contraste, revelado pelos pensadores de todo gênero, não tem muita razão de ser, considerando que a ciência e a tecnologia lutam apenas contra as dificuldades objetivas, concretas e lógicas que se antepõem ao desejo humano de avançar em busca do que considera útil ou funcional saber. Há, no caso, uma luta “limpa”, travada apenas contra as limitações do próprio cérebro no compreender os maravilhosos mecanismos ocultos do mundo que o rodeia. Já a convivência humana se desenrola no choque dos desejos, dos instintos animais, ou assemelhados, ainda pouco domáveis. Daí o uso da mentira e todos os recursos para “vencer”, essa palavra mágica. Uma idéia pode ser teoricamente ótima, mas se aplicada em determinada atividade vai gerar algum desconforto ou — horror dos horrores! —, um prejuízo financeiro, é melhor esquecer; ou se preparar para uma guerra suja. E o que é pior, travada com argumentos aparentemente limpos.
As considerações acima se aplicam ao infindável conflito árabe-israelita. Mas, pelo que vejo hoje no jornal, ainda há homens de visão no mundo, há esperança. Refiro-me ao Ministro da Defesa israelense, Amir Peretz, que recomendou ao primeiro-ministro Ehud Olmert “repensar” sua política de isolar o governo palestino. Alertou sobre o imenso prejuízo causado à imagem internacional de Israel com o agravamento da crise humanitária que se seguirá ao total sufoco financeiro causado pelas últimas medidas impostas à população palestina. Essas medidas visam atormentar em tal grau a população árabe que ela, revoltada, esfomeada, derrube o governo do Hamas, vencedor da última eleição. Isso porque o líder do Hamas disse ser favorável à extinção de Israel.
“Como? Acha pouco tal pretensão do Hamas?!” — indagará a ala mais radical do governo israelense? — “Querem nos “varrer do mapa” e não vamos reagir? Vossa Medíocre Senhoria nos recomenda repetir a mesma passividade com que não reagimos aos nazistas?”
Reajam, mas de maneira racional e humana. Não é sufocando alguém com um travesseiro que conseguiremos depois com ele conviver. E parece que a convivência entre os dois povos, daqui pra frente, é inevitável. As coisas poderiam ter sido diferentes, mas presumo que nem Deus pode modificar o passado. Falaremos disso mais adiante.
Um marido que, descontente com a forma com que a esposa cuida da casa, ou grita demais, ou perde dinheiro no bingo, a sufoca diariamente com um travesseiro, ou a priva de banhos e alimento — “santamente” visando apenas corrigi-la —, jamais conseguirá a reforma pretendida. E ainda corre o risco de ser assassinado enquanto dorme. Sem falar em vinganças menores que sobrecarreguem sua testa com ornamentos que apenas em machos gnus, bois e gazelas não lhes causam vexame.
O atual governo israelense age de forma estabanada — e o que é pior, de forma suicida — ao dificultar, de forma proposital, a vida da população palestina. “Esmagamento” nunca foi boa política. Se o fosse, Hitler teria vencido. Não quis ele esmagar os judeus? Se já há ódio entre os árabes, esse ódio será triplicado. E o mundo dá muitas voltas. Não me refiro ao movimento de rotação. O atual governo, por acaso sente-se totalmente garantido com o apoio financeiro e militar dos EUA? Não confiem demais nisso, porque a política interna da poderosa nação pode mudar, após a era Bush. E novas forças políticas erguem-se lentamente no horizonte. China, União Européia, Índia e outras áreas ainda de menor influência certamente vão alterar o quadro de forças internacionais. Não convém, a médio e longo prazo, “sujar” a imagem do povo judeu. E é sobre isso que alerta o ministro da defesa Peretz, um bigodudo sensato. Até por razões simplesmente estratégicas, não humanitárias — nada desprezíveis —, é suicida — repita-se — a política de “esmagamento”, que chega ao ponto de cortar o fornecimento de gasolina para os palestinos.
Quem leu o livro “Atrocidade” — escrito por “KA- TZETNIK 135633”, um judeu que sofreu horrores em um campo de concentração, e preferiu não mencionou seu nome no livro, edição Civilização Brasileira — não pôde deixar de se comover e revoltar contra o atroz sofrimento imposto aos judeus só pelo fato de serem judeus. O Holocausto não pode ser negado. Mesmo que, eventualmente, não tenha chegado, o genocídio, aos seis milhões — número difícil de apurar — o fato é que houve um massacre. Mesmo que fossem dois ou três milhões, isso não abalaria a conclusão de condenação de um regime, o nazismo, que hoje envergonha os próprios alemães. E é isso que preocupa a ala mais sensível e sensata que, em Israel, discorda do uso da miséria e privação do povo como forma de “pôr o Hamas na linha”. Essa ala não quer que os judeus se envergonhem futuramente. Não gostaria que seus filhos e netos se sintam como hoje ainda se sentem os alemães pelo loucura de um determinado ditador, obcecado com o sonho da ”raça pura” e a expansão territorial, em busca do “espaço vital”.
A persistir a “linha dura” de corte de gasolina e “apropriação indébita” do dinheiro arrecadado — via tributos, na Palestina —, conjugada com o muro de centenas de quilômetros isolando a população árabe, a mídia logo, logo, vai exibir ao mundo as faces esfomeadas de crianças, velhos e mulheres. Aí o mundo todo vai concluir, embora com pouca exatidão: “Os judeus não são muito diferentes dos nazistas… É tudo igual; ou melhor, os nazistas eram apenas mais cruamente brutais. Os judeus são mais sutis, mas o que eles querem mesmo é se expandir, tirando proveito do descontrole verbal do Hamas”.
“Mas o Hamas não quer nos dizimar, nos varrer da região?” — insistirá a “ala dura”. — “Não é impiedade nossa, é legítima defesa!”
É uma “legítima defesa” errada, sem pé nem cabeça. Primeiro, porque o Hamas foi vencedor nas eleições por vários motivos, entre os quais a decepção dos palestinos quanto à honestidade, ou falta dela, no partido rival, o Fatah, no uso do dinheiro público. Não se pode dizer que cada eleitor do Hamas, individualmente, fosse a favor de dizimar os judeus. Diz a mídia que havia muita corrupção na Autoridade Palestina. Boa parte dos palestinos chegou à conclusão de que é inútil lutar contra a criação do Estado de Israel. Querem apenas o respeito às fronteiras anteriores à guerra de 1967. Aceitam o estado judeu, embora com relutância, mas aceitam, porque em certas coisas não é possível voltar à estaca zero. Assim, esmagar, privar, esfomear, atormentar a população palestina é no mínimo, uma imensa asneira política que só vai despertar rancor e desconfiança do mundo todo contra um povo, o judeu, que terá sofrido em vão — persistindo a atual orientação — com a secular perseguição e imensa luta para conseguir um lar próprio.
Há um detalhe, na história do sionismo, que algumas pessoas desconhecem, e que teria algum interesse recordar. Trata-se do oferecimento de outras áreas, no planeta, no início do século XX, que foram lembradas e propostas para a criação do Estado de Israel. A oferta mais lembrada é da área referida no “British Uganda Program” e que foi aceita por uma parcela dos sionistas.
Em 1902, o Secretário Colonial Britânico ofereceu a Theodore Herzel’s — um intelectual brilhante e idealista, líder do movimento sionista — uma área, na África, de 5000 milhas quadradas — cada milha tem 1.604 m² — numa região que hoje faz parte do Kenya. Ali poderia situar-se Israel, fugindo das perseguições, notadamente os “pogrons” ocorridos pouco antes na Rússia. A área denominava-se “Mau Plateau” e tem clima ameno em razão da altitude. No ano seguinte o Congresso Sionista reuniu-se e seus membros envolveram-se em acalorados debates. Uns achavam que o “Mau Plateau” seria uma “antecâmara” para a Terra Santa, mas outros diziam que a aceitação de tal área dificultaria o estabelecimento do Estado Judeu na Palestina. Não obstante, venceu a ala que aceitou, para estudo, a área sugerida pelos ingleses, que mandavam naquela região da África. No ano seguinte, uma delegação de três homens foi até o local e disse que, quanto ao clima, não havia o que reclamar, mas o número excessivo de leões e outros bichos ferozes traria problemas. Além do mais, havia a tribo dos Massais, que não veriam com bons olhos aquela nova vizinhança de brancos. Com isso, em 1905 os sionistas, em sua maioria, recusaram a oferta britânica. Uma minoria votou que seria importante receber terras em qualquer lugar e outra minoria mudou-se para o Kenya, mas fixou-se nos centros urbanos, onde permanece até os dias atuais.
Difícil avaliar, hoje, se para os judeus teria sido melhor aceitar a área dentro do Kenya. A África teria sido imensamente beneficiada, graças à organização e tenacidade dos fundadores do Estado de Israel. Não sei se o tamanho era suficiente, mas leões e outros felinos seriam uma dificuldade bem menor que palestinos vestidos com dinamite, revoltados com a progressiva expulsão de uma área ocupada há vários séculos. Alegam que não foram eles que provocaram as diásporas, não podendo pagar pelo sofrimento imposto aos judeus por outros povos. Esse osso está travado na garganta deles e provocando efeitos colaterais que repercutiram até em Nova Iorque, na destruição do World Trade Center, gerando a invasão do Iraque e coisas graves que ainda estão por vir. Para mim, Osama bin Laden não teria encontrado seguidores dispostos a se matar se não houvesse uma revolta geral no mundo muçulmano quanto ao modo como os palestinos estão sendo tratados. Essa novela de amor infeliz ( à Terra Santa) e terror (palestino) ainda não acabou.
Se a meta final, com ou sem Angola — agora Kenya —, era mesmo o retorno a Jerusalém — uma obsessão de fundo religioso —, muita desgraça teria sido evitada se o “retorno” não tivesse tido o volume que teve. O fator “quantidade, como sempre, pode ter deslegitimado uma aspiração judaica, em tese, justa, se aplicada na proporção correta. Permanece a pergunta: para onde irão os palestinos?
Quanto à posição do Hamas, não será impossível que ele cancele sua sentença de expulsão dos judeus de toda a Palestina. É preciso dar um tempo para um recuo decente, evitando insultos de parcela de seus eleitores. Dizia De Gaulle, corajosamente, que entre trair seu país e trair seus eleitores preferia trair os eleitores.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
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