Direito Internacional

Análise Jurídico-Política do Caso Cesare Battisti

 

                        A extradição de Cesare Battisti, analisada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, ficará marcada entre os casos notáveis do Judiciário brasileiro – na figura de uma justiça colonial, pronta para entregar dissidentes a um Tribunal de Inquisição, pondo em cheque uma suposta “tradição brasileira de respeito aos direitos humanos”.

 

                        Este trabalho analisa alguns detalhes relativos ao caso, colocados em evidência no primeiro dia de julgamento da Extradição n. 1085 do STF, em 9 de setembro de 2009. Após 12 horas de defesas, apresentação do relatório e debates, o julgamento foi suspenso com o pedido de vistas do Ministro Marco Aurélio, estando pendente até a data de conclusão deste artigo.

 

                        Desde que Battisti foi preso no Rio de Janeiro, o caso tem despertado a mobilização da opinião pública por um embate entre as vozes da liberdade e as vozes conservadoras, trazendo um conteúdo essencialmente no plano do Direito Constitucional Internacional, que coloca em evidência a figura da extradição e a proteção constitucional das pessoas acusadas por crimes de natureza política. Mais que isso, a demarcação de posições sobre o caso tem sido um importante termômetro para a luta democrática no Brasil.

 

                        O caso em tela ganha importância pela responsabilidade que recai sobre os ministros do tribunal supremo do Brasil, pois a concessão da extradição requerida pela República Italiana importará (caso o Presidente da República siga a decisão do STF) na entrega de Cesare Battisti para as autoridades italianas, onde iniciará imediatamente a pena de prisão perpétua[1], iniciada com isolamento total da luz solar. Cabe lembrar que a Constituição brasileira proíbe os tratamentos ou penas cruéis e degradantes.

 

                        A decisão do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), negando o status de refugiado ao imigrante italiano, foi revertida em janeiro de 2009, ficando reconhecido o status de refugiado, por decisão do Ministro da Justiça, tudo de acordo com os procedimentos legais. Três dias depois, o STF negou o pedido de liberdade, resultando numa demora de quase dois anos e meio em que Battisti é um “prisioneiro político do STF”, conforme afirmou o ministro Joaquim Barbosa (LUNGARETTI).

 

                        Surgiu assim, um conflito entre dois institutos do Direito Internacional: o refúgio (reconhecido pela instituição competente, o Poder Executivo) e a extradição (solicitada pelo governo italiano e que está sendo julgada pelo STF). Ocorre que o STF não poderia julgar a extradição, diante da clara redação do art. 33 da Lei n. 9.474/77 (Estatuto dos Refugiados):

 

Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.

 

                        Por que, então, a lei não é aplicada para Cesare Battisti? A resposta está muito além das ilusões jurídicas, ou seja, no fato de que o Direito não existe de forma separada de um poder de classe – do jogo de poder das classes dominantes no Brasil e seus governadores-gerais no plano internacional. E os detalhes do julgamento o demonstram claramente.

 

                        A sessão de julgamento foi aberta pela manhã, num ambiente em que

 

Membros do próprio tribunal, o Procurador Geral, o Alto Comissariado das Nações Unidas e até o representante do Ministério da Justiça no CONARE reconhecem que a cúpula do STF e o governo neofascista italiano se uniram para iniciar um julgamento sem sentido, gerando um fato de ingerência do Judiciário no Executivo absolutamente inválido. (LUNGARZO)

 

                        É digno de registro que, logo no início da transmissão do julgamento em rede nacional de TV, o presidente do tribunal, Gilmar Mendes, foi interrompido por várias vozes no auditório (STF1), que clamavam em protesto “Liberdade para Cesare Battisti”, ao que Mendes ordenou sua imediata retirada do local, e ouviu de volta os gritos de “Abaixo a repressão” – para que ninguém se esquecesse se tratar de um julgamento político.

 

                        As defesas orais foram iniciadas pelo advogado da República Italiana, que repetiu os frágeis argumentos da metrópole, de que Battisti não foi condenado por crimes políticos e proferindo disparates como de que a concessão de refúgio não é ato político.

 

                        A Procuradora do Ministério da Justiça, por sua vez, demonstrou juridicamente o absurdo da atitude do Estado italiano em pretender a anulação do ato do Ministro da Justiça mediante uma ação de Mandado de Segurança. É como se um país estrangeiro tivesse o direito “líquido e certo” de impedir a decisão do Chefe de Estado do Brasil, uma vez que o Ministro da Justiça nada mais é do que o representante do Presidente da República num assunto específico. A República Italiana é parte ilegítima para litigar em Mandado de Segurança em que pretende anular o ato do Ministro da Justiça de reconhecimento do status de refugiado.

 

                        Essa questão também foi apontada pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, mostrando que o governo da Itália – e logo o STF – tentam anular uma decisão administrativa e política do Estado brasileiro, “invertendo a um só tempo o princípio da soberania nacional e o sistema de proteção dos direitos humanos consagrados no país”. Destacou ainda que “não se deve nunca deixar de aplicar em casos como esse o princípio da interpretação mais benéfica aos direitos humanos, o que a toda evidência beneficia o refugiado e não a Itália” (STF2)

 

                        O advogado de Cesare Battisti, Luís Roberto Barroso, em sua defesa, fez um contundente resumo do caso, mostrando que a condenação de homicídio à revelia se deu num contexto de perseguição política aos militantes de esquerda, fundada apenas na delação de um dirigente da organização Proletários Armados para o Comunismo, Pietro Mutti, quando, preso em 1982,

 

[…] despejou, por além do crível, a responsabilidade de todas as ações mortais do grupúsculo. Isso porque, como declarou o próprio Mutti, Battisti se encontrava no exterior. No Brasil, na ditadura, era habitual entregar sob tortura companheiros mortos e no exterior, para não comprometer militantes presos ou no país. (NADER)

 

                        Battisti passou 14 anos vivendo como refugiado na França, ocasião em que foi negada sua extradição, sendo esta concedida apenas 12 anos depois, diante da onda de conservadorismo dos governos europeus. Desde então, Battisti vivia pacificamente no Brasil.

 

                        Barroso fez referência à seguinte fala do deputado italiano de extrema-direita Ettore Pirovano (apud FUSER):

 

Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas, mas sim por suas dançarinas. Portanto, antes de pretender nos dar lições de Direito, o ministro da Justiça faria bem se pensasse nisso não uma, mas mil vezes.

 

                        Essa declaração, praticamente ignorada pela imprensa brasileira,

 

“[…] revela muito sobre o universo mental da coligação governista da qual ele faz parte, em companhia dos neofascistas declarados que, sob a batuta de Silvio Berlusconi, sentem novamente o gosto do poder, mais de 60 anos depois que Mussolini teve o seu merecido fim. (FUSER)

 

                        Além disso, mostra a postura de autoridades administrativas e judiciárias do Brasil, que, ao condenar Cesare Battisti, retirar o caráter político do caso, ignorar a legitimidade da decisão do Ministro da Justiça e defender a extradição, revelam uma mentalidade de colônia e de uma imoral traição ao povo brasileiro.

 

                        Após as defesas orais, seguiu-se a leitura do relatório e voto do ministro relator do caso, Cezar Peluso, um arrazoado de 138 páginas, qualificado, na expressão inconformada de Celso Lungaretti, como “um relatório tão parcial e tendencioso que, fosse o STF um tribunal que se desse ao respeito, não poderia sequer ter sido aceito”; o ministro, na prática, exclui a aplicação do Estatuto dos Refugiados, fundamentado em algo tão vazio quanto o raciocínio de que a lei só seria aplicável se o Ministro da Justiça tivesse tomado uma decisão válida.

 

                        A disputa de grupos de poder acima de qualquer norma jurídica fica tão evidente, que a lógica do discurso é a seguinte: o STF, enquanto entende que o Executivo não pode excluir do Judiciário a apreciação de um caso, exclui ele próprio o Executivo dessa apreciação.

 

                        O Ministro da Justiça, por sua vez, sob o pretexto de evitar conflitos entre os poderes anunciou, no dia do julgamento, que qualquer que fosse a decisão do STF, seria respeitada (LUNGARZO). Um dia antes do julgamento, Genro estava lançando a campanha Fim da Linha, em parceria com a Interpol, visando aumentar o número de prisões de foragidos estrangeiros no Brasil…[2] As movimentações contraditórias das autoridades são bem explicadas por Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento (1985, p. 12):

 

Agora, é verdade, a história motorizada toma a dianteira desses desenvolvimentos intelectuais e os porta-vozes oficiais, movidos por outros cuidados, liquidam a teoria que os ajudou a encontrar um lugar ao sol, antes que esta consiga prostituir-se direito

 

                        No conteúdo do relatório, uma defesa intransigente do Governo da Itália[3], Peluso procura, de um lado, mostrar o quanto democráticos eram o governo da época e os tribunais que condenaram Cesare Battisti, e, de outro, advogar

 

[…] uma das mais rançosas teses da diplomacia internacional: a necessidade de considerar ‘intocável’ o processo judicial aplicado pelo país perseguidor, passando por cima das fraudes cometidas por Itália no julgamento de Battisti em ausência” (LUNGARZO).

 

                        Esse voto contraria a jurisprudência do próprio STF, que estabeleceu, em 1989, importante diferenciação entre terrorismo e luta revolucionária (Extradição n. 493). Agora, Peluso chama as ações de resistência de “banditismo social”.

 

                        Os ministros Carmen Lúcia e Joaquim Barbosa, em seus debates, insurgiram-se contra a tendência estabelecida, de julgamento conjunto da legalidade decisão de concessão de refúgio e o pedido de extradição. Joaquim Barbosa então afirmou que o Supremo estava praticando um desvio de procedimento, e, assim, dando um salto: um “salto mortal”.

 

                        Também é digna de registro a contenda em que o relator Peluso sugeriu em tom irônico que o Ministro Eros Grau estaria favorecendo a posição do Ministro da Justiça por razões de amizade. Sarcasmo que levou Eros Grau a proferir seu voto e abandonar o plenário.

 

                        Nos meios das organizações não governamentais e dos ambientes das relações internacionais, é comum se dizer que o Brasil possui uma tradição na defesa dos direitos humanos. O julgamento de Battisti demonstra que essa tradição está no plano do discurso, invocada para assegurar uma imagem do governo no exterior e encobrir as violações aos direitos humanos praticadas no próprio país. O povo brasileiro, este sim, possui uma história de lutas por seus direitos fundamentais.

 

                        Entre os ministros do STF, há vários professores de grandes universidades e autores de livros na área de Direitos Humanos. Boa parte destes votou a favor da entrega de Battisti para o governo italiano. Que direitos humanos são esses?

 

                        Há mais de 60 anos, o Estado brasileiro, sob comando de Getúlio Vargas, entregara  a revolucionária Olga Benario Prestes para a Alemanha de Hitler, onde foi imediatamente executada na câmara de gás. A tradição brasileira se perpetua.

 

                        Na década de 20, outros dois militantes revolucionários italianos estavam sendo julgados por um tribunal racista e anti-imigrante do Estado de Massachusets, nos EUA. As história de discriminação, fraudes, manipulações e arbítrio do poder no processo de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti – levando-os à condenação à morte na cadeira elétrica – lançaram para o lixo da história o discurso de “terra das liberdades” dos Estados Unidos.

 

                        O caso Cesare Battisti é emblemático ao demonstrar o servilismo das autoridades brasileiras a qualquer tipo de imperialismo que possa se apresentar. É uma demonstração inequívoca de que o Direito não existe separado do poder, já que as classes dominantes ignoram as regras que elas mesmo criaram, em função de seus interesses. Defender a liberdade de Cesare Battisti é tarefa de todos os verdadeiros defensores dos direitos humanos em nossa época.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

 

FUSER, Igor. A mídia contra Battisti. Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti, 02 jun. 2009. Disponível em: <http://cesarelivre.org/node/68>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

LUNGARETTI, Celso. Rolo Compressor do STF infringe separação de poderes. Disponível em: <http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/09/escalada-direitista-do-stf-infringe.html>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

LUNGARZO, Carlos. Decisão Judicial ou Indulto? Disponível em <http://www.apesardevc19641985.blogspot.com/2009/09/carlos-lungarzo-decisao-judicial-ou.html>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

NADER, Valéria. Diabolização de Battisti por Berlusconi é parte do seu projeto de poder ‘fascistizante’. Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti, 17 fev. 2009. Disponível em: <http://cesarelivre.org/node/68>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

STF. Grupo se manifesta no Supremo contra extradição de Battisti. Notícias STF, 09 set. 2009. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=112930&caixaBusca=N>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

 

STF. PGR opina para que Cesare Battisti fique no Brasil como refugiado. Notícias STF, 09 set. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=112940&caixaBusca=N>. Acesso em: 11 out. 2009.

 

* Júlio da Silveira Moreira, Vice-Presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (IAPL); mestrando em Direito e Relações Internacionais, PUC-GO; advogado e professor universitário.



[1] Há apenas uma ressalva do STF que condiciona a concessão da extradição ao compromisso da Itália de substituir a pena perpétua por pena de 30 anos.

[2] Jornal do Commercio, 09 set. 2009.

[3] “O relator do caso Battisti, Cézar Peluso, mostrou, durante os últimos meses, um comportamento tão servil com as autoridades italianas, que não admite comparação com eventos anteriores, seja no país, seja no exterior.” (LUNGARZO)

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Júlio da Silveira. Análise Jurídico-Política do Caso Cesare Battisti. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/analise-juridico-politica-do-caso-cesare-battisti/ Acesso em: 14 mar. 2025
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