Direito Constitucional

A dicotomia entre a liberdade religiosa prática e a garantida pela lei

A DICOTOMIA ENTRE A LIBERDADE RELIGIOSA PRÁTICA E A GARANTIDA PELA LEI[1],[2]

ESTEVÃO SCHULTZ CAMPOS[3]

ANA CLARA RIBAS DE SOUZA[4]

BIANCA DE OLIVEIRA CANÔNICO ANDRADE[5]

LARA MONYSE FERREIRA DE LIRA[6]

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO. 2. TESES DO JULGADO – REFERENTE À ANÁLISE DO JULGADO. 2.1. EXPANSÃO DA DISCUSSÃO. 3. CONCLUSÃO. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INTRODUÇÃO

Trata-se de Mandado de Segurança impetrado pelo paciente Vitor Álvaro da Silva, estudante de um curso profissionalizante – noturno – do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), que não frequentava suas aulas às sextas-feiras, por ser sabatista, ou seja, guarda o período de pôr do sol da sexta-feira ao pôr do sol do sábado.

Contudo, mesmo sendo amparado pela Lei Estadual 12.142/2005 (São Paulo), que garante o seu direito de realizar provas em dias alternativos – caso os originais contrariem o seu credo religioso – bem como o abono de suas faltas nesse período, o diretor do SENAI não autorizou a realização das provas em dias alternativos nem o abono das faltas – mesmo Vitor tendo declarado ser Adventista do Sétimo Dia – impedindo, assim, a aprovação do Paciente no curso profissionalizante.

TESES DO JULGADO – REFERENTE À ANÁLISE DO JULGADO

A defesa do impetrante é feita a partir da Lei Estadual N° 12.142/2005, onde fica claro o amparo que a legislação assegura a qualquer cidadão que possua uma religião com dia de guarda definido – como judeus, batistas do sétimo dia, adventistas do sétimo dia, que têm os sábados como dia sagrado, ou como os muçulmanos, que santificam as sextas-feiras. O Art. 2º, em seu caput, garante que todos os estudantes – em âmbito público e privado – que tenham um dia da semana estabelecido como sagrado, possuam a opção de realizar as provas que caiam nestes dias de guarda em um dia alternativo:

“Artigo 2º – É assegurado ao aluno, devidamente matriculado nos estabelecimentos de ensino público ou privado, de ensino fundamental, médio ou superior, a aplicação de provas em dias não coincidentes com o período de guarda religiosa previsto no "caput" do artigo 1º.” (Lei Estadual N° 12.142/2005)

No inciso 1º também é especificado o direito que o aluno possui de abonar suas faltas no dia de guarda, entregando trabalhos escritos ou atividades acadêmicas requeridas pelo próprio professor:

“§ 1º – Poderá o aluno, pelos mesmos motivos previstos neste artigo, requerer à escola que, em substituição à sua presença na sala de aula, e para fins de obtenção de frequência, seja-lhe assegurada, alternativamente, a apresentação de trabalho escrito ou qualquer outra atividade de pesquisa acadêmica, determinados pelo estabelecimento de ensino, observados os parâmetros curriculares e plano de aula do dia de sua ausência.” (Artigo 2º da Constituição Federal de 1988)

A partir destes pensamentos, o desembargador Oscild de Lima Júnior julgou procedente a ação movida pelo Impetrante. A autoridade Impetrada – o diretor da unidade do SENAI onde o Impetrante estuda – foi orientada a abonar as faltas do Impetrante nas noites das sextas-feiras, que são parte do seu período de guarda religiosa.

Não concordando com a decisão estabelecida na sentença e deduzindo que não houve amparo legal ou normativo a estudantes que se ausentam regularmente dos horários das aulas devido a convicções religiosas, o Impetrado, contra a r. sentença interpôs recurso – que é determinado desprovido. O desprovimento é dado em caráter dos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, que afirma:

“(…) Se sua existência [existência do Direito] for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais. (…) advirá a sentença considerando unicamente o direito e os fatos comprovados com a inicial e informações.” (Mandado de Segurança, 30ª ed., 2007, São Paulo, Malheiros, p. 38/39 e 41).

Há um conflito entre as garantias constitucionais. O impetrado afirma que o impetrante deseja receber tratamentos especiais, mas, segundo o art. 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito(…) à igualdade.”[7]

O impetrado deixa de lado, entretanto, os incisos V e VIII, que garantem o direito do impetrante de exercer de forma plena a sua religião, assegurando que o indivíduo não seja prejudicado ao realizar seus ritos e crenças, sendo-lhe livre o exercício de seus cultos:

“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”[8]

Segundo o Impetrado, há um conflito de preceitos fundamentais, mas não tendo os direitos e garantias fundamentais caráter absoluto, o direito mais pertinente deve ser mantido, ou seja, aquele que defenda a dignidade e a privacidade. Dessa forma, tem-se o princípio da isonomia:

“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).

O impetrante não pode ser tratado como os demais alunos do SENAI simplesmente porque não se encontra nas mesmas condições que eles. Sendo desigual, merece um tratamento desigual, não sendo autorizada, assim, a prevalência da proposta pedagógica da escola como motivo de recusa ao pedido do impetrante de compensação de suas ausências em sala de aula às sextas-feiras à noite.

Como último recurso, o impetrado, ainda, alegou ser a lei 12.142/2005 – principal argumento a favor do impetrante – inconstitucional, segundo proposta da CONFENEN[9], porém, a proposta ainda não foi apreciada, sendo mantida a r. sentença, assim, integralmente.

EXPANSÃO DA DISCUSSÃO

As regras são comuns às pessoas desde o começo da história da humanidade, isso, para que seja possível manter a ordem em uma determinada sociedade. De acordo com o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), o ser humano é mau em sua essência e sem a intervenção de alguma força que atue como forma de controle, não é possível que os indivíduos vivam em harmonia na sociedade:

“Com isto se torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição que se chama de guerra; uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 1651, p. 46).

O Contrato Social, como forma de estabelecer a ordem na sociedade, atua como um instrumento que leva o ser a seguir determinados padrões. É possível classificá-lo como formal e informal, sendo o formal correspondente às leis e regras institucionalizadas e, o controle informal, aquele baseado em normas e costumes aceitos socialmente como corretos (crenças, valores, costumes, etc.). O ser humano sempre esteve submetido ao cumprimento de regras, sejam estas formais ou informais. Atentando ao meio formal de controle social, uma norma, quando elaborada, é feita pelos representantes da sociedade (Deputado, Senador ou Vereador), e sempre sobre assuntos pertinentes e necessários à sociedade, mesmo que em parte dela.

O cristianismo – religião predominante no Brasil – baseia suas ideias nos ensinamentos fornecidos pela Bíblia Sagrada (forma de controle informal). O capítulo dois de Gênesis[10] apresenta a primeira regra ao ser humano, que, assim como as normas que fazem parte do ordenamento jurídico atual, possui consequências quando descumprida:

“E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”(Bíblia Sagrada, Gênesis 2:16-17).

O Código de Hamurabi, outro exemplo de forma de controle, desta vez formal, possuía a finalidade de trazer a justiça para o povo. Na Lei de Talião (mais famosa do Código) é apresentado o princípio revelado pela expressão “olho por olho, dente por dente”, onde, partindo desse pressuposto, haveria a reciprocidade entre o crime e a pena (um assassino seria punido com a morte), fazendo jus ao termo talionis – que significa “idêntico”.

A ideia de Estado Laico – Estado que não possui ambições ou obrigações religiosas – é antiga, sendo fortemente desenvolvida por Nicolau Maquiavel e precisamente empregada no Iluminismo, movimento filosófico e cultural presente nos séculos XVII e XVIII. Com o racionalismo e a secularização do Estado, religião e política foram separadas. Buscou-se “ignorar o religioso, compreendido agora como matéria de âmbito exclusivamente privado, questão de crença pessoal”[11]. Dessa forma, os indivíduos possuíam a permissão de ter uma religião, porém não podiam exercê-la de forma plena – já que não podiam manifestá-la publicamente, sendo altamente criticados pela sociedade cientificista da época. A ciência cresceu e a religião desapareceu do cenário científico, entretanto não foi extinta – mas readequada às novas situações às quais estava inserida. Assim, “o Estado viu-se confrontado pelo desafio de encontrar lugar e condições legítimas para a existência das religiões”[12], criando, dessa forma, um caráter laico, se comprometendo a “não (…) impor crenças ou conversões, nem promover perseguições ou praticar qualquer ato discriminatório a partir de aspectos religiosos”[13].

Houve a separação, no Brasil, entre Estado e Igreja, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Até então, com as influências europeias, a forma como eram relacionados Estado e religião se dava como na época medieval. Com o desenvolvimento da liberdade religiosa na Europa, o Brasil, consequentemente influenciado, acabou por se manifestar também, a partir do lançamento do decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890. O decreto proibiu a escolha, por parte do Estado, de uma religião oficial, bem como de proibir que determinada religião seja exercida; não permite, ainda, que seja feita diferença entre pessoas por conta de seu credo religioso:

“Art. 1º E’ prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.” (Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890).

O decreto assegura, também, que cada religião tenha a permissão de exercer seus cultos, rituais e costumes – abrangendo indivíduos e órgãos maiores como igrejas e instituições – tanto em âmbito privado como em âmbito público, não sendo discriminada e tendo os indivíduos o direito de viver coletivamente:

“Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem- se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercício deste decreto.

Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os indivíduos nos actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico.” (Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890).

Pouco tempo depois, foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, que no seu Artigo 11 trazia claramente a separação entre Estado e Igreja. Essa norma trouxe maior legalidade à laicização do país proposta no Decreto 119-A, pois, segundo Hans Kelsen, existe uma hierarquia entre as leis, sendo uma Constituição hierarquicamente superior a todas as outras leis. Dessa forma, a partir da inclusão de orientações para que o Estado não esteja ligado ao âmbito religioso, o Brasil passa a ser, oficialmente, um país laico:

“Embora a questão da laicidade do Estado já tivesse sido tratada no Decreto 119-A, ao compor o conjunto de normas constitucionais, adquire status hierárquico superior no mundo das normas e passa a ser entendido como fundamento, princípio ou objetivo a ser perseguido pelo Estado, pela sociedade, pelas religiões e pelos indivíduos.” (GABRIEL, 2018, p. 18).

Atualmente, segundo a Constituição Brasileira, que possui praticamente os mesmos ideais da primeira Constituição Republicana (1891), o Brasil é um país laico, que assegura a todos os crentes, de todas as religiões – salvo situações que firam a Constituição – os mesmos direitos. Esses direitos garantem a liberdade religiosa, que vai além de apenas liberdade de culto, mas à capacidade legal de expressar as crenças conforme a consciência moral pessoal. Associada ao conceito de laicidade, a liberdade religiosa está relacionada à prática de professar qualquer religião na vida pessoal sem a possibilidade de punição por isso:

“Artigo 5° – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (Constituição Federal do Brasil de 1988).

Quando a norma diz “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”, é preciso indagar quais as discriminações juridicamente intoleráveis. Segundo Hans Kelsen:

“A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres.”(Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, nota de rodapé pagina 10 e 11).

Não diz que todos devem ser tratados identicamente, mas que devem ser tratados de formas diferentes para que alcancem os mesmos resultados. Celso Antônio Bandeira de Melo cita em um dos seus livro a questão de que “A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições , mas instrumento regular da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos …”[14] Isto é, o conteúdo político -ideológico compreendido pelo princípio da isonomia, ou seja, devem ser tratados igualmente nos aspectos que são iguais, e desigualmente à medida de sua desigualdade, proporcionando, assim, o amplo exercício de seus direitos. O princípio da isonomia determina que todos são iguais diante de a lei, quer seja esta de conteúdo material ou processual. Mas vale lembrar que a igualdade formal tem a obrigação de ceder lugar à igualdade real ou substancial, ou seja, como possa ser necessário lidar. O direito à liberdade de religião é inerente à condição humana, e a religiosidade é um fenômeno sociológico que ganha importância jurídica, graças aos princípios constitucionais de liberdade quando seguramos a liberdade, permitimos que cada cidadão possa escolha as músicas que ouvirá, os livros que lerá, o tipo de comida que vai comer, o tipo de roupa que irá vestir e, entre outros, a religião/crença que irá seguir:

“VI- É inviolável a liberdade de consciência de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII- Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;” (Artigo 5° da Constituição Federal de 1988).

É necessário ter sempre em mente que é a partir desse rol de liberdade, e suas aberturas no poder constituinte, quis garantir uma liberdade sem distinção, reconhecido dessa forma a dignidade humana. Quando um cidadão brasileiro é privado, por conta de sua religião, de algo que todos podem usufruir, não sendo-lhe apresentada opção alternativa, dele é tirado o amparo oferecido pelo Art. 5º Inciso VIII da Constituição Federal. Desde 1988, quando foi promulgada, a Constituição alega que ninguém será privado de seus direitos, protegendo aqueles que, por motivos religiosos, possuem seus direitos ameaçados, e ao isso acontecer, o Estado prejudica a sociedade. A laicidade é ferida, e sendo ela “uma estratégia necessária à construção de uma sociedade mais equânime e harmônica”[15], o próprio crescimento e desenvolvimento do Estado como garantidor de direito é prejudicado.

Denominações religiosas como Adventista do Sétimo Dia e algumas alas do Judaísmo consideram sagrado o período do pôr do sol da sexta-feira ao pôr do sol do sábado (denominados sabatistas), assim sendo, não executam atividades que seriam desempenhadas em outros períodos da semana – como frequentar aulas, realizar compras, etc. No âmbito educacional, entretanto, é comum aos sabatistas enfrentar diversas dificuldades por profetizarem dessa fé. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo, durante muito tempo realizou suas provas no período de um único final de semana – sendo a 1 a prova no sábado e a 2 a no domingo – e, com isso, aqueles que se recusassem a prestá-lo antes do pôr do sol do sábado, eram obrigados a ficar “confinados” das 13h00 às 19h00 (tempo estipulado para a realização da prova). A estes participantes, assim como os que realizavam o exame normalmente, era vedado que conversassem, lessem e utilizassem aparelhos eletrônicos. Ou seja, a única coisa possível a se fazer era aguardar – muito – até fosse possível realizar a prova, após um extremo cansaço físico e mental causado pelas horas de espera. Apenas em 2017 – após uma consulta pública com mais de 600.000 pessoas – as datas de realização das provas do Enem foram alteradas para 2 (dois) domingos consecutivos, sendo essa uma grande conquista para os sabatistas, uma vez que não terão mais de passar por situações tão difíceis como a citada acima.[16]

Ainda hoje, a ausência às aulas às sextas-feiras à noite e aos sábados durante o dia resultam em perdas de provas, trabalhos e faltas não abonadas, causando malefícios à formação acadêmica de alunos que necessitam ausentar-se, assim como no caso do Impetrante Vitor Álvaro da Silva que, apesar de ter declarado publicamente sua fé, continuou a ser prejudicado injustamente por uma decisão tomada pelo diretor de seu curso profissionalizante – apenas um exemplo dos muitos continuam ocorrendo. Embora no dia 3 de janeiro de 2019 tenha sido sancionada a Lei Federal n° 13.796 – que permite ao aluno faltar às aulas por motivo religioso –, alguns estados e municípios do Brasil já dispunham em suas legislações leis que asseguravam esse direito aos estudantes.

No Brasil, além do Art. 5º da Constituição Federal, ainda há a presença de leis estaduais e municipais que garantem aos estudantes a prestação de provas de concursos públicos em dias que não coincidam com o dia de guarda religiosa, bem como a aplicação de provas ordinárias que caiam no mesmo período, ficando a critério da instituição – pública ou privada o – modo como será a prova em dia alternativo. A exemplo:

Lei Estadual de São Paulo nº 12.142, de 08/12/2005: Estabelece períodos para a realização de concursos ouprocessos seletivos para provimento de cargos públicos ede exames vestibulares no âmbito do Estado e dá outrasprovidências.

O número de Sabatistas têm crescido consideravelmente e é muito comum que as pessoas se lembrem dos Judeus, por exemplo, que são sabatistas, pois guardam o período que, para os eles, é conhecido como Shabat – dia de descanso semanal estabelecido por Deus. O Shabat simboliza o sétimo dia em Gênesis, sendo o dia em que Deus descansa após os seis dias de Criação. Assim, ele se dá ao pôr-do-sol da sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado.[17]

A Lei 12.142/2005 foi criada pelo então governador José Serra, não especificando somente provas de concurso público ou processo seletivo para provimento de cargos públicos, mas incluindo também exames de vestibulares das universidades públicas e privadas, bem como horários e dias específicos para que ocorram. Caso exista a necessidade de que a prova seja aplicada no sábado, a entidade organizadora poderá realizá-la, devendo dar ao candidato a possibilidade de, ao alegar motivo de crença religiosa, fazê-la após às 18h00, ficando, porém, o candidato incomunicável desde o horário regular previsto para os exames até o início do horário alternativo para ele estabelecido previamente. Para que isso ocorra, o estudante tem até 72 (setenta e duas) horas antes do horário de início para notificar sobre suas crenças, dessa forma a organização tem tempo para atender ao pedido:

No Artigo 2º pode-se ver a proteção do direito pelo qual o Impetrante luta, deixando por responsabilidade da instituição a substituição à sua presença na sala de aula, sendo assegurada, alternativamente, por apresentação de trabalho escrito ou qualquer outra atividade de pesquisa acadêmica, observando os parâmetros curriculares e plano de aula do dia de sua ausência:

“Artigo 2º – É assegurado ao aluno, devidamente matriculado nos estabelecimentos de ensino público ou privado, de ensino fundamental, médio ou superior, a aplicação de provas em dias não coincidentes com o período de guarda religiosa previsto no artigo 1º.” (Lei Estadual de São Paulo, 12.142/2005)

No estado de Minas Gerais a Lei nº 21.556, de 22/12/2014, assegura ao aluno matriculado em estabelecimento de ensino de educação básica vinculado ao Sistema Estadual de Educação o direito de observar o período de guarda religiosa – conforme a ementa.

A Lei afirma que é assegurado aos alunos o direito a realizar suas guardas religiosas, mesmo quando os horários de estudo entrarem em conflito com o período. Será garantido ao aluno realizar o exame em data ou horário alternativos, existindo a instituição de ensino declaração de pertencer à religião com dia de guarda definido:

“I – declaração de um dos pais do aluno menor de dezoito anos ou de responsável pelo aluno; II – declaração do próprio aluno maior de dezoito anos.” (Artigo 2º Lei Estadual de Minas Gerais nº 21.556).

No município de Manaus-AM a Lei nº 1569, de 11/07/2011, trata do período para realização de concursos ou processos seletivos e de exames vestibulares no âmbito do município de Manaus:

“Art. 1°. Modifica o artigo 3º da Lei nº 1.014, de 14 de julho de 2006, que passa a ter a seguinte redação: “ É assegurado ao aluno ou candidato, devidamente matriculado nos estabelecimentos de ensino público ou privado, de ensino fundamental, médio ou superior, a aplicação de provas de concursos, processos seletivos e/ou curriculares em dias não coincidentes com a guarda religiosa, conforme o período previsto no caput do artigo 1º desta Lei;.

Art. 2°. Acrescenta-se o inciso I ao artigo 3º da Lei nº 1.014, de 14 de julho de 2006, com seguinte redação: as provas, por não serem de segunda chamada, deverão ser gratuitas.” (No município de Manaus-AM a Lei nº 1569 de 11/07/2011).

A Lei nº 1569 de Manaus, assim como as demais, prevê aos estudantes os privilégios da aplicação de prova para concursos, processos seletivos ou curriculares em dias que não coincidam com o de guarda religiosa do requerente. Porém, diferente das demais, esta prevê a reposição gratuita da prova em dia alternativo.

Lei no município de Porto Alegre nº 10.010, de 06/07/2006: Dispõe sobre as questões relacionadas àliberdade religiosa, fixando segunda data para exames eatividades curriculares em estabelecimentos de ensinopúblico no município de Porto Alegre.

Em 6 de julho de 2006 a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou e sancionou a Lei 10.010, que garante o direito de sabatistas a realizarem exames e atividades curriculares que forem elementos de avaliação de desempenho do educando nas instituições de ensino do município de Porto Alegre-RS, sem afetar os princípios da sua crença. O prefeito, na época, era José Alberto Fogaça de Medeiros e colaborou para que os sabatistas tivessem seus direitos garantidos.

Em um município que tinha mais de 50 unidades da Igreja Adventistas do Sétimo Dia, se fez importante essa lei. Além de os sabatistas terem seus direitos garantidos na prestação de exames, também o possuem em atividades extracurriculares, não sendo, assim, prejudicados em nenhum momento de suas vidas acadêmicas. Entretanto, é necessário o aviso de suas opções religiosas no momento da matrícula, para que a instituição possa tomar as providências necessárias com antecedência. Todavia, a lei deixa claro que esse direito se aplica somente a escolas municipais, não sendo amparados, assim, os estudantes de instituições privadas.

Lei Municipal de São Paulo Nº 13.992, de 10/06/2005: Proíbe que concursos públicos de ingresso naadministração pública direta e indireta sejam realizadosaos sábados.

Essa lei é bem específica, serve para questões de concursos públicos – como administração Pública Direta e Indireta do Município de São Paulo. Também deixa claro que, diferente da lei de Manaus, nessa ocorre as dotações orçamentárias são por conta do paciente, se necessário, não especificando, porém, questões escolares como provas ou reposição de faltas.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como os sabatistas podem se proteger com as leis existentes em seus estados e municípios. Dada a importância do assunto, tornou-se necessária a exploração do amparo oferecido pelo Art. 5º Inciso VIII da Constituição Federal de 1988, que trata sobre a importância em ter o asseguramento de um direito, sendo permitido pensar diferente, por motivos religiosos ou manifestações de pensamentos. Nesse sentido, se fez necessária a utilização – além do Art 5º da Constituição Federal – de leis existentes em municípios e estados, sendo, assim, possível entender que o caso de Vítor Álvaro da Silva esteve o tempo todo protegido por uma lei federal (Art 5º VI e VIII da Constituição Federal), uma lei estadual (Lei estadual 12.142/2005) e também municipal (Lei municipal de São Paulo 13.992/2005), sendo imprudente a conduta da Instituição de Ensino (SENAI) em relação ao caso.

Há quem ainda não possua conhecimento desses direitos, e, por isso, a estes devem ser mostrados o amparo legal oferecido aos sabatistas – entre outras religiões. O país garante esses direitos constitucionalmente, mas há, também, alguns estados e municípios que especificam como será o processo.

Assim como o Impetrante, todos os sabatistas precisam ir atrás de seus direitos, afinal, como o próprio Art. 5º diz, “Todos são iguais perante a lei (…)”, e não é justo que alguns sejam prejudicados e não obtenham oportunidade iguais, unicamente por ter escolhido adotar determinada convicção religiosa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 12 dez. 2019

BRASIL, Constituição (1891) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil Rio de Janeiro, 1891. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm . Acesso em 11 dez. 2019.

BRASIL, Decreto 119-A. Disponível em:  http://planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851- 1899/D119-A.htm Acesso em 10 dez. 2019.

DUARTE, João de Azevedo e Dias. ILUMINISMO E TOLERÂNCIA RELIGIOSA. Ciência Hoje. Disponível em:  http://http://cienciahoje.org.br/artigo/iluminismo-e-tolerancia- religiosa Acesso em 10 dez. 2019.

GABRIEL, José Luciano. LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM À LUZ DE HABERMAS E DO DIREITO. Rio de Janeiro: Gramma, 2018.

MELO, Celso Antônio Bandeiras. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Malheiros Editores, 2017.

HEES, Carlos Alexandre. LELLIS, Lélio Maximino. Manual da Liberdade Religiosa. Ideal Editora, 2013.



[1] Recuso Especial: REsp 686209 RS 2004/0111323-9

[2] Este trabalho é fruto das investigações ocorridas no “Grupo de Pesquisa Transversalidade dos Direitos Humanos” da Centro Universitário Adventista – UNASP.

[3] Advogado, Graduado em Direito pela Universidade Vale do Rio Doce (2012). Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, sob a orientação do Professor Cláudio de Cicco. Bolsista CAPES/PROSUP. Mestre em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, sob a orientação do Professor Erik Frederico Gramstrup. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Público e Privado. Professor de Direito nas áreas de Direito Civil e Constitucional, do Centro Universitário Adventista (UNASP) – Campus São Paulo e Hortolândia. Contato: estevaoadv@hotmail.com.

[4] Graduanda pelo Centro Universitário Adventista – Campus Hortolândia (UNASP-HT).

[5] Graduanda pelo Centro Universitário Adventista – Campus Hortolândia (UNASP-HT).

[6] Graduanda pelo Centro Universitário Adventista – Campus Hortolândia (UNASP-HT).

[7] Artigo 5° da Constituição Federal de 1988, caput.

[8] Artigo 5°, parágrafos VI e VIII da Constituição Federal do Brasil de 1988.

[9] Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino

[10] Primeiro livro da Bíblia Sagrada

[11] LEITE, 2014, p. 68. In: GABRIEL, José Luciano. LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM À LUZ DE HABERMAS E DO DIREITO. Rio de Janeiro: Gramma, 2018, p. 13

[12] GABRIEL, José Luciano. LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM À LUZ DE HABERMAS E DO DIREITO. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. PÁGINA 13 E 14

[13] LEITE, 2014, p. 68. In: GABRIEL, José Luciano. LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM À LUZ DE HABERMAS E DO DIREITO. Rio de Janeiro: Gramma, 2018, P. 14

[14] O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, páginas 10 e 11.

[15] GABRIEL, José Luciano. LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM À LUZ DE HABERMAS E DO DIREITO. Rio de Janeiro: Gramma, 2018, P. 26

[16] Ministério da Educação, Enem passa a ser realizado em dois domingo seguidos, < http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/418-enem-946573306/46041-enem-passa-a-ser-realizado-em-dois-domingos-seguidos> publicação em março de 2017, acesso em 27/10/2019.

[17] Assim como os Judeus e os Adventistas do Sétimo Dia, estão também na lista das religiões sabatistas algumas como a Igreja Adventista da Promessa, Igreja Batista do Sétimo Dia, Assembleia de Deus do Sétimo Dia, Igreja de Deus do Sétimo Dia, Igreja Adventista Pentecostal, Igreja Adventista da Promessa Conservadora, Igreja Adventista da Reforma, Igreja Cristã Bíblica Adventista, Ministério Adventista Bereano, Congregação, em St. Louis, Igreja Bíblica de Deus, Igreja Ministério Ungido Sábado, Assembleia do chamado Eterno, Congregação Crentes reunidos, Assembléia do Primogênito, Assembléia do Senhor, Ministério Barnabé, Igreja Missão Bendita Esperança, entre outras.

Como citar e referenciar este artigo:
CAMPOS, Estevão Schultz; SOUZA, Ana Clara Ribas de; ANDRADE, Bianca de Oliveira Canônico; LIRA, Lara Monyse Ferreira de. A dicotomia entre a liberdade religiosa prática e a garantida pela lei. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-dicotomia-entre-a-liberdade-religiosa-pratica-e-a-garantida-pela-lei/ Acesso em: 22 nov. 2024
Sair da versão mobile