Hermenêutica e investigação das controvérsias geradas sobre a lei 11.638/07 nas áreas contábil e jurídica
Claudia Zardo*
Robson Lopes Bezerra**
Aspecto intrigante na atualização de leis ultrapassadas é especificamente o fato de que nem sempre o que sai da cabeça do legislador é aplicável na prática e no dia-a-dia de profissionais que interagem com elas. Até que haja o devido ajuste, doutrinadores de várias áreas dissecam os textos normativos em busca de falhas, brechas e, em alguns casos, dos absurdos normativos. Um exemplo de como uma atualização de lei pode gerar interpretações conflitantes, bem como controvérsias – especificamente entre as correntes científicas e práticas das áreas jurídicas e contábeis – é a nova Lei das Sociedades Anônimas e Normas Internacionais de Contabilidade, ou seja, a Lei 11.638/07.
Para entender o objeto da controvérsia: desde janeiro, o Brasil passou a adotar os princípios internacionais de Contabilidade ditados pelo IASB (Conselho de Padrão Internacional de Contabilidade, na sigla em inglês).
A Lei nº. 6.404 de 1976, ao longo de 31 anos, cumpriu o seu papel ao regular as operações das sociedades anônimas e serviu de referência para as demais entidades, independentemente do porte ou da espécie. Entretanto, com o advento da globalização, alguns de seus dispositivos necessitavam de “ajustes”, possibilitando assim uma adequação aos padrões contábeis adotados mundialmente como a IAS – International Accounting Standard – e IFRS – International Financial Reporting Standards, bem como os de governança corporativa, que resultassem em maior transparência aos “patrimônios”, nas demonstrações contábeis.
Diante destas alterações, destaca-se que a Lei nº. 11.638 de 28/12/2007 intentou promover alterações profundas e necessárias na Lei nº. 6.404 de 1976; o que se esperava que resultasse em uma maior clareza nas informações aos interessados investidores (sócios e acionistas) e a terceiros (clientes, fornecedores, financiadores e governos).
Na prática, a nova lei contábil instituiu uma série de regras, como, por exemplo, a obrigação de que as empresas de capital fechado, mas de grande porte, tenham seus balanços submetidos a auditores independentes; no projeto de lei original, as empresas deveriam ainda publicar seus balanços, mas essa parte do texto foi suprimida.
As alterações das regras contábeis previstas na Lei das Sociedades Anônimas, a qual obriga as empresas limitadas de grande porte a seguirem certas normas impostas às companhias abertas, têm, no entanto, provocado diferentes interpretações no mercado, sejam elas relativas ao aumento da carga tributária para operações de fusão e aquisição ou à obrigatoriedade de publicações de demonstração de resultado do exercício.
Visão contábil
Alguns especialistas na área contábil acreditam que os aspectos práticos de implantação dos International Financial Reporting Standards (IFRS) para as empresas de capital aberto e uma visão mais abrangente sobre Contabilidade Internacional abrirão as oportunidades de captar mais recursos e investimentos no exterior.
Os outros avaliam a Lei de S/A com olhos bem mais críticos. É o caso do Doutor em Ciências Contábeis pela Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil e, em Letras, pela Samuel Benjamin Thomas University, de Londres; Vice-Presidente da Academia Nacional de Economia (Brasil) e da Academia Brasileira de Ciências Contábeis, Prof. Dr. Antônio Lopes de Sá.
Com o objetivo de apresentar mais esclarecimentos às incertezas derivadas das avaliações nas Normas Internacionais sobre a Lei nº. 11.638, Lopes de Sá vem publicamente pronunciando que não é contra normas, nem convergências, desde que fundamentadas na ciência, ou seja, que não cometam deslizes quanto à lógica. “Por exemplo, basta lembrar o caso do arrendamento mercantil. Entendo que a Estrutura referida já nasceu equivocada em matéria conceitual, sem qualidade científica e atentando contra as disposições legais em relação a fatos como o arrendamento mercantil, dito leasing. Com as reações que estão ocorrendo na Europa (que testemunhei), as que são evidenciadas nos Estados Unidos pela internet e as falhas que já apontei em vários artigos, tudo bem mostra que a propalada ‘convergência’ está bem comprometida”, aponta ele.
Em artigos³ o também cientista contábil tem feito outras duras críticas à Lei das S/A; destacando ainda os principais pontos críticos e prejudiciais da Lei, os quais, segundo ele, são: “A facilidade com que as ditas Normas Internacionais ensejam à fraude. A submissão a um padrão alienígena de Contabilidade, elaborado por uma entidade particular controlada por um pequeno grupo de pessoas, não me pareceu justificável e representa quebra de soberania, especialmente quando tal entidade se declara não submissa à lei (por paradoxal que pareça) e nem segue os ditames da doutrina científica da Contabilidade. O ponto crítico está na falta de obediência ao fixado em lei, nos riscos de fraudes e evasões fiscais”.
Lopes de Sá, que também recebeu o Prêmio Internacional de Literatura Científica e é autor de 176 livros e mais de 13.000 artigos editados internacionalmente, critica as Normas Internacionais de Contabilidade (IASB e NIC) em desrespeito aos princípios contábeis e alerta que as novidades da Lei das Sociedades por Ações aumentam a incerteza no campo das avaliações. “As demonstrações contábeis são preparadas e apresentadas para usuários externos em geral, tendo em vista suas finalidades distintas e necessidades diversas. Governos, órgãos reguladores ou autoridades fiscais, por exemplo, podem especificamente determinar exigências para atender a seus próprios fins. Essas exigências, no entanto, não devem afetar as demonstrações contábeis preparadas segundo esta Estrutura Conceitual. A forte pressão exercida pelas multinacionais para que prevalecessem os padrões anglo-saxões continua; a IASB é dirigida por elas mesmas; na realidade, simula-se um padrão europeu, mas, na prática ele não existe nesse particular. O que existe, sim, é reação de importantes países da Comunidade Européia contra as normas do IASB (França, Áustria, Espanha etc.)”, diz.
Segundo ele ainda, “as Normas Internacionais pregam a anarquia e a vítima são os incautos e os contadores que devem, por lei, ser obrigados a pregar mentiras. Basta ler o texto dos conceitos básicos aprovados pelo CPC e CVM, (Siglas corretas, ok? Código de Processo Civil e…?)sob a égide da Lei 11.638 para tudo entender. Está oficializada a desobediência civil e instalada a anarquia”.
Visão jurídica
Por outro lado, os contadores e os juristas em geral dividem-se em dois grupos: os favoráveis e os contrários à adaptação das normas contábeis de empresas em geral aos padrões de entendimento internacional.
Ao aduzir as idéias do cientista contábil para um integrante do mundo jurídico, percebe-se que a forma de interpretação do conjunto da lei pode ser diversa, conforme explica Adailson Lima e Silva – Prof. Dr. em Direito Processual Civil e advogado de carreira em um dos mais antigos e maiores bancos nacionais. “Nossa visão refere-se ao campo jurídico e, dentro deste, sob o prisma processual, de sorte que o diploma legislativo, a nosso talante, vem atender aos anseios da comunidade internacional, para adequar as normas contábeis particulares (utilizadas por algumas empresas) ao mundo neoglobalizado ao qual pertencem os demais integrantes da sociedade pós-moderna. Por força de nosso posicionamento ideológico somos favoráveis à adaptação dos balanços em geral, inclusive das empresas de capital fechado, aos padrões internacionais, de sorte que qualquer cidadão, em qualquer ponto do mundo, possa analisar a solidez de uma sociedade comercial de seu escritório, sem se deslocar até a sede da mesma”.
Lei e origem do problema
Observando as duas visões antagônicas, é compreensível que formações diferentes, seja na área do Direito ou Contábil, dão o tom também a interpretações diferentes. E para melhor entender como um dos maiores doutrinadores da área contábil vê essa dualidade na relação entre interpretações é que, por meio da maiêutica, objetivamos ainda, neste ensaio, melhor investigar se a origem da problemática está de fato na hermenêutica ou está instalada na linha tênue que separa a atuação e formação do advogado da do contador, bem como buscamos entender como as duas profissões e seus profissionais podem se fundir ou se confundir na área empresarial. Não pretendemos, entretanto, encontrar uma resposta universal ou uníssona para a hipótese levantada, mas sim, dar ao leitor o direito de chegar às suas próprias conclusões, o que poderá se feito por meio da análise do diálogo a seguir.
A visão que se tinha do contador de como uma figura que só cuida da burocracia fiscal, para atender ao governo, está acabando?
Lopes de Sá: A visão do contador, de há muito, não é mais apenas a fiscal, embora a questão fiscal seja sempre relevante. A valorização profissional ocorreu expressivamente a partir da década de 60, com a nova leva de bacharéis que ia amadurecendo. Não serão, todavia, as normas as responsáveis por mudanças expressivas.
Como separar a função do contador da do advogado na aplicação de normas empresariais?
Lopes de Sá – Ao contador cabe a responsabilidade da informação, quer em produzir, demonstrar e/ou explicar. Ao advogado, a da defesa do interesse do informado como “sujeito de direito”.
O serviço de assessoria empresarial, importante neste caso das S/A, é privativo de advogados ou contadores?
Lopes de Sá – Não. Cada profissional tem sua área fixada em lei. São úteis às empresas os administradores, economistas e inclusive engenheiros em determinadas áreas muito especializadas. Ao contador cabe tudo o que diz respeito ao patrimônio e a sua variação, nisso compreendida a parte executiva de informação e a cientifica de explicação, além dos pertinentes assuntos (análise, revisão, perícia, orçamento etc.). A reforma da lei, todavia, tangeu mais aos contadores, inclusive compelindo os mesmos a cumprir algumas determinações que não correspondem com a verdade dos fatos. Nas demonstrações para fins bursáteis, o contador é obrigado a falsear informes em face de seguir as Normas e não a lei, como é exemplo o caso do arrendamento mercantil ou leasing.
Os profissionais da área contábil estão preparados para as mudanças?
Lopes de Sá: Não vejo grandes problemas nem acredito que as referidas sejam uma “nova Contabilidade”. As Normas visam as Bolsas e, no Brasil, o número de empresas que tem ações em Bolsa é inexpressivo percentualmente. O que o contador deve se preocupar é em oferecer modelos de prosperidade às empresas. Esse o dever ético.
Como está sendo feita a integração do trabalho do contador com o advogado, já que a OAB proíbe que advogados autônomos tenham escritório em conjunto com outros setores como o da Contabilidade?
Lopes de Sá – A integração não implica associação. A classe dos advogados muito ligada está à contábil porque os interesses são comuns em muitos casos, especialmente no âmbito societário e fiscal. Entendo que tais profissões muito melhor se desempenham quando integradas para a solução de casos específicos alusivos à parte de patrimônio. Grande parte do Direito Civil é Direito Patrimonial e o objeto de estudos da Contabilidade é exatamente tal riqueza, sob o aspecto da utilidade da mesma na satisfação das necessidades dos empreendimentos. O que varia, no caso, é a forma de encarar a riqueza.
Escritórios de contabilidade costumam contratar advogados para trabalharem internamente ou fazem parcerias informais?
Lopes de Sá – Sim. Isso é de grande proveito e conheço bons escritórios que estão assessorados por advogados no que tange especialmente à parte processual.
Alguns setores empresariais indicam que precisam de advogados como se fossem executivos legais, ou seja, com capacidade de prevenir litígios e ainda com dom de conciliação para negócios e solução de problemas. No seu dia-a-dia confirma-se esta demanda?
Lopes de Sá – Em geral a parte de prevenção tem cabido ao contador e aquela de pleitear direitos, ao advogado. Um contador precisa entender de leis ligadas aos fatos comerciais tanto quanto um advogado e essa a razão de se transformar em um consultor, sem, todavia, poder agir no Judiciário. Nos Estados Unidos, assim como em países importantes na Comunidade Européia, é geralmente o contador quem assessora o empresário na parte relativa a negócios. A questão de formalização, todavia, é quase sempre feita pelos advogados.
Como é o trabalho interdisciplinar entre contadores e advogados no setor empresarial?
Lopes de Sá – As nossas Faculdades de Contábeis possuem cadeiras de Direito, embora nem todas as de Direito cuidem em formar culturalmente os advogados em matéria contábil. Nisso fica uma grande lacuna que muito prejudica o profissional do Direito em matéria de quesitação pericial, interpretação fiscal e de fatos relativos à movimentação da riqueza dos empreendimentos.
Notas de Referência e Bibliografia
1. Claudia Zardo é jornalista e acadêmica de Direito.
2. Robson Lopes Bezerra é editor da revista Netlegis.
3. As informações foram baseadas em entrevista publicada pela REVISTA CONTÁBIL & EMPRESARIAL FISCOLEGIS e devidamente autorizadas pelo autor para publicação neste. Outras informações e questionamentos foram complementados juntamente ao cientista contábil para a formatação deste ensaio.
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