Artigos Direito Administrativo

O que é uma Inteligência Artificial e como ela pode ser utilizada na Nova Lei de Licitações?

Eduardo Schiefler

João Victor Carvalho

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é, sem sombra de dúvidas, uma sociedade digital. Isso significa dizer que vivemos hoje em um mundo altamente tecnológico, comunicativo e informacional, com relacionamentos econômico-sociais cada vez mais complexos, difusos e virtuais. 

Para acompanhar o exponencial crescimento da tecnologia, todas as áreas do conhecimento precisam se manter atualizadas e buscar o estado da arte, inclusive a jurídica. Nesse campo, temos uma área em especial que regulamenta a relação entre cidadãos e o Estado e que, por essa razão, está diretamente ligada às demandas e necessidades de uma sociedade digital: o Direito Administrativo.

Nesse contexto, é evidente que o Direito Administrativo é fortemente impactado pelas inovações que, cotidianamente, surgem no âmbito dos mais variados setores da sociedade. Com efeito, um dos instrumentos de inovação mais comentados dos últimos anos, a Inteligência Artificial (IA), é o maior exemplo atual de tecnologia disruptiva capaz de revolucionar as atividades administrativas e a governança pública. 

A despeito das desconfianças e dos desafios que invariável e historicamente envolvem a assunção de tecnologias disruptivas, o fato é que, entre os benefícios que a Inteligência Artificial pode proporcionar às relações público-público e público-privadas, podemos citar como as principais a capacidade de conferir maior celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade às rotinas administrativas e às ações dos particulares que interagem com a administração pública.

Mas como a administração pública pode se utilizar dessa tecnologia para melhorar suas tarefas? Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender o que pode ser considerada uma Inteligência Artificial.

I) O que é Inteligência Artificial?

Compreender o que é Inteligência Artificial é, na verdade, uma tarefa árdua, uma vez que não existe uma denominação em comum para esse tipo de tecnologia. A própria história da tecnologia nos dá uma pista sobre a dificuldade de definição dessa tecnologia, uma vez que várias ferramentas que, antigamente, poderiam ser consideradas inteligentes (a exemplo da calculadora), hoje podem não mais ser assim vistos por diversos estudiosos.

Apesar de não existir uma definição universal sobre o que é IA, esse fato não é necessariamente encarado como negativo, tendo em vista que a ausência de definição rígida permitiu e permite que a tecnologia se desenvolva de forma mais difusa.

Um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre IA foi Alan Turing, conhecido como o “Pai da Computação”, o qual desenvolveu o “Teste de Turing”. Nesse teste, um ser humano teria de avaliar se os textos fornecidos foram feitos por uma máquina ou por um humano, e caso a máquina conseguisse “se passar por uma pessoa”, ela passaria com sucesso no teste.

Hoje, a título de pesquisa, entende-se por mais correto subdividir a área da Inteligência Artificial, a exemplo do que foi feito pela IBM em seu artigo intitulado “What is artificial intelligence?” (O que é Inteligência Artificial?). Dessa forma, nós podemos entender IA não como algo geral, mas que possui suas próprias subdivisões e cada qual para um fim: a (i) Narrow Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Limitada), ou também chamada de Weak Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Fraca); e (ii) Strong Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Forte).

De maneira simplificada, pode-se entender que uma IA Fraca (Narrow AI) é treinada para trabalhar com dados e situações específicas, ou seja, ela é especializada na realização de tarefas específicas. 

Por exemplo, a maioria de nós temos hoje em nossos bolsos sistemas de IA Fraca, como é o caso de programas de reconhecimento facial/de voz de nossos smartphones. A siri, assistente virtual dos produtos da Apple, é um exemplo de IA Fraca. Apesar de aparentar possuir uma “consciência” pela alta interação com o usuário, os assistentes virtuais de voz basicamente processam nossa voz e linguagem e, a partir disso, se utilizam desse processamento para buscar, em mecanismos de pesquisa, resultados para as demandas do usuário.

Isso é feito pelo que se denomina de Machine Learning (aprendizado de máquina), aplicação pela qual as IAs, por meio do acesso aos sistemas de dados, podem “aprender” por si mesmas a interpretar e aprender com base nos dados e padrões. Isto é, aprende-se com a experiência. Assim é que, toda vez que perguntamos algo para um assistente de voz e ele erra, dificilmente o erro acontecerá de novo, uma vez que a IA buscará se adaptar e aprender com a experiência vivenciada. 

Entretanto, não deixe se enganar pela facilidade com que temos acesso a tais dispositivos inteligentes, uma vez que as IAs Fracas são mecanismos altamente complexos e que processam enormes quantidades de dados. Isto é, apesar de vivermos rodeados de sistemas inteligentes, isso não os tornam simples de serem desenvolvidos e aperfeiçoados. 

Aliás, um exemplo que demonstra que a IA não é algo da terceira década do século XXI é que, em 2017, o Google desenvolveu uma IA Fraca denominada “AlphaZero AI”, que ensinou a si mesma a jogar xadrez em quatro horas e ganhou do programa de IA que até então era campeã do mundo em xadrez, o Stockfish 8.

A antítese para uma IA Fraca seria uma IA Forte (Strong AI), que em termos gerais seria capaz de realizar várias funções, eventualmente ensinando a si mesma como resolver novos problemas. Podemos imaginar esse tipo de IA como as pensadas nos filmes Sci-fi, como o caso de “O Exterminador do Futuro” ou “A.I. – Inteligência Artificial”, e de maneira bem pessimista em “2001: Uma Odisséia no Espaço”. 

Esse tipo de IA teria “autoconsciência” e não necessitaria de humanos para que se desenvolvesse. Na verdade, poder-se-ia considerar que a IA tomaria suas “próprias decisões” e teria sua “própria mente”, em inteligência comparativamente igual ou até maior a dos humanos – como é o caso das Artificial Super Intelligence (ASI), que logo mais mencionaremos. Ou seja, podemos entender esse tipo de IA como aquelas que os críticos tanto temem dominar o mundo e os seres humanos. A grande questão é que os caminhos para o desenvolvimento de IAs Fortes têm cada vez tomado mais forma. Não se pode dizer ainda que existem IAs desse tipo, mas já não se pode mais afirmar que se trata de uma fantasia.

E, como digna da complexidade que acompanha o assunto, a Strong AI ainda pode ser dividida em mais duas outras: a Artificial General Intelligence (AGI) (Inteligência Artificial Geral) e Artificial Super Intelligence (ASI) (Super Inteligência Artificial), sendo que “Uma AGI é uma forma teórica de IA na qual sua inteligência seria equivalente à de um humano, sendo autoconsciente com a habilidade de resolver problemas, aprender e planejar o futuro. Já uma ASI, também ainda teórica, teria uma inteligência muito superior a um humano.

Diante de tudo o que foi exposto, compartilhamos da conclusão de Fabiano Hartmann Peixoto e Roberta Zumblick Martins da Silva, segundo os quais uma boa maneira de se compreender o termo Inteligência Artificial é “como um termo guarda-chuva: que abriga uma série de aplicações e tecnologias diferentes”, cada qual para uma destinação específica.

No mais, para a finalidade que se quer dar à Inteligência Artificial como um auxiliador da Administração Pública, entendemos como adequado nos restringir à aplicação da IA Fraca (Narrow AI), ou seja, um sistema que seja treinado e focado no processamento de padrões e dados para a realização de tarefas específicas.

II) Como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada pela a Administração Pública em suas contratações com particulares?

Antes de falarmos da aplicação das IAs às compras públicas, é pertinente que façamos o destaque para a inclusão da inovação tecnológica que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) fez no mundo das contratações públicas. 

Por exemplo, a Nova Lei de Licitações estabeleceu, no seu artigo 11, inciso IV, o incentivo à inovação e o desenvolvimento nacional sustentável como objetivo dos processos licitatórios. Essa previsão, apesar de não ser uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro, é um forte estímulo para a consolidação da inovação nas contratações públicas. A administração pública deve sempre buscar inovar, facilitar e dinamizar as compras públicas, modernizando e aproximando as licitações da tecnologia e da realidade do mercado.

A Nova Lei de Licitações também estabeleceu como regra a tramitação eletrônica do processo administrativo (art. 17, §2º), bem como criou o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP. Ambas as medidas demonstram o espírito da nova legislação de se valer de ferramentas tecnológicas para modernizar o regime jurídico de licitações e contratos, o qual historicamente sempre foi reconhecido por ser analógico e extremamente burocrático. 

Além disso, tanto a utilização de processos administrativos eletrônicos como a criação do PNCP permitem que sistemas que operam mediante Inteligência Artificial sejam desenvolvidos e utilizados pela administração pública e por particulares, especialmente na atividade de controle interno, externo e social das compras públicas, sem falar nas próprias rotinas internas dos órgãos públicos.

Dito isso, considerando o caráter inovador da Nova Lei de Licitações, é essencial que nós entendamos como uma Inteligência Artificial pode ser utilizada, efetivamente, para o benefício da Administração e seus administrados.

III) Como uma IA pode ser usada nas contratações públicas?

Apesar da recente empolgação com as possibilidades de uso de IAs – como o ChatGPT, desenvolvido pela Open AI –, muito ainda há o que se discutir sobre o seu uso para substituição de operadores do direito no dia a dia, uma vez que a sensibilidade e análise humana são fundamentais para o Direito e sua prática, especialmente em se tratando da administração pública e da sua relação com os cidadãos.

Contudo, por certo é que uma Inteligência Artificial é muito útil na substituição de seres humanos em processos mecânicos e repetitivos, os quais se utilizam de dados e padrões para sua consecução, a exemplo de minutas de recursos, análise de preços e elaboração de relatórios. A execução dessas atividades pode, hoje, ser auxiliada por ferramentas de IA, sem necessariamente substituir o operador humano – que ainda terá a essencialidade de sua percepção e criatividade humanas.

Um dos motivos que permitem que a IA auxilie os humanos em tais atividades é o Processo de Linguagem Natural (Natural Language Processing – NLP), que, em síntese, significa a habilidade das máquinas de “ler” ou “entender” a linguagem humana, sendo capaz de “traduzir” o que nós falamos e escrevemos para a linguagem das máquinas, como a Java e Python, entre outras. E não só uma tradução literal é feita, como também a análise do contexto, preferências, e demais complexidades de interpretação e diálogo que os sistemas usam para refinar cada vez mais a capacidade de resposta e processamento de dados, o que é chamado, grosso modo, de deep learning.

Assim é que, ao estabelecer o processo administrativo eletrônico como regra, a Nova Lei de Licitações não só tem o potencial de tornar as compras públicas mais céleres e eficientes, como também facilita a disponibilização, seja interna ou externa, de dados e informações que potencializam o uso de IA, por exemplo, que podem atuar como verdadeiros agentes fiscalizadores dos procedimentos licitatórios, seja dos órgãos de controle interno e externo, seja dos cidadãos que possuem o interesse de fiscalizar a atividade administrativa.

Somado a isso, a criação de uma plataforma online de licitações públicas, o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, que tem entre suas finalidades a centralização de diversas informações relevantes relacionadas com as contratações públicas regidas pela nova lei, em formato de dados abertos, permitindo que as ferramentas de IA atuem e auxiliem as atividades de controle nas compras públicas. 

Aliás, tal possibilidade está prevista, inclusive, no artigo 169 da Nova Lei de Licitações, que consigna expressamente a adoção de recursos de tecnologia da informação para as atividades de controle das compras públicas:

Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa

Por fim, listamos abaixo alguns exemplos de uso de Inteligência Artificial no ambiente licitatório, com o intuito de demonstrar como uma IA poder ser utilizada para ajudar no controle das compras públicas:

(i) estruturar dados inicialmente não estruturados, a fim de facilitar a análise e o processamento por máquina; 

(ii) organizar automaticamente os documentos dos processos administrativos; 

(iii) aplicar a técnica de ocerização de arquivos em imagem para transformá-los em formato texto pesquisável; 

(iv) realizar o cruzamento de dados para apurar possíveis óbices à participação de empresas em licitações em andamento ou à contratação ao final; 

(v) reduzir a termo, de forma automatizada, as sessões públicas gravadas em áudio e vídeo; 

(vi) efetuar pesquisas de preços e verificar orçamentos, propostas e cobranças, a fim de identificar possíveis superfaturamentos ou sobrepreços; 

(vii) apoiar o processo de redação de relatórios, decisões e documentos em geral, com correção de texto e sugestão de jurisprudência e doutrina que podem ter relação com o caso concreto; 

(viii) empreender a anonimização de possíveis dados sensíveis e sigilosos, em atenção às regras impostas pela Lei de Acesso à Informação e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/2018); e 

(ix) criar acervos de decisões administrativas e de modelos de atos administrativos a serem compartilhados entre os servidores públicos e as unidades de controle dos órgãos e das entidades.

IV) Conclusão

Esse texto teve por objetivo apresentar, de forma didática e minimamente técnica, a Inteligência Artificial e como ela pode contribuir para melhorar os processos de contratações públicas. Basicamente, conclui-se que o uso da IA pode tornar os procedimentos licitatórios mais céleres e efetivos, cumprindo com o princípio da eficiência, baluarte da administração pública. 

Com a Nova Lei de Licitações, a inovação como objetivo nas compras públicas foi oficializada, criando um ambiente propício para o uso de sistemas inteligentes e aumentando as chances de que as alterações trazidas pela nova legislação incrementem a celeridade, eficiência, auditabilidade, transparência e confiabilidade das compras públicas.

O Portal Nacional de Compras Públicas – PNCP e a consolidação do processo administrativo eletrônico como regra nos processos de contratações públicas foram marcos importantes para a aplicação de novas tecnologias e a adaptação do ambiente licitatório às mudanças. 

Certamente, ainda há muito a ser explorado na evolução das IAs e o seu uso pela administração pública, mas é fato que já vem sendo utilizado no âmbito público e pelos órgãos de controle, sendo atualmente um importante instrumento que contribui para a governança das contratações públicas.

Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/o-que-e-uma-inteligencia-artificial-e-como-ela-pode-ser-utilizada-na-nova-lei-de-licitacoes/

Como citar e referenciar este artigo:
SCHIEFLER, Eduardo; CARVALHO, João Victor. O que é uma Inteligência Artificial e como ela pode ser utilizada na Nova Lei de Licitações?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2023. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/o-que-e-uma-inteligencia-artificial-e-como-ela-pode-ser-utilizada-na-nova-lei-de-licitacoes/ Acesso em: 03 out. 2024
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