Desvios orçamentários
Kiyoshi Harada*
O presente artigo é escrito de forma objetiva e didática para compreensão de todos, com a finalidade de despertar a cidadania, única forma de desfazer o impasse político-institucional em que se acha mergulhado o nosso país. O orçamento anual é um instrumento de exercício da soberania popular à medida que representa um corolário do princípio da legalidade tributária, isto é, receitas e despesas são autorizadas pelo povo, por meio de seus legítimos representantes eleitos.
Por isso, tem o seu processo legislativo minudentemente regulado na Constituição. A iniciativa do projeto é do Executivo (art. 165, III da CF) devendo conter os três orçamentos, o orçamento fiscal da União, o de investimento das estatais e o de seguridade social (§ 5º do art. 165 da CF) e outros requisitos previstos nos §§ 6º a 8º. Esse projeto de lei é enviado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República (art. 84, XXIII da CF), onde é submetido à apreciação da Comissão Mista de Senadores e Deputados para, na forma do regimento comum, emitir parecer prévio. As emendas são apresentadas nessa Comissão que sobre elas emitirá um parecer para decisão do Plenário das duas Casas. Só que, na forma dos §§ 3º e 4º do art. 166 da CF, o poder de emendar é limitadíssimo. Na prática, as emendas só poderiam versar sobre correção de erros aritméticos ou omissões relacionadas com os dispositivos dos textos do projeto de lei. Então, pergunta-se, como se explica a declaração pública do senhor Presidente da República, transmitida pela mídia com a maior naturalidade, de que liberou para cada parlamentar o montante de X reais para emendas? Parece que a política do ‘é dando que se recebe’, inaugurada na chamada década perdida de 80, hoje, incorporou-se na cultura política brasileira, tornando letra morta o princípio da separação dos Poderes, ironicamente, incluído no rol de cláusulas pétreas. Ao invés de promulgar o projeto de lei orçamentária se não devolvido ao Executivo até o final da sessão legislativa (22 de dezembro), ignorando eventuais emendas já aprovadas pelo Congresso, o senhor Presidente prefere continuar negociando com os parlamentares. Por causa disso, na década de 90, tivemos um orçamento anual aprovado no 3º trimestre do exercício em curso. Por que isso? Seria para justificar a perpetuação do Fundo Social de Emergência, criado em uma situação excepcional em que o Congresso não teve tempo para votar a lei orçamentária de 1994, por conta do processo de impeachment? De lá para cá nunca mais tivemos processo de impeachment a roubar o tempo necessário dos congressistas. Então, pergunta-se, por que prorrogar aquele Fundo, sucessivamente, com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal e, agora, sem nome, conhecido pela sigla DRU? Essa DRU, coloca mais de 100 bilhões para gastar, não segundo os elementos de despesas fixados na lei orçamentária, mas a critério do Executivo tornando difícil, senão impossível o controle desses gastos. É uma excrescência dentro do Direito Orçamentário. Mas, o pior efeito do encampamento governamental de ‘emendas’ incabíveis dos parlamentares é o deslocamento do lobb das empreiteiras do Executivo para o Legislativo. É muito mais fácil exercer influências junto à classe política do que junto aos técnicos do Executivo. É a proclamação do óbvio que em nada deslustra os parlamentares.
Porém, o desrespeito à Constituição não para por aí. Ele prossegue na fase de execução do orçamento assim aprovado. Já se tornou rotina e até mesmo sinônimo de governante sério, por conta da falta de esclarecimento, o famoso contingenciamento de despesas aplicando-se, de forma absurda, um corte linear de 10%, de 20% ou mais sobre todas as dotações previstas na lei orçamentária, para oportuna utilização que, quase sempre implica desvio de finalidade. Isso vem acontecendo com as verbas destinadas ao pagamento de precatórios judiciais, de verbas destinadas à conservação e manutenção de rodovias (com o dinheiro da CIDE), de verbas destinadas à melhoria dos aeroportos etc. etc. Você já imaginou o contingenciamento de verba destinada à merenda escolar para liberá-la apenas no final do ano, quando os beneficiários poderão tomar dez refeições diárias? Como ninguém toma dez refeições diárias é fácil imaginar que a verba foi parar em outro lugar! Do contrário, deveria ocorrer superávit no final do exercício! Ora, esse contingenciamento configura o maior atentado ao princípio de fixação de despesas (art. 165, VIII da CF) incorrendo o governante em crime de responsabilidade política (art. 85, VI da CF). Incorporando essa prática deletéria, a LRF veio prescrever em seu art. 5º, III a obrigatoriedade de a lei orçamentária conter ‘reserva de contingência’ para atendimento de passivos contingentes. Com isso, vibrou um golpe mortal contra o princípio constitucional da fixação de despesas. Para realização de despesas imprevistas ou imprevisíveis, decorrentes de calamidades públicas, por exemplo, o Executivo deve solicitar ao Legislativo a abertura de crédito adicional especial (art. 167, V da CF), sendo absolutamente vedada a concessão ilimitada de créditos (art. 167, VII da CF). Ainda que constitucional fosse a ‘verba de contingência’ ela jamais poderia ser constituída pela aplicação indiscriminada de um percentual de corte incidindo sobre todas as dotações.
Ultimamente, houve aperfeiçoamento do critério de ‘corte’. Ele vem recaindo sobre as verbas correspondentes às ‘emendas’ feitas pelos parlamentares, que se sentem enganados, e com justa razão. É inacreditável e ao mesmo tempo hilariante, mas é o que vem acontecendo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Se isso não for perda de referencial ético-moral não saberei que nome dar a ele.
Ao invés de falar em extinção da Comissão de Orçamento para a qual a Constituição reservou importante papel de auxiliar o controle externo da fiscalização e da execução orçamentária, não seria o caso de o Legislativo e o Executivo voltarem a atuar nos estritos termos de suas respectivas atribuições constitucionais, prestigiando e fortalecendo o princípio da independência e harmonia dos Poderes? Para quê manter essa relação promíscua, que só serve para fomentar a corrupção, desprestigiar as instituições e enriquecer empresários desonestos? Nunca se deve esquecer que a desmoralização das instituições políticas é um terreno fértil para a implantação do Estado Policial, que já começa a dar sinal de vida .
Estou convencido de que somente o exercício pleno da cidadania, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, terá o condão de influenciar governantes e legisladores no sentido de desenvolver a cultura do respeito à Constituição e das leis que eles próprios elaboram, bem como valorizar a seriedade, a disciplina, a honestidade e o trabalho e a sua eficiência.
* Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do IASP. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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