A arbitragem vem penetrando nas atividades empresariais de forma lenta, mas segura. Vem encontrando realmente resistências por parte de vários setores, contornando essas situações conflitantes e se impondo como método alternativo de solução de disputas entre pessoas jurídicas e naturais. Recentemente, surgiu a aplicação da arbitragem em delicada e importante área da atividade econômica, com aspectos conflitantes, que, porém, foi estabelecido por variadas normas jurídicas.
Estamos nos referindo à aplicação da arbitragem na área de distribuição de energia elétrica, desde os produtores até os consumidores, tocando mais precisamente aos intermediários-distruibuidores. O ponto delicado dessa aplicação é a presença de empresas estatais, ou seja, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, até então colocadas fora do sistema arbitral de resolução de litígios. A Lei da Arbitragem, isto é, a Lei 9.307/96, também chamada Lei Marco Maciel, não proíbe as empresas estatais de se integrarem na arbitragem. A discussão agora gira na possibilidade dessas empresas transacionarem seus direitos e estabelecer acordo com outras pessoas na solução de divergências entre elas.
O que o artigo 1º da Lei Arbitral declara é que as partes envolvidas numa divergência poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Não estabelece, porém, os devidos parâmetros para esses direitos. A interpretação doutrinária, entretanto, prevê os conceitos dessa expressão. Perante nosso direito, direitos patrimoniais disponíveis são aqueles que admitem transação, ou seja, são direitos discutidos juridicamente entre as partes do conflito e ambas poderão abrir mão de parte desses direitos em benefício de um consenso entre elas. É o que acontece nas audiências judiciais: o juiz consulta as partes sobre a possibilidade de um acordo e elas discutem um denominador comum, cada parte cedendo um pouco de suas exigências para chegar a ele.
Direitos patrimoniais disponíveis são aqueles que envolvem valores financeiros, ou seja, que representem dinheiro. São, por exemplo, valores que alterem o patrimônio de empresa e vão alterar o balanço dela. Em termos mais completos, são valores que envolvem dinheiro. Valores não patrimoniais não podem ser discutidos em arbitragem, como os valores morais, do tipo da honra, privacidade, bom conceito. É também o caso de valores culturais, a não ser que eles sejam objeto de exploração econômica, envolvendo dinheiro, como os direitos autorais ou de Propriedade Industrial.
O Código de Processo Civil da Itália, ao regulamentar a arbitragem, dá um traço identificador de direitos indisponíveis: são aqueles que sendo discutidos na Justiça exigem a presença do Ministério Público. É o que ocorre com o direito de família, de menores, do Poder Público, dos direitos de personalidade. Por isso, uma questão de direito de menores não pode ser resolvida pela via arbitral, uma vez que deve contar com a interveniência do Ministério Público. As questões de Direito Público, como problemas referentes a impostos, à contribuição ao INSS são pertinentes aos direitos indisponíveis; o Governo não pode transacionar com seus direitos e nem pode fazer acordo em juízo. Não só é proibido pela lei, como seria praticamente impossível; exigiria milhares de conciliadores. As empresas estatais sofrem dessa inibição; se fizesse acordo com alguém, abriria precedente e faltaria equidade. Fatalmente seriam acusados de favorecimento. A lei, contudo, não veda textualmente a possibilidade de discutirem suas questões pela arbitragem.
É o que acontece na área da energia elétrica, bastante delicada e complexa, regulada por um cipoal legislativo constituido de quinze leis, muitos decretos e normas reguladoras. Essa questão tornou-se muito relevante, devido a vários fatores. Um deles foi o apagão ocorrido em São Paulo, numa noite em que a capital e várias regiões do Estado ficaram totalmente às escuras. Esse fenômeno se deu em 2001 e se repetiu em 2002. Foi um brado de alerta, e o Governo brasileiro se alertou aos problemas da energia elétrica, adotando várias medidas e regulamentando suas ações e as atividades específicas.
Em consequência, surgiu a Lei 10.433 de 2002, instituindo novo regime jurídico na área econômica da energia elétrica. A principal mudança foi a desverticalização das atividades dessa área. Existiam antes poucas empresas dedicadas a essa atividade, quase todas estatais. Havia verticalização partindo da empresa produtora e passando para algumas subordinadas até a energia elétrica chegar ao consumidor.
A Lei 10.433 horizontalizou a produção e distribuição da energia elétrica em vários segmentos e grande número de empresas privadas e algumas públicas foram privatizadas. Dividiu a atividade em quatro segmentos especiais: geração, transmissão, distribuição e comercialização. O setor produtivo mais considerado foi o de comercialização, cujas atividades foram consideradas como a transferência de propriedade da energia elétrica, tendo como destinatário final o consumidor. Hoje, a área é coberta por grande número de empresas, dispostas horizontalmente, encarregando-se de preferência, no setor de distribuição.
A supervisão geral das atividades caberá à Agência Nacional de Energia Elétrica-ANEEL, autarquia federal, que, por sua vez, criou a Câmara de Comercialização da Energia Elétrica-CCEE, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, regulada e fiscalizada pela ANEEL. Essa questão foi mais bem regulamentada pela Lei 10.848, de 2004, que, entre os agentes da CCEE, incluindo-se as empresas públicas e sociedades de economia mista, concessionárias, permissionárias e autorizadas, vale dizer, geradores, transmissores, distribuidores, e comercializadores.
Em seguida, esses agentes celebraram convenção arbitral coletiva, com cláusula compromissória. Essa convenção foi homologada pelas ANEEL, por meio da Resolução Homologatória 531 de 2007. A convenção e a homologação foram declaradas legítimas pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
A instituição especializada destinada a dirimir os conflitos entre os agentes de distribuição de energia elétrica foi a Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, órgão criado pela Fundação Getúlio Vargas. Eis aqui uma série de decisões de longo alcance tomadas no âmbito da arbitragem. Por essas decisões o Governo Federal, por seus órgãos competentes reconheceu a via arbitral como a mais adequada para resolver problemas dentro de significativa área da economia nacional. E ainda mais, arrola empresas públicas e sociedades de economia mista como sujeitos de direito na adoção da arbitragem.
Essas decisões foram duramente atacadas pelos opositores da arbitragem, que intentaram Ação direta de Inconstitucionalidade perante o Superior Tribunal de Justiça, mas viram seus esforços frustrados, pois a egrégia corte deu pela constitucionalidade das medidas.
Esperaremos os resultados e confiamos na eficácia dessas medidas, porquanto a arbitragem vem sendo aplicada há mais de 3.000 anos com amplo sucesso em todo o mundo e em diversas nações.
* Sebastião José Roque – Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo. Advogado e professor de direito – Autor da primeira obra sobre Arbitragem, publicada logo após a Lei 9.307/96, denominada ARBITRAGEM – A Solução Viável, publicada pela Ícone Editora