A 25ª Hora Tributária
Ives Gandra da Silva Martins*
Virgil Gheorghiu, notável autor romeno, escreveu famoso romance sobre a 2ª. guerra mundial, intitulado a “25ª hora”. Um dos episódios do livro narra os julgamentos ocorridos no campo de concentração, em que as perguntas dirigidas aos prisioneiros eram sempre as mesmas e quaisquer que fossem as respostas, a decisão proferida era rigorosamente igual.
Sugeriu, então, a personagem chave desse episódio (Triyan Koruga) que a solução ideal seria –para efeitos de economia processual– permitir que os prisioneiros fossem inquiridos por uma máquina, que já teria a condenação gravada, pois o que menos importava, naqueles interrogatórios, era a defesa dos acusados.
A ironia do romancista do único país latino da região, aplica-se, infelizmente, à atual realidade brasileira , em matéria tributária.
Hoje, quem manda na Receita são os computadores. São eles que aceitam ou não, segundo seus programas, as respostas e as justificações dos contribuintes, acusando-os de sonegadores, sempre que os pagamentos por eles realizados não estiverem rigorosamente iguais aos dados com que foram alimentadas as máquinas pelos técnicos em informática, que, no mais das vezes, nunca se especializaram em direito tributário.
E, com isto, os computadores, que vieram para reduzir o custo da administração pública e dos contribuintes, não só pioraram consideravelmente a vida de ambos, como entulharam o Poder Judiciário de questões inúteis, onerosas, em que tributo já pago, continua sendo cobrado, com enormes prejuízos para todos.
Cito exemplo do que tem ocorrido reiteradamente em São Paulo. Se o computador rejeitar qualquer pagamento –mesmo que feito tempestiva e rigorosamente de acordo com a lei— será enviado um DARF para que o contribuinte quite o “débito” já pago sob pena de inscrição na dívida ativa. Depois de esperar na fila, madrugada a dentro, por uma senha, para informar que nada deve, o cidadão será informado de que, por estarem os agentes fiscais subordinados aos computadores — seu chefe hierárquico–, nada poderão fazer. Se os pagamentos realizados não forem compatíveis com os dados inseridos no programa, restará ao perplexo contribuinte proceder ao “envelopamento”, ou seja, colocar todos os comprovantes de recolhimento do tributo e outros documentos que embasem a justificativa contra a exigência dentro de um envelope, entregando-o, mediante protocolo, na Receita Federal, para que esta, quando tiver tempo, os examine.
Como, entretanto, a arrecadação não pode esperar, antes mesmo de o envelope apresentado pelo contribuinte ser analisado, o seu pretenso “débito” já será comunicado à Procuradoria da Fazenda Nacional para inscrição na dívida ativa e ajuizamento da execução.
Durante os tramites dessas providências, o contribuinte ficará privado de certidão de regularidade fiscal – documento indispensável para o exercício regular de inúmeras atividades da pessoa física e da pessoa jurídica, como, por exemplo, vender bens, participar de licitações, receber valores por serviços prestados a entes públicos, etc.
Por força da “insensibilidade” das máquinas, o serviço da Procuradoria da Fazenda Nacional fica acumulado, cumprindo-lhe proceder à cobrança judicial dos supostos débitos objeto de inscrição. Assim, mesmo que o contribuinte tenha realizado o envelopamento, o débito pode ser ajuizado e seus bens penhorados, antes mesmo que os documentos que apresentou sejam analisados. Se os bens do contribuinte forem penhorados para pagar dívida que já pagou, sugere-se que ele vá à Receita Federal, para que seu envelope seja, então, aberto e examinado, imediatamente.
Em outras palavras, porque a ditadura dos computadores impõe programas falhos e incompletos, o contribuinte adimplente, que tudo pagou, é submetido à tortura de permanecer horas na fila, a ter que deflagrar procedimentos que são olimpicamente ignorados, a ficar privado de documento indispensável para inúmeros atos da vida civil e comercial (certidão de regularidade fiscal), a sofrer constrições patrimoniais que lhe retiram a disponibilidade de bens. A máquina judiciária é acionada inútil e indevidamente. E a Administração Pública perde tempo e dinheiro, podendo, inclusive, ter que arcar com a sucumbência pela cobrança de importâncias que se encontram nos cofres públicos desde o vencimento do tributo! Tudo porque os programas são falhos, incapazes de certificar algo extremamente simples: ou seja, se o dinheiro do contribuinte entrou ou não entrou nas burras estatais. De rigor, talvez tenham razão. Se as máquinas podem complicar a vida do contribuinte, para que simplificá-la.
SP., 15/12/2004.
* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.
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