Prisão por Dívida – Depositário Infiel – Alienação Fiduciária
Sergio Wainstock*
Ao julgar as hipóteses de prisão civil, o Supremo Tribunal Federal começa a redesenhar a posição dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. A importante questão esteve em pauta na sessão do dia 12 de Março de 2008, como fundo principal do julgamento da prisão civil por dívida nos contratos de alienação fiduciária.
Na verdade, a Constituição Federal do Brasil permite a prisão civil apenas para o depositário infiel e para o devedor voluntário de pensão alimentícia.
Oito ministros do Supremo Tribunal Federal já se pronunciaram pelo descabimento da prisão do depositário infiel, em processos ainda pendentes de julgamento por aquela Corte. Muito mais do que dizer que a prisão na hipótese de dívida em alienação fiduciária é inconstitucional, oito dos nove ministros que votaram derrubaram a prisão também para o depositário infiel. O fundamento para extinguir a prisão civil do depositário infiel são os tratados internacionais de direitos humanos.
Durante quase duas horas, o ministro Celso de Mello leu seu voto-vista em que chama a atenção pela necessidade de diferenciar os tratados internacionais sobre direitos humanos dos outros. Para ele, os tratados internacionais sobre assuntos em geral têm o mesmo valor da legislação ordinária. Já os que tratam de direitos humanos merecem uma atenção especial.
O ministro entende que todos os acordos dos quais o Brasil é signatário e que tratam da proteção aos direitos humanos têm valor constitucional, desde que não contrariem a Constituição Federal. Na prática, é o mesmo que dizer que eles têm os mesmos efeitos de emendas constitucionais: podem modificar dispositivos da Constituição desde que não violem as garantias fundamentais.
Esse efeito constitucional atinge os tratados de direitos humanos de diferentes maneiras, de acordo com a época em que foram aprovados, explica Celso de Mello. Aqueles assinados pelo Brasil antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 têm índole constitucional, pois foram formalmente recebidas pelo parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição. O dispositivo diz: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
O ministro observa que o mesmo dispositivo se aplica para os tratados assinados a partir da promulgação da Constituição até a inclusão da Emenda Constitucional 45/04. Depois da inclusão da emenda, os tratados precisam ser votados de acordo com as regras das propostas de emendas constitucionais para fazerem parte da Constituição.
Com esse entendimento, o Pacto de São José da Costa Rica, ao qual o Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992, passou automaticamente a ter os mesmos efeitos de emenda constitucional. Ele proíbe a prisão civil, exceto para o devedor voluntário de pensão alimentícia. Por isso, observou o ministro Celso de Mello, não é mais constitucional a prisão do depositário infiel. O ministro Gilmar Mendes divergiu do ministro apenas para considerar outro grau hierárquico aos tratados, mas com efeitos práticos semelhantes. Para ele, os tratados estão abaixo da Constituição Federal e acima da legislação infraconstitucional . Para ganharem caráter constitucional, têm de passar por votação do Congresso Nacional, com as mesmas regras para as propostas de emenda constitucional. Pela tese de Gilmar Mendes, a prisão do depositário infiel continua existindo no plano constitucional, mas o Pacto de São José da Costa Rica revoga a lei que a regulamenta. Ela cai, então, em um vazio e não pode mais ser aplicada.
Além de Gilmar Mendes e Celso de Mello, mais seis ministros votaram contra a prisão do depositário infiel: Marco Aurélio, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O relator, ministro Cezar Peluso, divergiu da maioria. O ministro Menezes Direito pediu vista e suspendeu o julgamento.
Seguindo o mesmo entendimento, tem-se notícia que a 4ª Câmara de Direito Comercial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina concedeu habeas corpus a um comerciante que tinha contra si um mandado de prisão por ser depositário infiel.
O desembargador João Henrique Blasi, relator do caso, entendeu que o Brasil, na condição de signatário do Pacto de São José da Costa Rica, aboliu a possibilidade de prisão por dívida a não ser em casos que envolvam pensão alimentícia.
“A privação da liberdade, em casos que tais, não se harmoniza com o moderno Estado Democrático de Direito”, interpretou desembargador de Santa Catarina. Para o relator, outro deve ser o meio pelo qual o credor poderá buscar o cumprimento da obrigação (Habeas Corpus 2008.006761-9)
E, também, que outros cidadãos conseguem se livrar de prisão por dívida.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso concedeu Habeas Corpus preventivo a dois devedores de Rondonópolis (MT) intimados a efetuar depósito para pagamento de dívidas em 48 horas, sob pena de ser expedido mandado de prisão contra eles. Para a 2ª Câmara Cível, a prisão civil só é permitida em caso de falta de pagamento de alimentos. No caso de dívida de outra natureza, a prisão do indivíduo viola o Pacto Internacional de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, argumentou-se (HC 99.311/2007).
Como já se mencionou, desde 1992, por decreto presidencial, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica. O artigo 7º da convenção veda a prisão civil do depositário infiel, somente permitindo-a na hipótese de dívida alimentar. “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”, diz o referido dispositivo.
Muito a propósito assinalou CARLOS MAXIMILIANO, “a prisão por dívidas desapareceu, há muito tempo, do Direito Positivo dos povos cultos; pois seria desumano privar alguém da liberdade, por não ter dinheiro, como aconteceu a DICKENS, na Inglaterra, e foi a tortura de BALZAC, na França´´, ou seja, todos os códigos modernos, dentre os quais se inclui o nosso, não a admite; enseja-a para o depositário e o alimentante nos casos de faltas espontaneamente assumidas.
No Brasil, a execução patrimonial sobre os bens do devedor foi a orientação adotada por todas nossas contemporâneas Cartas Políticas, culminando pela promulgada no ano de 1988, através da qual se admitiu apenas a prisão do devedor de alimentos e do depositário infiel (art. 5º, LXVII).
Mas, sem dúvida, muito se tem discutido a respeito da cabimento da prisão do devedor, notadamente, em função do disposto no art. 5º, LXVII da Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1988, na realidade, prevê a prisão civil por dívida em apenas dois casos: inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e depositário infiel (art. 5º, LXVII). No parágrafo 2º desse mesmo art. 5º, está dito que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Realmente, após o advento da Constituição Federal de 1988 novas questões emergiram, dentre elas, primeiramente, a decisão que não mais possibilita de a garantia fiduciária atingir bens fungíveis (cf. STJ, 4ª T.; REsp. 6.566-PR – Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO; 11.06.91; v.u.; DJU 03.02.92, p. 468, Seção 1, ementa); até, mais recentemente, a impossibilidade de manutenção do decreto de prisão civil, quando não essencial à natureza mesma da ação de depósito, em face do disposto no art. 5º, LXVII, da Carta Magna, que pertine tão somente aos depósitos clássicos, previstos no Código Civil, não se admitindo possíveis ampliações que ponham em risco a liberdade dos devedores em geral.
Cumpre salientar, como bastante pertinente, que, em 1991, foi incorporado em nosso ordenamento constitucional, pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12/12/91, textos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que, em seu art. 11, veda, taxativamente, a prisão civil por descumprimento de obrigação contratual (ou seja, por não pagamento de dívida).
Na verdade, por outro lado, qualquer entidade financeira pode propor uma Ação de Busca e Apreensão de um veículo – ou outro bem qualquer – alegando a existência de um contrato de financiamento garantido por alienação fiduciária. E no caso da não localização do referido bem, poderá requerer a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, com fundamento no art. 4º do Decreto Lei nº 911/69, art. 4º da Lei nº 6.071/74 e art. 901 e seguintes do CPC. E, também, de requerer a prisão do depositário infiel, se o veículo não for encontrado ou não se achar do devedor, com base no disposto no art. 904 do Código de Processo Civil.
Impõe-se, assim, algumas considerações sobre os princípios que norteiam o instituto da alienação fiduciária, estabelecida no Decreto Lei nº 911/69, e, igualmente, sobre o conceito da ação de depósito, regulamentado pelos artigos 901 e seguintes, do Código de Processo Civil.
Alienação fiduciária em garantia, é o resultado da aspiração de novas garantias reais para a proteção ao crédito, visto que, aquelas trazidas pela codificação civil, porque enfraquecidas e de mais difícil execução, desafiava um instituto mais prático, mais eficiente e mais simples, o que não existia no ordenamento brasileiro.
Uma coisa é certa, adotou-se a alienação fiduciária para facilitar a concessão do crédito, para dar efetiva e real garantia ao credor, ao mesmo tempo em que não se desapossava o devedor do objeto, assegurando à ele o uso e gozo da coisa; proporcionando, ainda, ao adquirente devedor usufruir da coisa para deleite ou mesmo, profissionalmente, até para obter recursos necessário ao pagamento de seu débito.
Com a edição do Decreto Lei nº 911/69, e com a explicitação de que o contrato de alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel do bem, tornando-se, o alienante ou devedor, possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem, de acordo com a lei civil e penal, restou constitucionalmente discutível o disposto no art. 4º da referida lei: “se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá intentar ação de depósito, na forma prevista no Título XII, Livro IV, do CPC´´, significando dizer, que, o encargo de depositário, se mal cumprido, pode vir a ensejar a prisão civil do devedor, por mera equiparação legal.
Assim, pode-se admitir, em princípio, que o depósito que autoriza a prisão deve ficar restrito àquele especificamente contraído para a guarda da coisa, e não o proveniente da garantia de uma dívida, como acontece com a alienação fiduciária.
Como bem esclarece o próprio Des. ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, “ninguém é livre de comprometer a sua liberdade física a título de garantia patrimonial”, complementando o sempre lembrado ARNALDO RIZZARDO, na obra antes referida, “pois, em última análise, o que está em jogo é um mútuo. Daí por que, a admitir-se a prisão, a mesma se daria por dívida, cominação que repugna o direito atual”.
O próprio Supremo Tribunal Federal, no HC 74.383-8-MG, em brilhante voto vencedor da lavra do nobre Ministro MARCO AURÉLIO, já externou entendimento a respeito da inconstitucionalidade da prisão do devedor fiduciário, quando na condição de “depositário infiel”, por equiparação do art. 4º, do Decreto Lei nº 911/69. No caso específico da “alienação fiduciária em garantia”, ressaltou que não se teria um contrato de depósito genuíno. O devedor fiduciante não está na situação jurídica de depositário. O credor fiduciário não tem o direito de exigir dele a entrega do bem. Nem mesmo de proprietário deve ser rotulado, pois nem sequer pode ficar com a coisa, mas apenas com o produto de sua venda, deduzido o montante já pago pelo devedor. (STJ – RHC 4.210 – 6ª T. – Rel. p/ac. Min. Adhemar Maciel – J. 29.05.1995)
Em suma, o legislador previu a prisão civil do depositário infiel apenas e tão somente para os casos contemplados pela legislação infra-constitucional.
Não se configura a hipótese excepcional em que a Constituição admite a prisão do devedor civil inadimplente, já que o comprador, de um determinado bem (com contrato de alienação fiduciária), teve intenção, apenas, de adquirir o domínio e de usar ou consumir a coisa, não sendo, pois, autêntico depositário.
Reitera-se que, no caso de contrato de alienação fiduciária, busca-se a devolução do bem, não porque o recebera, o depositário, para guardá-lo; mas, sim, evidentemente, como forma de coação, para recebimento da dívida, o que, até aí, não tem mais fortes implicações, mesmo porque, o contrato de alienação representa, de certa forma, uma espécie de promessa de compra e venda, através do qual, quitado o preço, consolida-se a propriedade do bem ao promissário e, nada mais justo, se diante do inadimplemento contratual, com a rescisão consumada, se busque a posse do bem.
A questão, porém, passa a assumir, realmente, importância quando se adentra à ação de depósito, conquanto, nesta hipótese, já não se trata mais de simples apoderamento do bem, face a rescisão operada, mas, de impor-se ao inadimplente-fiduciário a prisão civil porque, a rigor, não pagou a sua dívida.
Por tudo isto, concluir pelo não cabimento da pena restritiva de prisão ao depositário infiel, em conseqüência do contrato de alienação, é tarefa acadêmica, pois, duas máculas o justificam, quais sejam: a atipicidade do depósito, conquanto não se insere no contexto previsto pelo constituinte, bem como, em virtude de constituir cominação pelo não pagamento de dívida.
Neste aspecto, o avanço elogiável que vem sendo dado pelo direito pretoriano, no sentido da exclusão do emprego da prisão civil nos casos de depositários de contratos fiduciários mantidos pelas instituições financeiras, à luz do novo texto constitucional, e derrogando a legislação de exceção, assegura, na verdade, aos devedores tratamento humano e digno, como pressupostos que são insculpidos no art. 1º, II e III, da Constituição Federal (cidadania e dignidade da pessoa humana), com os quais se formam os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
* Consultor Jurídico
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