Bruno de Oliveira Carreirão*
Um dos aspectos interessantes da pandemia do coronavírus (se é que se pode dizer que há algo interessante nisso) é observar quais mudanças de hábitos e novas práticas que estamos adotando agora poderão ser tornar permanentes e mudar as nossas vidas para o futuro. Lembro que, por exemplo, na época da pandemia da gripe suína, foram instalados dispensers de álcool gel nas paredes de órgãos públicos e locais com atendimento ao público de modo em geral, que permaneceram mesmo após o fim da pandemia. Uma mudança sutil, mas perceptível.
A pandemia do coronavírus certamente nos trará mudanças muito mais profundas, pois está nos impondo restrições muito maiores. Muitas pessoas e empresas adotarão o home office em definitivo; as lives se tornarão uma forma de comunicação mais utilizada; as videoconferências substituirão muitas reuniões presenciais para evitar os inconvenientes do deslocamento; e por aí vai.
Na prática jurídica, acredito que algumas mudanças também poderão se tornar permanentes, desburocratizando alguns atos[1]. Por isso, penso que o momento deve ser encarado como uma oportunidade de repensar se alguns atos presenciais que realizamos habitualmente na prática forense realmente são necessários e isso me leva ao tema desta coluna: as audiências de conciliação.
Já comentei aqui na coluna algumas vezes[2][3] sobre o meu desgosto por essas audiências, que, para mim, são a pior inovação do CPC de 2015. Mas que fique claro: o meu desgosto não é pela conciliação. Pelo contrário! Acredito que a realização de acordos é quase sempre uma boa solução para um processo, desde que celebrado no momento e nas condições adequadas. E o meu problema com as audiências de conciliação obrigatórias é justamente esse: elas raramente são o momento adequado para um acordo.
No clássico Acesso à Justiça, escrito em 1978, Mauro Cappelletti e Bryant Garth já apontavam que “é óbvio que o começo de uma causa não é o melhor momento para conciliar as partes. A menos que uma de suas posições seja patentemente absurda, cada um tem que ouvir os argumentos de seu adversário para verificar a possível fraqueza dos seus próprios argumentos”[4].
O que Cappelletti e Garth apontam é apenas um dos muitos fatores que influenciam as partes a não buscarem um acordo. Os fatores são diversos e incluem o otimismo exagerado, a imprevisibilidade das decisões, a concentração do maior valor das custas processuais no início do processo, entre outros[5]. Estudar e entender o comportamento das partes no processo é fundamental para avaliar o potencial de eficácia de uma medida como a criação de uma audiência de conciliação obrigatória – o que parece não ter sido feito.
A verdade é que nunca foi apresentada nenhuma fundamentação convincente ou qualquer dado pelos formuladores da medida que justificasse a sua adoção. Os resultados, inclusive, não parecem muito animadores. Segundo o relatório Justiça em Números[6], elaborado pelo CNJ, houve uma redução no índice de conciliação nos processos em fase de conhecimento (que é quando acontecem as audiências) desde 2015:
A introdução das audiências de conciliação obrigatórias no CPC de 2015 se baseou na ideia ingênua de que o litígio existe porque as partes não tiveram a oportunidade de sentar em uma mesa e negociar e porque temos no Brasil uma tal “cultura do litígio” – uma justificativa preguiçosa para a nossa alta quantidade de processos.
Em outra oportunidade, já escrevi sobre a concepção ingênua que se tem no Brasil sobre a autocomposição[7], a começar pelo uso recorrente da expressão “resolução amigável”. As partes não celebram um acordo porque se tornaram amigas, mas sim porque é uma solução melhor do que o prosseguimento do processo (e o “melhor” pode ser por diversos fatores, que incluem, inclusive, o mero bem-estar de não estar mais envolvido em um litígio). Na época, escrevi o seguinte:
Imaginemos a seguinte situação: o autor propõe uma ação para rescindir um contrato e pede uma liminar para que possa suspender o pagamento que deveria fazer ao réu. O juiz defere a liminar e intima o réu para uma audiência de conciliação. Você, como réu, acha que esse é um bom momento para tentar um acordo?
Ora, o réu, por ser réu, já está desde o início em uma posição desfavorável. Por conta da liminar, o réu deixará de receber o pagamento esperado, o que lhe causará prejuízo. Sendo assim, qual o poder de barganha que o réu tem para negociar um acordo? O que poderia melhorar a situação do réu: amor, compreensão ou um agravo com efeito suspensivo?
Muito melhor seria se o réu agravasse da decisão e obtivesse um efeito suspensivo para suspender a liminar, ou, dependendo das circunstâncias do caso, propusesse uma outra ação em face do autor, para criar uma situação desfavorável para ele também. A partir daí o réu estaria em uma condição melhor para ter poder de negociação em um possível acordo.
O que acontece, na prática, é que a audiência de conciliação é um excelente instrumento protelatório. Na maioria das vezes, a audiência é inócua e não dura mais do que 2 minutos, se revelando uma verdadeira perda de tempo para partes, advogados e para o próprio Poder Judiciário, gerando custo de oportunidade para todos os envolvidos. Em tempos de isolamento social e restrição de atos presenciais, parece uma insanidade.
Em casos de ações em massa, que geralmente envolvem empresas de grande porte, a possibilidade de a audiência conciliatória ser profícua é ainda menor, pois é muito provável que a ré se faça representada por advogado correspondente e por preposto que sequer têm ciência do caso que está sendo debatido, realizando o ato apenas por mera formalidade e para evitar a revelia.
E não posso deixar de mencionar a estupidez da previsão de que a audiência só deve ser dispensada se tanto o autor quanto o réu se manifestarem pela sua desnecessidade. Ou seja, não basta que uma das partes diga que não tem interesse em conciliar, embora seja evidente que a conciliação só acontecerá havendo interesse de ambas as partes.
No fundo, essa regra é mais uma expressão do paternalismo estatal muito comum no Brasil. Porém, por mais que o CPC tente forçar as partes a conciliarem, no fim das contas, elas só celebraram acordo se este atender a seus interesses. A presença de um conciliador na frente das partes não altera seus interesses e nem atenua suas percepções sobre o processo, sobretudo porque geralmente é um estagiário da 2ª fase que se limita a dizer: “Existe proposta de acordo? Não? Que pena! Fica o autor intimado para a réplica”.
Georges Ripert dizia que “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o direito”[8]. E é isso que acontece quando criamos regras processuais estúpidas. Não demorou muito para que os juízes, percebendo que as audiências só serviam para encher as suas pautas e atrasar o andamento dos processos, passassem a não designar as audiências[9]. Será que não está na hora de nos reconciliarmos com a realidade?
* Bruno Carreirão é advogado, mestre em direito e acredita que quando um não quer, dois não fazem acordo.
[1] Um texto interessante sobre o assunto: “Go digital and stay home: Covid-19 e a desburocratização da papelada”: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/go-digital-and-stay-home-covid-19-e-a-desburocratizacao-da-papelada-03042020
[2] “Eu odeio o FONAJE”: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337529-eu-odeio-o-fonaje
[3] “O Novo CPC ficou velho”: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337747-o-novo-cpc-ficou-velho
[4] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988, p. 85-86.
[5] Sobre o tema, vale a leitura da obra: GOULART, Bianca Bez. Análise Econômica do Litígio: Entre Acordos e Ações Judiciais. Salvador: JusPodivm, 2019.
[6] Os relatórios anuais estão disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/
[7] “A Arte de Conciliar no Processo: Amor, Respeito, Compreensão ou…ESTRATÉGIA?!”: http://advogadonocontrole.com.br/arte-de-conciliar-estrategia/
[8] RIPERT, Georges. Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno. São Paulo: Red Livros, 2002, p. 33.
[9] “Juízes ignoram fase de conciliação e descumprem novo código”: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/08/juizes-ignoram-fase-de-conciliacao-e-descumprem-novo-codigo.html