Pitacos de um Advogado Rabugento

Que tal investigar o assassinato de Odete Roitman?

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Bruno de Oliveira Carreirão*

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Volta e meia me vejo obrigado a retomar o tema liberdade de expressão aqui na coluna, porque o Brasil é um grande celeiro de censores em potencial, independentemente da vertente ideológica[1]. A celeuma da vez é a tentativa de censura imposta pelo Ministério da Justiça ao filme ‘Como se tornar o pior aluno de sua escola’[2], em razão de uma cena com conotação de pedofilia, motivada por uma turba de usuários de chapéu de alumínio que, se já são incapazes de diferenciar um disco de uma esfera, que dirá distinguir realidade de ficção.

Na cena controversa, o personagem vivido por Fábio Porchat sugere à dupla de garotos protagonistas do filme que lhe masturbem para que ele, em troca, diga como encontrar um antigo colega de turma que havia sido o autor do tal manual de como se tornar o pior aluno da escola, interpretado por Danilo Gentili. Horrorizados com a proposta, os garotos fogem correndo.

Não há aplausos ao personagem em questão e nem exibição explícita de qualquer ato obsceno. Há apenas um personagem de ficção, claramente caracterizado como vilão, agindo de forma criminosa e imoral, ainda que a situação seja retratada de forma jocosa – afinal, trata-se de um filme de comédia. Não há, portanto, nenhuma apologia ou incitação a crime e a cena é apenas uma manifestação artística, protegida pela Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso IX.

Aliás, se a mera retratação de crimes em obras de ficção fosse equivalente a apologia ou incitação, fico imaginando o que aconteceria quando essa turma descobrisse o que acontece em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite…

É curioso que, justamente no país da malandragem e do “jeitinho brasileiro”, se cobre tanto um comportamento perfeitamente moral até de nossos personagens de ficção. Nunca me esqueço a vez em que o Conselho Federal da OAB – sempre ele! – lançou uma patética nota de repúdio contra um personagem de novela que chamou advogados de “trambiqueiros”[3].

Apesar do apoio da “voz das ruas” – essa poderosíssima entidade que faz a opinião de uma meia dúzia barulhenta parecer a vontade majoritária da população -, o ministro da justiça jamais se arriscaria a tentar censurar um filme se tivesse a certeza de que seu intento ditatorial seria prontamente rechaçado pelo Poder Judiciário. O problema é que não temos tradição da defesa da liberdade de expressão nos tribunais brasileiros. Pelo contrário. A nossa tradição, pelo menos em tempos mais recentes, é a da substituição da Constituição pelo gosto ou desgosto do magistrado. É a herança que recebemos dos juristas “críticos”, que tanto demonizaram o positivismo jurídico e a “letra fria da lei”. O resultado é esse: o texto da norma não vale nada, o que valeu é o “meu sentir”. Quando relativiza-se tudo, o direito de nada vale.

Nem mesmo as próprias decisões do Poder Executivo tem grande valia neste país miserável. O mesmo Ministério da Justiça, que agora tenta censurar o filme, avaliou-o em 2017, ano de seu lançamento, e lhe conferiu a classificação indicativa para maiores de 14 anos. Aparentemente, durante 5 anos uma vergonhosa cena de incitação a estupro de vulnerável passou absolutamente despercebida.

Falar sobre um crime não é crime. Retratar um crime em uma obra de ficção não é crime. Nem mesmo defender a legalização de uma conduta criminalizada no ordenamento jurídico é crime – mas o episódio recente do Flow Podcast[4] mostra que o povo brasileiro ainda não está preparado para essa conversa.

O que o brasileiro médio quer é cobrar dos outros um comportamento exemplar que nem mesmo ele ostenta. Essa é a sina da “família tradicional brasileira”. O pai espanca a mãe na frente dos filhos de depois culpa o que vê na TV pela violência no país. E enquanto o povo brasileiro sofre com os crimes reais, o Ministério da Justiça se preocupa com crimes da ficção.



* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e não tem paciência para demagogia.



[1] Sobre o absoluto desprezo do Brasil pela liberdade de expressão: “Admitam: vocês não gostam de liberdade de expressão”:  https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/337712-admitam-voces-nao-gostam-de-liberdade-de-expressao

[2] “Ministério determina que plataformas deixem de exibir filme de Gentili”:  https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/ministerio-determina-que-plataformas-deixem-de-exibir-filme-de-gentili

[3] “OAB repudia declaração em novela da Globo de que advogado é ‘trambiqueiro’”:  https://www.migalhas.com.br/quentes/253426/oab-repudia-declaracao-em-novela-da-globo-de-que-advogado-e–trambiqueiro

[4] Para quem passou os últimos meses em uma caverna: “Flow Podcast desliga Monark após fala sobre nazismo e apaga vídeo do canal”:  https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2022/02/08/flow-podcast-monark.ghtml

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Que tal investigar o assassinato de Odete Roitman?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/que-tal-investigar-o-assassinato-de-odete-roitman/ Acesso em: 05 dez. 2024