Colunas Pitacos de um Advogado Rabugento

Julgamento virtual e a farsa da colegialidade

Bruno de Oliveira Carreirão*

O duplo grau de jurisdição é uma das bases do nosso sistema processual. É a garantia que temos de que, se o juiz de primeiro grau der uma sentença muito absurda, julgar o processo sem analisar as provas, assinar sem ler a minuta do estagiário ou simplesmente for muito burro para compreender a lide – exemplos hipotéticos, claro –, nós podemos recorrer para um órgão colegiado, formado por uma pluralidade de magistrados que, juntos e somando suas inteligências, têm menor risco de cometerem os mesmos equívocos.

Ou, pelo menos, é o que diz a teoria.

A polêmica acerca da Resolução nº 591/2024 do CNJ[1] desperta a atenção para um importante debate sobre a colegialidade das sessões de julgamento. É que a resolução em questão normatiza os julgamentos virtuais em todo o território nacional e abre margem para que os tribunais possam pautar processos para sessões virtuais assíncronas, nas quais a possibilidade de sustentação oral do advogado é substituída por um vídeo gravado, cujo arquivo certamente ficará esquecido no servidor, sem qualquer risco de um mísero clique sequer.

Mas afinal, qual é a relação entre a sustentação oral e a colegialidade?

Depois de alguns anos de experiência profissional, afirmo sem medo de errar: não existe julgamento colegiado sem a presença e intervenção do advogado.

Para ilustrar o ponto, conto uma anedota, que pode até não parecer, mas é verídica. Em uma determinada época, no início das atividades do nosso escritório, nos aventuramos com uma tese para ações consumeristas de massa. Eram ações padronizadas, para casos idênticos, quase sempre contra as mesmas empresas. Em dois destes casos idênticos, contra a mesma empresa, tivemos sentenças diametralmente opostas, proferidas por juízes diferentes. Por ironia do destino, os recursos foram distribuídos para a mesma Turma de Recursos e pautados para a mesma sessão de julgamento. Por estratégia, optamos por não fazer sustentação oral e nem mesmo pedir preferência no julgamento. Resultado: as duas sentenças (uma de procedência e a outra de improcedência) foram mantidas por unanimidade.

Ora, não há como acreditar que houve qualquer debate em uma sessão em que os mesmos julgadores, por unanimidade, decidiram casos iguais de forma tão antagônica.

A verdade é que só há debate entre os membros do colegiado quando o advogado chama a atenção para o caso. A presença do advogado na tribuna vai além da sustentação oral, pois ele tem a possibilidade de esclarecer fatos e intervir com questões de ordem quando necessário. Na pior das hipóteses, a sua mera presença inibe a quase irresistível vontade de acompanhar cegamente o voto do relator, sem nem tomar conhecimento do caso[2]. Nada disso é possível com o julgamento virtual assíncrono.

Infelizmente, o Min. Barroso negou o pedido da OAB para suspender o início de vigência da normativa. O Conselho Federal da OAB, por sinal, poderia ter focado seus esforços em mobilizar a classe, ao invés de alardear uma falsa vitória[3], já que seu pedido não foi conhecido[4].

Em sua decisão, o Min. Barroso destacou que “os julgamentos em ambiente eletrônico têm sido adotados em diversos tribunais com grande ganho de eficiência” e que “é materialmente impossível dar conta da demanda existente apenas com sessões síncronas, que acabam se tornando um gargalo”. Ora, considerando que o tempo passa da mesma maneira no mundo real e no mundo virtual, a única explicação para o “ganho de eficiência” é justamente a supressão dos debates. Afinal, se os julgadores assistissem a todas as sustentações gravadas e debatessem todos os casos submetidos ao julgamento virtual, as sessões assíncronas demorariam o mesmo tanto que as sessões síncronas.

A grande questão é que o direito de chamar a atenção, digamos assim, precisa ser preservado. Muito embora o art. 8º da Resolução nº 591/2024 preveja a possibilidade de o advogado pedir destaque para que seu processo seja pautado para julgamento presencial, a norma não assegura que tal pedido será automaticamente deferido e que não dependerá de justificativa ou qualquer análise subjetiva por parte do relator. Esse, a meu ver, deve ser o ponto focal da OAB daqui por diante, principalmente visando as regulamentações internas de cada tribunal.


* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e não gosta de “faz de conta”.


[1] Confira a íntegra da resolução aqui: https://atos.cnj.jus.br/files/original231335202410236719831fd991a.pdf

[2] Em casos julgados pelos juizados especiais, como os da anedota acima, há ainda uma outra vontade quase irresistível: a de manter a sentença por seus próprios fundamentos, por incentivo do art. 46 da Lei nº 9.099/1995, que dispensa a elaboração de acórdão.

[3] O Conselho Federal da OAB abusou da criatividade retórica, ao divulgar que o Min. Barroso suspendeu o prazo para implementação da Resolução nº 591/2024 do CNJ por conta de sua atuação. O que foi concedido, na realidade, foi a prorrogação de prazo para alguns tribunais se adequarem, a pedido dos próprios tribunais. A resolução entrou em vigor, alguns tribunais já se adequaram e não há qualquer impedimento para que os outros se adequem antes do prazo concedido. A desinformação divulgada pelo Conselho Federal da OAB é um desserviço para a classe: http://www.oab.org.br/noticia/62871/apos-atuacao-da-oab-barroso-suspende-prazo-de-implementacao-da-resolucao-591-2024-do-cnj

[4] A íntegra da decisão pode ser lida aqui: https://s.oab.org.br/arquivos/2025/01/48699ae4-bf94-4e02-a3ab-9b26bb179d27.pdf

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Julgamento virtual e a farsa da colegialidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2025. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/julgamento-virtual-e-a-farsa-da-colegialidade/ Acesso em: 06 fev. 2025