Filosofia do Direito

Os guardiões platônicos e as relações de gênero em “A República”

Resumo: Trata-se de artigo no qual se analisa as definições e características dos guardiões idealizados por Platão e as relações de gênero daí decorrentes. Nesta obra, é possível notar algumas diferenciações entre sexo e gênero e, ainda que timidamente, a defesa da igualdade entre mulheres e homens.

Palavras-chave: Guardiões. Gênero. Igualdade.

Abstract: It is an article in which the definitions and characteristics of the guardians idealized by Plato and the resulting gender relations are analyzed. In this work, it is possible to note some differences between sex and gender and, albeit timidly, the defense of equality between women and men.

Keywords: Guardians.Gender. Equality.

Sumário: Introdução. 1. As características dos guardiões. 2. As primeiras referências femininas. 3. A educação dos guardiões. Conclusão.Referências.

Introdução

Na obra “A República” de Platão, o filósofo procura definir a cidade ideal, abordando para tanto diversas questões como educação e justiça.

No livro III, por meio de diálogos entre Sócrates, Adimanto e Glauco, o filósofo aborda a classe dos guardiões e sua educação, destacando a função destes de proteção à cidade. Já, no livro V, através de diálogos entre Sócrates, Adimanto, Glauco e Trasímaco, Platão trata da função das mulheres e seus filhos na polis.

Assim, o objetivo do presente trabalho é expor a visão ideal de guardião para Platão, relacionando-a à discussão de gênero existente na obra em comento.

1 As características dos guardiões

No início do livro III (PLATÃO, 2014), a referida obra aborda as características ideais dos guardiões, tal como a coragem perante a morte. Para assegurar que os guardiões fossem corajosos, fica explícito a necessidade de censura a poetas como Homero que exaltavam o medo da morte. Como estas poesias não engrandeciam a virtude do guardião, deveriam ser eliminadas.

Neste ponto, há, no livro, a referência de que os guardiões deveriam recear mais a escravidão do que a morte (PLATÃO, 2014, p.119).

Seguindo na descrição das características ideais, o autor afirma que os homens não deveriam ser inclinados a rir, já que o riso poderia provocar violentas emoções. Ainda, dever-se-ia, afastá-los da mentira e aproximá-los da moderação, para que crescessem bons e sérios, conforme a natureza que deveriam ter (PLATÃO, 2014).

Destaca-se também a importância elencada na obra acerca do autodomínio (temperança), já que por meio dessa qualidade é que se manifestariam outros traços da conduta esperada para esses guardiões, como seriedade, moderação e respeito pelos outros habitantes da cidade.

Verifica-se que, no início do livro III, há apenas referências masculinas, de modo que os diálogos citam as palavras rapazes, homens de bem, guardiões, guerreiros, dentre outras expostas somente no gênero masculino. No entanto, ao abordar o tema poesia, haverá referências femininas, conforme demonstrado adiante.

Os interlocutores, ao dialogarem acerca das poesias, chegam à conclusão de que estas deveriam feitas através da exposição ou pela imitação. A primeira consistiria na simples exposição dos fatos pelo narrador, sem dar voz aos personagens. Já, a segunda consistiria em narrar os acontecimentos pelos próprios personagens, através de diálogos entres eles.

Abordado os dois estilos, imitativo e expositivo, a obra faz a primeira referência feminina, atestando que, para os jovens (homens) se tornarem cidadãos de bem, seria inadmissível que estes imitassem pessoas do sexo oposto, tanto novas quanto velhas, nem escravos ou escravas, tampouco indivíduos maus e pusilânimes (PLATÃO, 2014).

Nesse ponto, ao afirmar que os guardiões não poderiam imitar pessoas do sexo oposto, o filósofo transparece sua visão das mulheres da época, qual seja a de realizarem apenas funções domésticas e viverem a serviço de seus maridos. No aludido excerto, há a afirmação de que muitas delas choravam com facilidade, insultavam seus maridos e rivalizam com os deuses (PLATÃO, 2014).

No trecho exposto, percebe-se uma visão misógina das mulheres da época. Salienta-se, entretanto, que mais à frente, no livro V, Platão abordará diversas questões inovadoras para o período em questão, tais como a igualdade na educação entre homens e mulheres, bem como sobre o papel destas na proteção da polis (classe das guardiãs).

2 As primeiras referências femininas

No início do livro V, Sócrates conversa com Glauco, Adimanto e Trasímaco e, ao discorrer sobre as mulheres, as compara a cães (do sexo feminino) de guarda, já que elas também deveriam ser vigilantes. O personagem destaca, porém, que as mulheres são mais fracas que os homens (PLATÃO, 2014, p.206).

Neste tópico, Sócrates e Glauco, após algumas considerações, concluem que a diferença existente entre homens e mulheres consistiria unicamente em que estas poderiam conceber um filho, e aqueles não. Consequentemente, as mulheres guerreiras deveriam exercer as mesmas atividades que os homens guerreiros, ainda que em todas as atividades elas fossem mais fracas que eles. Essas questões podem ser aferidas nos seguintes diálogos:

“Da seguinte maneira: achas que as fêmeas de nossos cães de guarda deveriam guardar o que os machos guardam, caçar com eles e fazer tudo o mais em comum com eles? Ou deveríamos manter as fêmeas em casa, como incapazes de fazê-lo, uma vez que elas têm de partejar e criar os filhotes, enquanto os machos trabalham e assumem todo o cuidado do rebanho?”

“Tudo deveria ser em comum, exceto pelo fato de que as fêmeas são mais fracas e os machos, mais fortes.”

“E é possível utilizar quaisquer animais nas mesmas tarefas se não ministras a eles o mesmo treinamento e educação?”

“Não, não é.”

“Por conseguinte, se utilizarmos as mulheres para as mesmas tarefas dos homens, a elas deverão ser ensinadas as mesmas coisas.”

“Sim.”

“Ora, educamos os homens com música e ginástica.”

“Sim.”

“Então teremos de proporcionar essas duas artes, além das que têm a ver com a guerra, às mulheres também para que as empreguem do mesmo modo que os homens o fazem.” (PLATÃO, 2014, p.206).

Nesta parte do diálogo, pode-se dizer que o filósofo tenta encontrar um critério justo para diferenciar homens e mulheres. No entanto, como a principal diferença encontrada consistiu exclusivamente no poder de conceber filhos, não haveria como negar a possibilidade da existência de guardiãs, conforme demonstrado adiante:

“Portanto, homem e mulher são naturalmente idênticos no tocante à guarda do Estado, apenas com a ressalva de que a mulher é mais fraca e o homem é mais forte.”

“É o que parece.”

“Então mulheres desse gênero precisam ser selecionadas juntamente com homens de gênero idêntico para que vivam com eles e como eles sirvam como guardiãs, uma vez que são adequadas para a tarefa e têm afinidade natural com esses homens.” (PLATÃO, 2014, p. 212-213).

A partir disso, lança-se a seguinte reflexão: se a mulher deve proteger a cidade assim como um homem, esta deve ter também a mesma educação que ele, tanto na música, quanto na ginástica e na arte da guerra.

Com isso, a seguir, o presente trabalho abordará a educação na música, na ginástica e na guerra idealizada por Platão aos guardiões e guardiãs, bem como ressaltar as semelhanças e diferenças apontadas pelo filósofo entre homens e mulheres.

3 A educação dos guardiões

No tocante à música, Platão (2014) afirma que o ritmo e a melodia deveriam acompanhar as palavras. As harmonias tristes, moles e a embriaguez são trazidas como inúteis para homens guerreiros e até mesmo às mulheres.

Segundo a obra (PLATÃO, 2014), a harmonia deveria ser útil para o sujeito se comportar virilmente na guerra ou em qualquer outra situação difícil, bem como em tempos de paz na execução de qualquer ato espontâneo e não violento.

Neste trecho, assim como em outros, o filósofo (2014) deixa claro que um guardião ou guardiã deveria ter o comportamento viril, adjetivo este que tem por significado questões inerentes aos homens e às características masculinas.

Assim, é admissível indagar se, naquela época, ainda que implicitamente, Platão já discutia a “questão de gênero” como decorrente de uma construção social e não como oriunda da biologia.

Prosseguindo, em relação ao ritmo, dever-se-ia evitar qualquer movimento que indicasse baixeza, insolência, insânia e outras variedades.

Tais características na educação da música eram comuns para homens e mulheres. Entretanto, num ponto há uma diferenciação. Para ele, afigurava-se interessante distinguir os cantos para homens e mulheres. Àqueles seriam mais indicados cantos tendentes à magnanimidade e à coragem e, a estas, as músicas que sugeririam modéstia e temperança (PLATÃO, 2014, p. 216).

Depois da música, a ginástica surge na formação dos guardiões, mas dentro da perspectiva de que a alma boa torna bom o corpo tanto quanto possível e não o contrário.

Também aqui se adverte que eles deveriam manter distância de todos os maus hábitos que iam contra sua natureza, devendo ainda ser fortes fisicamente e impetuosos quando preciso.

No entanto, eles deveriam se diferenciar dos atletas que, apesar da força, não eram resistentes às condições adversas. A ginástica deveria, assim como a música, ser simples e moderada, para que houvesse um equilíbrio que afastasse o excesso de zelo para com o corpo e também a brandura extrema.

A música visava à polidez; a ginástica, à coragem e à força. Essas são as qualidades inerentes ao bom guardião elencadas na obra.

No que tange ao ensino da ginástica às mulheres, em diálogo entre Glauco e Sócrates, no início, há certa ironia daquele ao dizer que seria “ridículo” ver as mulheres se exercitando nuas juntamente com os homens, em especial as mais velhas. Não obstante, Sócrates responde, dizendo que não se deve temer o riso dos gracejadores quando houver uma mudança concernente aos exercícios do corpo, à música e, principalmente, ao porte de armas e à equitação (PLATÃO, 2014, p. 207).

Avançando no assunto, Sócrates lembra que, anteriormente, os gregos riam da visão de um homem nu, o que já não ocorria mais naquela época, pois já havia se tornado costume que os homens se exercitassem nus. Assim, ressaltou o quão insensato é aquele que julga ridícula outra coisa que não seja o mal, a desonestidade ou a perversidade (PLATÃO, 2014, p. 207-208).

Ao final, ambos concordam que as mulheres deveriam se exercitar nuas nos ginásios, junto com os homens. Assim, tanto as mais jovens, quanto as mais velhas deveriam continuar com seus exercícios de ginástica.

Em relação à arte da guerra, Sócrates sugere que, tanto homens guardiões quanto mulheres guardiãs não poderiam ter bens privados. Além disso, ressalta que os filhos deveriam ser comuns a todos, de modo que os pais não saberão quem são seus filhos e estes também não saberão quem são seus pais.

Neste ponto, Trasímaco questiona essa possibilidade em razão do distanciamento da realidade. Mas, Sócrates se mantém firme e atesta que para se obter grandes feitos, é preciso antes imaginar tudo como se consolidado fosse e, depois, ver-se-ia se o resultado foi alcançado ou não (PLATÃO, 2014).

A classe dos guardiões deveria se manter fiel ao seu propósito, qual seja a proteção da polis e, por isso, toda a ideia de ter seus próprios bens ou filhos, assim como a instituição casamento era refutada na obra.

Sobre a reprodução, como no caso dos animais, dever-se-ia empregar o cruzamento dos melhores homens com as melhores mulheres o maior número de vezes. Em contrapartida, os piores deveriam procriar o menor número de vezes possível.

Ainda, os homens e mulheres só poderiam procriar em certa idade da vida, na qual estejam em seu auge. Porém, tudo deveria ser zelado de perto pelos governantes, para que a cidade não ficasse muito populosa e nem o contrário, levando-se em conta guerras e pestes.

Conclusão

Conforme explanado, é possível verificar que a classe dos guardiões era essencial à polis idealizada por Platão, cabendo a estes a proteção da cidade. Justamente, por isso, deveriam ser educados segundo as normas estabelecidas na obra. Aliado a isso, também deveriam abdicar de questões privadas e dedicarem sua vida à finalidade do bem público.

Após uma longa reflexão, Platão deixa claro que tanto homens quanto mulheres têm aptidões para serem guardiões, o que se revela extremamente progressivo para a época.

Também é possível extrair da obra, ainda que implicitamente, uma diferenciação entre sexo e gênero, sendo este último decorrente de construção social e àquele como oriundo da biologia.

Ainda que em alguns trechos seja possível notar certa dose de misoginia na obra, é inegável que, ao abordar tais ideias, o filósofo defendeu algo completamente inovador para sua época e, em razão disso, é considerado, por parte do movimento feminista, como pioneiro na defesa da igualdade de gêneros.

Referências

BUTLER, Judith; tradução Renato Aguiar. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 14. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2017.

KUNZ, Júlio César. STUMPF, Elisa Marchioro. A República e a mulher: educação e formação na (des)construção de gênero. Disponível em <https://www.ucs.br/ucs/eventos/cinfe/artigos/arquivos/eixo_tematico4/A%20Republica%20e%20a%20mulher_educacao%20e%20formacao%20na%20desconstrucao%20do%20genero.pdf>. Acesso em 03 out. 2017.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

PLATÃO. A República (Da Justiça). 2 ed. Trad. Edson Bini. Edipro: São Paulo, 2014.

SILVA, Vânia dos Santos. Algumas Leituras Feministas de Platão: entre a imagem e a identidade. Disponível em < http://repo>sitorio.unb.br/bitstrem/10482/13985/1/2013_VaniadosSantosSilva.pdf>. Acesso em 05 jul. 2017.

 

Edgar Pierini Neto: Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Defensor Público do Estado de São Paulo. E-mail: edgarpierinineto@yahoo.com.br.

Como citar e referenciar este artigo:
NETO, Edgar Pierini. Os guardiões platônicos e as relações de gênero em “A República”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/os-guardioes-platonicos-e-as-relacoes-de-genero-em-a-republica/ Acesso em: 30 abr. 2024