Filosofia do Direito

Para que serve a filosofia? (Segunda Parte)

Para que serve a filosofia? (Segunda Parte)

 

 

Mario Guerreiro *

 

 

Aqueles filósofos que encontram determinado mal-estar diante da indagação: “Para que serve a filosofia?” – por considerarem estar implícita alguma forma de serventia e amesquinhamento do saber filosófico – algumas vezes adotam o mesmo procedimento adotado por Oscar Wilde, respondendo: “A filosofia não serve para nada”. Teríamos de concordar com eles, caso estivessem querendo insinuar que a finalidade e o valor da pesquisa e da reflexão filosófica não podem ser medidos e avaliados pelo valor de quaisquer atividades práticas ou fornecedoras de subsídios para atividades práticas.

 

Mas, neste particular, a atividade filosófica não difere em nada da pesquisa científica, pois teorias científicas – apesar de costumarem fornecer valiosos conhecimentos para a tecnologia – não costumam ser avaliadas pelo sucesso ou insucesso das suas reais ou possíveis aplicações práticas, porém pelo enriquecimento acrescentado ao acervo do conhecimento humano. Não é nada raro uma teoria científica – no momento histórico em que é elaborada – não pretender nenhuma aplicação prática e não fornecer nenhum subsídio para tal coisa.

 

Às vezes, isto ocorre em um momento histórico posterior, mas essa ocorrência não tem um caráter necessário, e a possível não-ocorrência não aumenta nem diminui o valor epistemológico de uma teoria científica. Antes de qualquer coisa, a ciência e a filosofia, embora o façam de modos distintos, estão voltadas para a satisfação de um desejo peculiar à natureza humana, pois, como observara Aristóteles ao iniciar a Metafísica: “Todos os homens por natureza têm o desejo de conhecer” [embora para uma minoria tal desejo mostre-se forte e imperioso e para a maioria, débil e não desejoso de ir além de curiosidades ocasionais – acrescentamos nós].

 

Mas por que razão a pergunta: “Para que serve x?” não costuma produzir nenhum mal-estar quando x é substituído por “esta máquina”, “este objeto”, “a tecnologia”, “a matemática”, “a ciência”, etc. e às vezes é tomada como uma indagação no mínimo incômoda quando x é substituído por “a arte”, “a música”… “a filosofia”?! 

 

Aqueles que experimentam o referido incômodo talvez reajam assim, justamente por pensar que, na primeira lista de substituições, a pergunta não só é esperável como bastante apropriada, porquanto estão em jogo coisas cuja finalidade precípua ou possível apresenta um caráter nitidamente utilitário. Porém – pensam ainda eles – na segunda lista a mesma indagação perde totalmente sua razão de ser, uma vez que estão em jogo coisas inteiramente dissociadas de qualquer caráter utilitário. Pensando assim, é gerada uma ontologia e uma axiologia das atividades e dos saberes humanos em que, de um lado, a arte e a filosofia são irmanadas; de outro a ciência e a tecnologia, e abre-se um profundo abismo entre ambos os domínios.

 

Tal modo de pensar é o primeiro passo na direção da conhecida concepção das Duas Culturas proposta por C.P. Snow: de um lado a cultura científico-tecnológica, de outro a filosófico-humanista. Será que estamos diante da coexistência dessas duas culturas em um mesmo espaço mas sem nenhuma ou muito pouca interação? De qualquer modo, estamos dispostos a reconhecer a importância metodológica e axiológica da demarcação dos contornos das principais atividades do espírito humano: religião, arte, filosofia, ciência e tecnologia. A ausência de demarcação ou a demasiada imprecisão de contornos costumam trazer lamentáveis mal-entendidos associados às vezes a desastrosas concepções “holísticas”. Todavia, é preciso estar alerta para o indesejável inconveniente de produzir um tipo de demarcação estéril e estanque.

 

Trata-se de uma complexa e delicada tarefa cujo sucesso dependerá não só do emprego de critérios suficientemente maleáveis, mas também de uma apreciação cuidadosa não só das notórias diferenças como também das possíveis semelhanças e confluências das diversas atividades do espírito. Fazer demarcações não é isolar em departamentos estanques, porém caracterizar jurisdições com vistas à tentativa de compreender complexos processos de interação, tal como estes têm se revelado ao longo da história em que as atividades do espírito brotaram e se desenvolveram no solo comum da cultura humana.

 

Não se trata de encaminhar aqui uma teoria da demarcação associada a uma teoria dos processos interativos, porém simplesmente de tentar dar uma resposta adequada à indagação: “Para que serve a filosofia?”. De modo a fazer tal coisa, parece indispensável tematizar o conceito de utilidade e os de descrição e prescrição. Já esboçamos uma tematização do primeiro e tentaremos esboçar agora uma tematização dos outros dois.

 

Apesar das sérias advertências feitas por Hume (1985, III, I.1.) e por outros (Carcaterra, 1969) , alguns filósofos continuam confundindo os domínios do ser e do dever ser ou caso se queira, o domínio daquilo que é com o do que deve ser. Desse modo, quando um desses filósofos afirma veementemente que a filosofia não serve para nada (a não ser para a satisfação espiritual e intelectual fornecida pela reflexão filosófica), podemos indagar se eles estão pretendendo assumir um ponto de vista descritivo ou prescritivo, ou seja: se estão sustentando uma tese apoiada em uma visão geral do que tem sido a filosofia ao longo dos séculos ou uma visão do que ela devia e deve ser, de acordo com determinada concepção de filosofia.

 

Supondo que esteja em jogo o primeiro ponto de vista, ele pode ser facilmente contestado com base em fortes evidências de caráter histórico; supondo que esteja em jogo o segundo, é gerada uma interessante polêmica a respeito do sentido e da finalidade do conhecimento filosófico. O problema não está em encarar a história da filosofia a partir desta ou daquela visão do que é filosofia, pois tal procedimento é inevitável, uma vez que não é possível adotar uma atitude de neutralidade axiológica, como pretendem determinados historiadores. Assumi-mos como pressuposto que tanto aquele que adota um ponto de vista descritivo como o que adota um prescritivo o fazem a partir de uma determinada visão filosófica.

 

A diferença é que o primeiro está preocupado em mostrar como a atividade filosófica tem sido ao longo dos séculos, mas o segundo só mostrará isto como um fator contrastante, ou seja: pode mostrar o que ela tem sido, mas unicamente para enfatizar como ela deveria ter sido. Assentado isto, somos obrigados a reformular a expressão da sua tomada de posição. Ela não se expressa por meio de (1) “A filosofia não serve para nada”, porém por meio de (2) “A filosofia não deve servir para nada”.

 

Tudo o que pretendemos sustentar é que (2) é uma tomada de posição polêmica, mas (1) é uma proposição falsa. Sua falsidade se evidencia quando consideramos a história da filosofia em sua relação com a de outras atividades do espírito e com a própria cultura humana em que ela está e não pode deixar de estar inserida. Em primeiro lugar é importante lembrar que todos os principais ramos da atividade científica brotaram, em diferentes épocas e circunstâncias, da grande árvore da filosofia, para, posteriormente se desvincularem dela e se tornarem saberes independentes tendo suas próprias jurisdições.

 

Como é sabido, a referida grande árvore só brotou no solo da Grécia e dali se estendeu para a cultura ocidental onde despontaram a ciência e a tecnologia avançada, a partir do século XVI. A filosofia foi a parteira da ciência e a ciência a da tecnologia. Não há dúvida de que as culturas orientais anteriores à cultura grega ou contemporâneas da mesma desenvolveram mitos, religiões, visões de mundo e até mesmo algumas técnicas importantes. Contudo, não conheceram nada comparável ao questionamento filosófico e, por isto mesmo, não deram os primeiros passos na direção da criação da metodologia científica, que já se esboçava nas investigações empíricas da Escola Jônia e nos teoremas de Tales e de Pitágoras (vide a este respeito Oliva e Guerreiro, 2000). 

 

Se estes contribuíram para uma metodologia dedutivista, cujo fruto imediato foi o método hipotético-dedutivo da dialética platônica – protótipo do método do mesmo tipo disponível hoje – os filósofos jônios (Anaximandro e Anaxímenes) contribuíram para uma metodologia empírico-indutivista que, aperfeiçoada no século XVI por Francis Bacon, foi praticamente hegemônica como método científico até o século XX, mais especificamente até a década de 30 quando K. Popper (1957) deu início a um sério questionamento da mesma propondo sua substituição por um método hipotético-dedutivo associado ao emprego do modus tollens e centrado na noção de falsificabilidade.

 

É preciso refrisar à exaustão que estas coisas que entendemos por “filosofia”,  “ciência” e “democracia” são contribuições originais da cultura grega. É inútil procurar antecedentes no mundo oriental, seja nas culturas do Oriente Médio (Egito, Mesopotamia) seja na cultura persa ou na hindú. Não podemos negar que as primeiras exerceram consideráveis influências nos primeiros tempos da formação da cultura grega, assim como não podemos negar que tanto a cultura persa como a hindú também as exerceram quando da aproximação do Oriente e do Ocidente promovida pelas conquistas de Alexandre, o Grande, e a instauração do Império Macedônico; mas os surgimentos dos reinos do Logos (razão filosófica e razão científica) e da Eleuthería (liberdade, no sentido moral e no sentido político) são eventos históricos típica e exclusivamente gregos.

 

 

* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
, Mario Guerreiro. Para que serve a filosofia? (Segunda Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/para-que-serve-a-filosofia-segunda-parte/ Acesso em: 25 abr. 2024