Filosofia do Direito

A Justiça e o Direito Natural

A Justiça e o Direito Natural

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

 

René Cassin, o principal autor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, escreveu, certa vez, que “não é porque as características físicas do homem mudaram pouco desde o começo dos tempos verificáveis, que a lista de seus direitos fundamentais e liberdades foi idealizada para ser fixada permanentemente, mas em função da crença de que tais direitos e liberdades lhe são naturais e inatos” (“Human Rights since 1945: An Appraisal”, The Great Ideas, 1971, Ed. Britannica, pg. 5).

 

Uma reflexão sobre o dia da Justiça pode perfeitamente principiar pelas palavras do grande jusfilósofo francês.

 

A justiça é fundamentalmente, aspira­ção do ser humano, que nasce com ele, acompanha-o durante toda a vida e não desaparece quando ele morre. A aspiração de justiça do ser humano transcende sua própria morte, porque também, é anterior à sua existência.

 

Sempre que ouvimos falar de justiça, consideramo-la a partir dos poderes do Estado em administrá-la, não poucas vezes correndo o risco de reduzí-la à mera presta­ção jurisdicional, que, embora relevante, não esgota sua concreção fenomênica.

 

A influência dos positivistas, na Filosofia, e dos formalistas, no Direito, terminou por levar muitos estudiosos a buscar na Ciência Jurídica, apenas uma veiculação normativa, despreocupados com o conteúdo da lei, que necessariamente lhe deve desbordar.

 

Essa é a razão pela qual, aos nos dirigirmos, no Tribunal de Justiça do Pará, a todos os juristas aqui presentes, magistrados, promotores, advogados, funcionários, professores e alunos, gostaríamos de remeditar a verdadeira dimensão do Direito e da justiça, como instrumentos e metas de realização do ser humano.

 

Confessamos que, deliberadamente e após muita reflexão, deixamos de aceitar a redução do campo de estudo do jurista ao da singela formulação compartimentada do comando positivo, sem que as outras ciên­cias e os outros elementos, tidos por pré ou metajurídicos, possam dizer-lhe respeito. Considerando o Direito a mais universal das ciências sociais, posto que devendo regulá-las todas, em sua plataforma de ação, por todas é interpenetrado, obrigando seu profissional a ter cultura amplificada, capaz de sopesar as influências para encon­trar seu ponto de equilíbrio, a que o atualíssimo Celso definia como a arte do “bonum et aequum”.

 

Por essa razão, desculpamo-nos -res­peitando suas posições- perante aqueles que não aceitam tal universalidade, eis que restrigem sua província de indagação e pesquisa aos limites da norma pura e incontaminada. As idéias que brevemente apre­sentaremos seguem vertentes distintas e pedimos que sobre as mesmas meditem, como temos constantemente meditado sobre os escritos dos formalistas.

 

Cremos que René Cassin tinha razão. O Direito, não obstante Ciência Instrumen­tal, objetiva permitir a plena realização dos seres humanos. É voltado para o homem, sendo o Estado, que o viabiliza e veicula, simples construção social de serviço, não apenas para a sociedade, como um todo, mas especialmente para cada um dos participantes dessa sociedade, em seus proble­mas, necessidades, angústias, ideais, aspirações e bem-estar. O Direito é, portanto, o mecanismo desta integração da sociedade ao homem e do homem na sociedade.

 

Johannes Messner (“A ética social”, Ed. Quadrante), ao tentar diagnosticar tal realidade referiu-se aos “fins existenciais” que o direito objetiva atender, fins esses que todo o ser humano tem o legítimo direito de exigir e procurar, em qualquer tempo ou região.

 

Ora, tais fins, que não são uma criação humana, mas algo inato ao próprio homem, só podem ser alcançados na medida em que as leis naturais, que regem o convívio social, sejam respeitadas pelo Direito, com o que um ideal de justiça, conteúdo maior de toda norma positiva, tenha condições de prevalência.

 

Há leis naturais físicas, biológicas e sociais. Se, em relação às ciências exatas ou biológicas, dúvida inexiste, os positivistas pretenderam eliminá-las das ciências so­ciais, entendendo que tais ciências originavam-se da criação intelectual do ser humano e não de leis por ele diagnosticadas e pré-existentes a sua conformação. A partir do livre arbítrio, próprio do ser humano, en­tenderam que apenas a razão, com plena liberdade de pensamento, seria capaz de tecer a contextura de sua verdade científica definitiva, reduzindo, em conseqüência, todo o campo de indagação e pesquisa a uma formulação ontognoseológica, do sujeito que conhece até o objeto conhecido. Não obstante serem incapazes das explicações mais elementares, tais como: de onde viemos, porque vivemos, para onde vamos, o que é o Universo, qual sua extensão, quais as leis que o regem, qual a origem da vida, sua soberba intelectual ganhou foros de grandiosidade na proporção inversa de seu desconhecimento absoluto sobre a maior parte dos grandes mecanismos da existên­cia. Quanto mais perguntas faziam, mais o campo de sua ignorância se estendia, ao ponto de apenas, nos últimos 30 anos, com as descobertas espaciais, terem os cientistas comprovado que a ordem de criação do Universo, desde a grande explosão, ou do “Fiat Lux”, seria aquela mesma revelada no Gênesis. Vale dizer, qualquer judeu, igno­rante, mas crente em Deus, sabia, há 4000 anos atrás, o que os astrônomos do Ociden­te, com seu instrumental positivista, somen­te agora conseguiram comprovar.

 

É que as Ciências não criam verdades. Descobrem-nas. Instrumentalizam-nas, mas não podem violentar a natureza das coisas.

 

O fenômeno é comum às Ciências Exatas, às Ciências Biológicas, e às Ciências Sociais.

 

Foi essa a razão pela qual o principal responsável pelo mais relevante documento da humanidade, na preservação dos direitos e liberdades humanas, era um jusnaturalis­ta. Um cientista que acreditava no Direito Natural. Que via em seus postulados essen­ciais o caminho seguro para que o legisla­dor, o juiz e aplicador do Direito percorressem-no.

 

Compreende-se, todavia, o aparecimento dos positivistas, principalmente após a corrente racionalista do Direito Natural. Aquela que encontra no Direito Natural apenas os princípios essenciais, permitindo, nos comandos acidentais, o livre regramento, e aquela outra que encontra nos princípios essenciais e nos comandos acidentais campo exclusivo do Direito Natural.

 

Aqui cabe uma pequena consideração. Tem-se, no campo do Direito, contraposto a positividade ao naturalismo, sem se perceber que, nos princípios essenciais, isto é, aqueles princípios jurídicos por necessidade e não acidentalidade, os campos da positividade normativa e do jusnaturalismo se integram.

 

As Constituições dos países desenvolvi­dos, quando dedicam especial capítulo às garantias individuais e aos direitos huma­nos, hospedam, em grande parte, princípios de Direito Natural, que ganham foros de positividade jurídica, em linha de leis naturais humanas por necessidade.

 

Não há, pois, por que distinguir positividade jurídica das leis naturais por necessidade, posto que não há formulações humanas e naturais opostas, mas com­postas.

 

É bem verdade que, não poucas vezes, o ordenamento jurídico de um país nega o desenho de tais direitos pré-existentes no ordenamento, que passa a ser manejado por tiranos ou ditadores, na concepção moder­na, mas tais ordenamentos não resistem muito tempo, por terem sua própria des­truição intrínseca, desde o nascedouro, ou seja, a antinaturalidade. Platão, Aristóteles, Políbio, Hobbes, Bodin, Montesquieu, Vi­co, fartamente estudaram o problema das formas de governo injusto, não desconhe­cendo a semente de autodestruição que o ordenamento jurídico antinatural tem em seu bojo.

 

Não é, entretanto, este campo que gostaríamos de discutir, nesta cerimônia em homenagem ao Dia da Justiça, mas o cam­po próprio das normas jurídicas por aciden­talidade, cuja opção formal pode ser variada, sem afetar o campo pertinente do Direi­to Natural.

 

Os jusnaturalistas racionais entendiam que tal campo também não oferecia alterna­tivas, sendo sempre possível a escolha da formulação legal que corresponderia à exa­ta dimensão positiva do direito natural, em contraposição aos cientistas do direito na­tural, que viam em tal positividade forma de complemento do ordenamento jurídico necessário a sua aplicação à sociedade.

 

À evidência, a postura tradicional, ofertando ampla área de atuação à positividade acidental, permitia composição plena entre o Direito Natural e o Direito Positivo, como, por exemplo, Francisco Puy (“Lecciones de Derecho Natural”, Ed. Porto, Santiago de Compostila, 1970) ensinava.

 

O que nos parece possível encaminhar, todavia, em tentativa de conciliação de pensamento entre as duas correntes do Direito Natural e aquela dos culturalistas, que não se limitam ao estudo do fenômeno da norma pura na busca de um ideal de justiça, é a idéia de que nem sempre viável surge a descoberta de todas as leis naturais que regem o Universo. Mesmo no campo das Ciências Exatas ou Biológicas, conseguimos apreender apenas um conjunto limitadíssimo de leis naturais, sendo compreensível que a complexidade da hospedagem no campo das ciências sociais, seja consideravelmente maior e, portanto, com margem de erro infinitamente superior.

 

Por essa linha de raciocínio, gostaríamos que meditassem todos se a melhor postura científica não estaria em aceitar a posição dos jusnaturalistas clássicos (princí­pios por necessidade), que não se opõem à positividade jurídica, sem afastar a escola racionalista, que entende haver leis naturais inclusive para os comandos por acidentalidade. O instrumental pertinentemente utili­zado pelos primeiros oferta-nos maior segu­rança, mas não se pode afastar, pela inexis­tência de mecânismo captador dos segun­dos, a idéia de que o Direito deve e tem que estar necessariamente voltado para a justiça e que o ideal de justiça é, fundamentalmente, desiderato das leis por necessidade, quanto daquelas por acidentalidade.

 

Eis por que, em rigorosa posição de pesquisa e indagação, que deve ser sempre própria de todos os juristas, não se pode afastar, conscientemente, o que ainda não se descobriu, posto que a busca de um ideal de justiça, pleno e incontrastável, é perse­guido por jusnaturalistas clássicos, raciona­listas ou culturalistas.

 

Da mesma forma, que as Ciências Exatas e Biológicas avançam, na contínua procura de novas leis naturais, que auxiliem a compreender aquelas que são conhecidas, os juristas devem, na busca de um ideal de justiça, plasmado na norma positiva, objeti­var, permanentemente, a detecção de no­vas leis naturais pré-existentes, mas ainda não suficientemente desvendadas, que se unam, claramente, àquelas primeiras e essenciais, cuja captação já tiveram oportuni­dade de obter. Só assim a luta pelo Direito pode ultrapassar às cíclicas crises da admi­nistração da Justiça, que no espaço e no tempo atingem o homem, em sua aventura pela Terra. A busca de uma Justiça cada vez mais justa.

 

Cremos que o ser humano é a única razão do Estado. O Estado está conforma­do para servi-lo, como instrumento por ele criado com tal finalidade. Nenhuma cons­trução artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus inalienáveis direitos e liberda­des, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano, e não um fim em si mesmo. E cabe a todos nós, profissionais do Direito, a difícil tarefa de realizá-lo voltados para o homem e seus fins existen­ciais. Nós somos, portanto, todos, sem exceção, magistrados, promotores, advoga­dos, consultores, serventuários, auxiliares, muito mais do que profissionais do Direito. Nós somos os verdadeiros profissionais do maior ideal do homem. Nós somos os profissionais da Justiça.

 

Sobre o texto:

Texto inserido na Academia Brasileira de Direito em 16 de abril de 2007.

 

* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. A Justiça e o Direito Natural. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-justica-e-o-direito-natural/ Acesso em: 26 abr. 2024